Carne Feita Palavra:
sexo, texto e o corpo virtual


Shannon McRae


Desde a década em que William Gibson cunhou o termo “ciberespaço”, a “alucinação consensual” que ele conjeturou se tornou uma realidade significativa1. Assim como o sistema rodoviário nacional com o qual têm sido freqüentemente comparadas, as redes de computadores reconfiguraram a paisagem cultural. A visão paranóica de Gibson de um mundo tornado quase inabitável por uma guerra de corporações multinacionais cuja hegemonia é ativada por meio de uma vasta e interligada rede de informação, espelha a realidade atual com considerável acuidade. O capitalismo tardio se caracteriza pelo crescimento de multinacionais que tornam as fronteiras políticas e culturais obsoletas, e cuja rede de controle é tão intangível quanto total: uma trama eletrônica que engloba o mundo inteiro.

O ciberespaço se tornou um universo com uma população em crescimento, uma civilização de desenvolvimento rápido com sua própria história, políticos, heróis, vilões, lendas e tradições. O ciberespaço não é tanto algo paralelo ao ‘mundo real” quanto uma cada vez mais significativa dimensão dentro dele. Isso se deve sobretudo à proliferação da tecnologia que torna o espaço acessível. Nas novelas de Gibson, a tecnologia do ciberespaço está disponível apenas para uma elite: as corporações que compram, vendem e, de modo a despertar inveja, guardam informação, e os altamente capacitados “cowboys da rede”, hackers que fazem do roubo dessas informações um jogo e uma arte. Na realidade, a tecnologia com a qual o ciberespaço é acessado e construído, embora ainda não acessível universalmente –e para alguns francamente incompreensível- tornou-se, nos últimos anos, um território cada vez mais familiar, se não colonizado por completo. Nem o universo paralelo remoto da ficção de Gibson, nem o universo assustador gerado por computador de filmes como “O Passageiro do Futuro”, a realidade virtual acabou sendo menos uma ficção e mais uma condição, uma forma alternativa de se relacionar com o mundo e com outros seres humanos. A existência virtual tornou-se tão imediata que aquilo que constitui “o real” está sendo posto em questão.

“No fim do século XX”, escreve Donna Haraway, “o nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos de máquinas e organismos teorizados e fabricados. Resumindo, somos ciborgues2.” O ciborgue não é mais “uma ficção mapeando a nossa realidade social e corpórea”, mas sim a experiência vivida por milhões de pessoas que passam a maior parte de seu tempo trabalhando e jogando no espaço digital. Ciborgues alegres, “a cria ilegítima do militarismo e do capitalismo patriarcal”, ao realizar um dos desejos de infância mais ávidos e proibidos estão lá fora, brincando na auto-estrada que seus pais construíram3. E em qualquer tipo de acampamentos temporários que se espalham ao longo da estrada, eles descobrem outros modeladores de formas, olham em outros olhos, brilhantes, opacos e fosforescentes. Uma inteira geração híbrida redefiniu o conceito de “fazer as coisas na estrada”.

Sexo virtual, incluindo sexo por telefone, troca de e-mails eróticos e encontros em chats, BBSs e comunidades virtuais, possibilitam interação erótica entre indivíduos cujos corpos talvez jamais se toquem, que podem nunca ver os rostos um dos outros ou trocar seus nomes reais. A discussão popular sobre sexo virtual (ou a menos chamativa teledildônica) tendeu a classificá-lo como o tipo de experiência erótica rápida e anônima que pode ser obtido nos cabarés, casas noturnas e bares de encontros ou através da ligação para os tele-sexo. Esse tipo de discussão tende a analisar o fenômeno como o resultado de uma alienação tecnologicamente mediada, motivada pelo medo -da AIDS, de estranhos, ou do fato de que o corpo está rapidamente tornando-se redundante na era da progressiva desnaturalização. Com certeza a interação sexual remota veio à tona na história ao mesmo tempo em que várias práticas que drasticamente reconfiguram o corpo humano ficaram populares -musculação, dieta, malhação, piercings, tatuagens, cirurgia plástica. Todas essas práticas podem ser interpretadas como esforços para exercer controle sobre o único meio que os indivíduos sentem que ainda podem controlar.

