Cibercultura on line
Contribuições à crítica da razão tecnológica


Vol. 6 - 2002

Comunidades Virtuais?


Apresentação

por Vanessa Pereira


A inclinação humana pelo "estar junto" já foi pensada por muitos estudiosos. Dentre eles, destaca-se o pensamento de Ferdinand Tönnies. Ele estabeleceu dois tipos desse "estar junto", a comunidade (Gemeinschaft) e a sociedade (Gesellschaft). De maneira simplificada, a comunidade seria motivada afetiva e idealmente, sendo representada pela família e as ligações locais. Nela, as pessoas sentem-se parte de um todo, compartilhando responsabilidades, respeito e comprometimento. A sociedade seria, ao invés, identificada por uma motivação objetiva e racional. As relações são impessoais, fruto do processo de urbanização e industrialização da modernidade. Embora essas conceituações sejam esquemáticas e simplificadas, vêm servindo como ponto de partida para pensar nossa formação social e de fato são utilizadas por muitos estudiosos.

Segundo essa tipificação, verifica-se que hoje o termo comunidade é usado em diversos âmbitos da vida social (políticas públicas, organizações sociais, agrupamentos virtuais) em sentido muito diferente do conceito proposto por Tönnies.

Neste volume, interessa sobretudo o emprego do conceito de comunidade em relação aos grupos de usuários das comunicações mediadas por computador: especificamente, o termo "comunidades virtuais". Os textos selecionados e traduzidos importam na retomada do conceito de comunidade, introduzindo-o em um outro contexto, o da cibercultura, a cultura digital da Internet.

Estar numa comunidade virtual implica em estar sentado diante de um monitor de computador conectado a rede mundial Internet. Trata-se de situação que pouco se parece com uma relação de parentesco. Dificilmente ela permite pensar que o indivíduo está sujeito a penalidades, comprometido com um ideal ou submetido a responsabilidades. Isso não quer dizer, no entanto, que não existam normas de regência ou conduta nos ambientes virtuais. Apenas que há atitudes distintas que o indivíduo pode tomar, ao se ver privado de seu referencial físico nas interações. O fato de não estar presente materialmente permite ao sujeito se "desligar" a qualquer instante de tudo e de todos. A comunidade, se existe, pode terminar com um simples clique!

Pensando esta e outras questões, alguns dos textos selecionados consideram as comunidades virtuais mais como construtos ideais do que como comunidades de fato. Eles argumentam que pelo fato da Internet dar espaço ao imaginário ela induz à manifestação de ideais utópicos como o de comunidade. A comunidade virtual corresponderia, assim, mais a um sonho de relacionamento do que um relacionamento sonhado se concretizando.

Torna-se bastante difícil lidar com o conceito de comunidade em uma sociedade individualista, mais ainda em um contexto onde a comunicação prescinde do referencial corporal, como é o caso das comunicações mediadas por computador.

Neste sentido, autores como Derek Foster sugerem que as agregações sociais virtuais se parecem mais com aldeias eletrônicas do que com comunidades. Para ele, o indivíduo online tende a se tornar autocentrado, ao despreender-se do corpo das relações sociais cotidianas, perdendo parte das referências que auxiliam no processo de construção de sua identidade.

Este desprendimento corporal tem sido abordado como fator propício de um anonimato benéfico, já que sugere uma igualdade de participação e voz na rede. Afinal, assim, os estereótipos pessoais são dissimulados. Com essa idéia, muitos pensadores são levados a ver na Internet um potencial democrático não-possível anteriormente. Michelle Wilson crítica essa visão no artigo "Comunidade em Abstrato". A autora coloca em xeque a questão da participação política, avaliando a ética e moral possíveis nas redes eletrônicas. A crítica recai, principalmente, sobre seus entusiastas, que lançam suas esperanças de democracia com base na postura ética de indivíduos todavia descarnados.

Seria a Internet capaz de incentivar um percurso de participação e engajamento social em detrimento do processo de individualização cada vez mais acentuado? Gordon Graham discute esta questão em seu texto "A Internet e as novas comunidades". O autor contextualiza a Internet e suas comunidades como parte de um processo de fragmentação maior, que engloba todos os meios de comunicação e que está ligado à mudanças sociais profundas. Na busca por entender as novas comunidades da Internet, ele apresenta um novo conceito: o de enclave. Enclave seria uma associação de indivíduos unidos por interesses comuns (que podem ser objetivos e subjetivos). No entanto, a comunidade, diferentemente da enclave, possui uma característica muito particular, capaz de unificar e integrar seus interesses noutro plano. Replicando à fragmentação experimentada pelos ocidentais modernos, a comunidade exerce uma atrativa sensação de integração, mas a vontade de participar de uma comunidade deste tipo esbarra nas propostas de maior liberdade, caras à doutrina do individualismo.

Seguindo a mesma linha de análise, mas de forma mais psicologizada, o artigo de Beth Kolko e Elizabeth Reid, "Dissolução e Fragmentação: Problemas nas Comunidades On-line" discute a questão da fragmentação dentro das comunidades online. As autoras analisam um ambiente de comunicação mediada conhecido como MOO. A atenção recai sobre as tendências à construção e ao aniquilamento da comunidade. As características do ciberespaço permitem que o "eu" seja múltiplo, heterogêneo, diversificado. A expansão das identidades permite ao indivíduo experimentar diversos modos de ser em ambientes distintos. Neste contexto, as aspirações, vontades e desejos individuais são os únicos pressupostos com que se pode contar para que uma comunidade exista. O comprometimento, a responsabilidade e a reciprocidade nos ambientes de comunicação tornam-se assim, porém, tão fragmentados como as identidades aí assumidas. A ligação tradicional entre lugar e poder se desfaz, e isto, para as autoras, é o que poderia explicar os fracassos de muitas comunidades online.

Comprometimento, responsabilidade e reciprocidade também são avaliados por Barry Wellman & Milnea Gulia no texto: "Comunidades Virtuais como Comunidades". Utilizando o conceito de laço social, os autores analisam as interações estabelecidas na rede e sua intensidade. Laços fortes e laços fracos seriam constituintes de relacionamentos diversos, que o sujeito utiliza para satisfazer suas necessidades e interesses particulares. Esses laços seriam responsáveis pelo estabelecimento de redes que se tornariam comunidades virtuais. De forma interessante e inovadora, o artigo introduz na discussão "comunidade x sociedade" o conceito de rede social.

Cada texto a seu modo acaba, portanto, propondo um questionamento chave: o uso do conceito de "comunidade" para designar os agrupamentos virtuais é adequado? A pergunta fica em aberto, com a esperança de que possa incitar os leitores interessados a buscarem melhores respostas.





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