Existe, no entanto, uma forma mais positiva de encarar o sexo virtual. Demonstrando uma adaptabilidade admirável em acompanhar as permutações do capitalismo em evolução eterna, os seres humanos transformaram a maquinaria de poder em fontes de prazer, contrapondo “as garras do poder com as necessidades dos corpos, prazeres e conhecimentos, na sua multiplicidade e na sua possibilidade de resistência”4.

Isso não é para dizer que todos os engajados na socialização virtual estão interessados em interação sexual. E dos que estão, a maioria pode nem encarar como uma experiência mais interessante ou pessoalmente transformadora do que qualquer outro tipo de encontro erótico semi-anônimo. Uma pesquisa ocasional feita entre indivíduos que participaram de algum tipo de sexo virtual pode sugerir que o consenso é que o sexo virtual não é mais imersivo do que, como uma das pessoas colocou, um fórum interativo da revista Penthouse. Enquanto algumas pessoas bem podem achar o erotismo tecnologicamente facilitado uma experiência não corporal, alienante e, em última instância, sem significado; outras, no entanto, descobriram que o sexo virtual pode ser tão envolvente, intenso e transformador quanto os melhores tipos de encontros eróticos corporais, e que, além disso, a sua virtualidade acrescenta mais do que retira da experiência.

O sexo virtual permite uma certa liberdade de expressão, de apresentação física e de experimentação além dos limites da vida real de cada indivíduo. Na melhor possibilidade, não só complica mas desfaz de forma drástica a divisão entre mente, corpo e eu, que se tornaram truísmos confortáveis na metafísica ocidental. Quando se projetam virtualmente, “mente”, “corpo” e “eu”, se tornam todos construtos conscientemente manufaturados através dos quais os indivíduos interagem uns com os outros.

Antes de continuar com uma discussão sobre sexo virtual, pode ser útil clarear o que a “realidade virtual” é na realidade. Uma definição comumente entendida é a resumida por Elizabeth Reid. A realidade virtual

envolve sistemas que oferecem aos usuários informação visual, auditiva e tátil sobre um ambiente que existe como dados em um sistema computacional e não como objetos físicos e lugares. Essa é a realidade virtual descrita no filme “O Passageiro do Futuro” e tornada mais próxima pelos jogos de fliperama Virtuallity da Horizon Entertainment5.

O termo também descreve algumas das tecnologias que foram usadas na guerra do Golfo e certos sistemas em desenvolvimento por instituições tais como a Human Interface Technology Lab. Existe outro tipo, entretanto, que não depende de complexas e caras bugigangas nem experiência prévia, mas é de acesso fácil e criada originalmente por seus usuários. Embora os vários tele-sexo, chats, BBSs, grupos de notícias e um grande número de provedores comerciais que proliferaram nos últimos anos se enquadrem grosseiramente nesse tipo de realidade virtual, talvez os ambientes mais ricos, complexos e melhores elaborados sejam os MUDs.6 Eles são “sistemas interligados, multi-participantes, amigáveis ao usuário e encontrados comumente na Internet”.7

MUD´s são mundos virtuais montados sobre texto, bancos de dados interativos dos quais é possível criar ambientes de alta complexidade e extremamente vívidos nos quais o usuário experimenta uma sensação de presença real. Seus usuários, muitos dos quais participam há anos, encaram os MUD´s como comunidades, ambientes imaginários que permitem interações muito reais emocional e socialmente.8 Os tipos de interações dependem de cada MUD. Alguns são usados, a princípio, para jogos em estilo RPG, como Dungeons and Dragons; outros, como o LambdaMOO e outros MOO´s correlatos que afloraram nos últimos dois ou três anos [1993-1995] são reservados para a pesquisa acadêmica, interações profissionais e experimentos em organização comunitária ou programação coletiva.9

Os MUD´s são únicos entre outros ambientes baseados em voz ou texto nos quais os usuários podem mover-se dentro de um espaço descrito, criar e lidar com objetos e interagir com outros jogadores, com corpos que eles constroem. A sensação de estar fisicamente naquele espaço é, muitas vezes, “real” o suficiente para que os sentidos se engajem numa complexa troca de experiências entre o corpo físico e o corpo protético. Os jogadores, da mesma forma, se envolvem uns com os outros de forma significativa, complexa e, com freqüência, intensa, ainda que estejam ausentes as convenções da nuance, da gestualidade e tom que facilitam a interação humana.

Apesar da falta de canais familiares de significado interpessoal, os jogadores não deixam de sentir uns aos outros. Ao contrário, os ambientes de MUD são extremamente ricos culturalmente, e a comunicação entre os seus jogadores são, com freqüência, muito carregadas emocionalmente. Embora eles não possam ver, ouvir ou tocar uns aos outros, os jogadores desenvolveram maneiras de conduzir formas de expressão que normalmente iriam ser transmitidos por esses sentidos... Nos MUD´s, o texto substitui o gesto, e até se torna gestual em si mesmo.10

Os jogadores criam contextos de duas formas: auto-apresentação, e linguajares cujas nuances são entendidas coletivamente. Quando um jogador chega em um MUD pela primeira vez, seu primeiro ato é, normalmente, descrever-se e escolher um gênero. Uma vez assumidos, ambos podem ser mudados à vontade. Os jogadores podem se metamorfosear (trocar de uma descrição e/ou gênero para outro) com um único comando, ou simplesmente reescrever-se a qualquer momento. Eles olham para os outros, para o ambiente e os objetos em volta com outro comando. A comunicação com os outros jogadores é ativada com poucas e simples tecladas. Existem dois modos de comunicação: o “dizer”, no qual o jogador faz uma colocação, e o “expressar”, no qual ele gesticula, faz uma expressão facial ou uma pose. Se Galatea quisesse dizer algo a alguém na sala, ela teclaria:

dizer olá a todos

Todos na sala iriam ver:

Galatea diz: “olá a todos”.

Se Galatea desejasse se expressar mais do que falar alguma coisa, ela poderia escrever

: parece cética e bate o pé impaciente

Todos na sala iriam então ver:

Galatea parece cética e bate o pé impaciente.

Expressar-se permite uma riqueza e uma variedade de nuances comunicativas que não são facilmente visíveis em outros ambientes eletrônicos. Por essa razão, o envolvimento sexual toma uma dimensão bem diferente de outros encontros virtuais como tele-sexo, e-mail ou BBSs.

A falta de presença física combinada com a infinita maleabilidade dos corpos nos MUD´s complica a interação sexual de formas interessantes. Enquanto vários indivíduos se envolvem nos razoavelmente limitados rituais “standard” de solteiros à caça, sejam gays ou normais, outros procuram experiências eróticas que seriam dolorosas, difíceis ou simplesmente impossíveis na vida real. Os residentes de um MUCK (tipo especial de MUD) altamente popular descrevem-se como animais antropomorfizados. Ao passo que os recém-chegados a esse mundo normalmente têm uma impressão de uma exuberância atraente, aqueles com paciência para procurar a larga e ativa subcultura logo descobrem um número de práticas sexuais únicas inventadas pelos jogadores daquele MUCK em particular e específica para eles.

De acordo com Kanu, um jogador regular no MUCK, uma das formas clássicas de sexo animal é predador/presa S & M11, “onde o parceiro submisso é devorado no clímax. Eu não experimentei, mas me disseram que é interessante”. As espécies aparentemente são escolhidas de acordo com um código social com altos níveis de complexidade. “Ursos e lobos são normalmente dominantes. Raposas são lascivas, em geral. Elfos são assexuados e irritantemente espertos. Animais pequenos são, com freqüência, muito submissos”. Kanu, cujo personagem é um homem jovem – “low-tech, simples, amigável- acha que enquanto alguns jogadores o acham bastante atraente, outros “são bastante zoofílicos e não gostam de fazer sexo com um humano”.

Kanu me relatou algumas das suas experiências:

Eu conheci um urso em um bar uma vez, e o segui até sua casa. Isso levou a uma cena S & M na qual ele era dominante... ele me mordeu e me ameaçou com seus dentes e suas garras... Alguns jogadores meio que inventam novos tipos de órgãos sexuais. Por exemplo, havia um centauro que tinha um pau realmente ENORME. Mas ele era submisso, e o que gostava era que fodessem o seu pau. Era como uma vagina no fim de um pênis gigante.

Quando eu perguntei como as formas animais poderiam melhorar o role-play12 em particular, Kanu sugeriu que elas permitem uma experiência mais primitiva, incluindo os efeitos físicos e sensuais de “parâmetros de predação, garras, dentes, tamanho e força”. Além disso, os jogadores animais gostam de jogar com vários tamanhos:

Alguns jogadores são pequenos. Como um arminho que gosta de mim e sempre quer ser levado para casa e usado como um brinquedo sexual. O arminho se pendurava nas minhas calças, etc. Eu não entrei nessa realmente. Muito bobo para mim.

Em outro mundo similar:

Existe uma região que é dedicada aos gigantes. Animais gigantes, principalmente. É uma cena de dominação homossexual quase total... Eu fui pego por um Leão gigante uma vez. Uma cena muito longa se seguiu. Montes de ameaças, perseguições tentando agradá-lo, fiquei preso na sua boca e dentro da sua bunda. Provavelmente a coisa mais pervertida que eu já fiz lá... Ele era umas dez vezes maior que eu... O Leão realmente queria que eu fosse um escravo permanente. Me levou para dar uma volta e me mostrou esqueletos de jogadores que não foram leais o suficiente.13

Além da liberdade e do potencial de experimentação permitido pela ocupação de um corpo animal, uma das mais discutidas ocorrências no ambiente virtual é a tendência dos indivíduos de assumir um gênero diferente do que os que eles se identificam na vida real. Quando a escolha do gênero é uma opção mais do que uma construção social estritamente coisificada, o potencial existe para a possibilidade do gênero como uma subversão do marcador primário de identidade. Refletindo a demografia da Internet como um todo, a maioria dos jogadores de MUD são homens jovens e heterossexuais entre dezenove e vinte e cinco anos. Um número surpreendente desses jovens aproveitam a oportunidade para experimentar interação social em um corpo feminino. Isso não é para dizer que todos ou sequer a maioria desses jovens estão conscientemente envolvendo-se em subversão de gênero. Stephen Shaviro, que passou algum tempo em vários MOO´s, vê muito pouca inventividade no comportamento que ele observou:

Mas não nos deixemos levar por fantasias utópicas. A maioria dos homens normais são uns escrotos, e a mera oportunidade de jogos de expansão de gênero na Net não faz nada para mudar isso. Uma performance drag bem sucedida é mais difícil de ser alcançada do que você pensa. Caras normais muitas vezes fingem ser garotas na Net – eu mesmo já fiz isso, várias vezes- pensando que o disfarce ajudaria a eu me dar bem com garotas “reais”. Mas o que vem volta: as garotas que esse caras conhecem normalmente acabam sendo outros caras no seu disfarce virtual. Encare o seguinte: a informação da qual a maioria dos homens normais é composta é monotonamente auto-referente: gira e gira sempre no mesmo loop.14

O que acontece na realidade, no entanto, não é necessariamente tão simples. Enquanto a motivação primordial para os homens normais na Internet se passarem por mulheres pode ser para conhecer garotas, garotas atraídas pela atenção de outras “mulheres” têm grandes chances de serem lésbicas. Se as garotas são na verdade outros garotos, então o que ocorre não é de maneira nenhuma uma experiência heterossexual, mas sim uma encenação de uma experiência lésbica por dois garotos fazendo amor enquanto um ou os dois estão assumindo corpos femininos.

Se garotos podem ser garotas e normais podem ser bichas e sapatões podem ser veados e duas amantes lésbicas podem ser na verdade dois homens, então ‘normal” ou “bicha”, “macho” e “fêmea” tornam-se não confiáveis como marca de identidade. Não é que os personagens de gênero ou preferências sexuais realmente mudam tanto quanto os jogos de troca de gênero complicam a ligação entre gênero e desejo, da qual nós, geralmente sem perguntas, construímos nossas identidades como seres sexuais. Gênero se torna um verbo e não mais um substantivo, uma posição a ocupar mais do que um papel fixo. Em muitos casos, o gênero se torna o efeito que um indivíduo tem sobre o outro.

A extensão com que os indivíduos realmente se importam se eles estão ou não se envolvendo em um jogo que tem a potência de colocar desafios sérios a questões de identidade varia. A seriedade da interação sexual varia tanto na Internet quanto na “vida real”. Alguns estão surfando, procurando por aventuras e novas sensações, outros por ligações emocionais. Alguns consideram que a flexibilização do gênero faz parte do jogo e não se importam se as pessoas com que estão flertando são o que dizem ou não. Para outros, a descoberta de uma mentira pode precipitar uma crise emocional de intensidade surpreendente.

Uma professora que entrevistei, a qual chamarei de Shade, via o sexo virtual como uma forma de explorar aspectos da sua sexualidade que ela nunca tinha experimentado na “vida real”: sexo com homens e viver fantasias S & M em um ambiente que ela via como um pouco mais seguro.

Mais do que prazerosa e libertadora, no entanto, sua primeira experiência no LambdaMOO foi traumática. Quando o garoto com o qual ela estava jogando começou a jogar mais rudemente do que ela achava aceitável, ela se descobriu chateada de forma muito mais profunda pela cena do que ela tinha suposto. Ela abruptamente foi para a sua própria sala, mas manteve-se conectada ao MOO. Uma mulher que também estava envolvida na cena ficou preocupada, entrou em contato “private” com Shade, e ofereceu convidar uma namorada sua, outra lésbica, para ir na sala de Shade, confortá-la.

A namorada, Trina, foi gentil ao extremo , muito compreensiva, e depois de pouco tempo, Shade ficou intimamente envolvida com ela. Seu envolvimento incluía jogos S & M, com os quais ela se sentia muito mais segura por estar com uma mulher. Quando, depois de várias semanas de encontros sexuais intensos, Trina confessou ser um homem na vida real, Shade ficou furiosa. Sentindo-se enganada, traída e passada para trás inúmeras vezes, levou várias semanas para ela sentir que podia confiar de novo em alguém que conhecesse virtualmente.

De acordo com Shade, o raciocínio de Trina para se passar por lésbica era, aparentemente, para “ajudar mulheres”, e deixá-las a salvo de outros homens que poderiam machucá-las.15 Quais eram as suas intenções reais é impossível determinar. O incidente aconteceu há vários anos atrás e Trina ou saiu do LambdaMOO ou, como às vezes acontece quando alguém torna-se visivelmente impopular, assumiu outra identidade. É possível que um grupo de garotos jogando com vários personagens que a liberdade da Internet permitiu, sejam envolvidos com emoções humanas que eles nunca imaginaram que iriam encontrar em um espaço sem rosto e anônimo.

A história de Shade não é, de forma alguma, o único incidente de dor emocional genuína ocorrido no que os recém-chegados ingenuamente acreditam que seja um ambiente no qual o jogo seja divorciado da realidade emocional. Outra mulher com quem conversei, que na vida real é casada e se considera numa relação monogâmica, também acabou tornando-se amiga e emocionalmente envolvida com outra mulher. Embora elas tenham mantido sua amizade quando ele revelou seu gênero verdadeiro, ela sentiu que a qualidade da sua interação mudara. Como ela coloca: “Eu acho, infelizmente, que quando era uma mulher, era tipo ‘ajude sua irmã’ e ela irá te ajudar. Quando era um homem, era o chato e velho jogo ‘bata a sua cabeça mecanicamente contra uma chapa de titânio’. De qualquer forma, ele mudou a minha vida.”16

Uma das práticas mais curiosas de modelagem de gênero que ocorrem é que um surpreendente número de homens, tanto gays quanto normais, mascaram-se como mulheres para seduzir outros homens. Alguns tentam como um lance de ousadia, talvez como o machão característico dos anos 90, simplesmente para ver se conseguem passar, para ver se eles podem ser melhores mulheres do que elas próprias. Um rito de passagem familiar no LambdaMOO envolve homens jovens incitando outros homens jovens a assumir uma descrição feminina, e seduzir um jogador que seja notório por seu comportamento sedutor para com as mulheres. Para muitos, “fingir” é um jogo, algo para se livrar logo. Outros, no entanto, são motivados por um sentido de auto-exploração, como Tirésias, cujo prazer sexual é mais intenso do ponto de vista de uma mulher.

Pode ser facilmente argumentado que a experimentação livre com papéis definidos a partir do gênero, que a realidade virtual permite, consegue nada além da reafirmação desses papéis, e até certo ponto isso é verdade. Para parecer “fêmea” e tentar atrair parceiros, se deve não só assumir os pronomes, mas criar uma descrição que entre no reino do que é considerado atraente. A maioria das pessoas não estica sua imaginação muito além das categorias usuais. Peitos voluptuosos, cinturas finas, cabelo esvoaçante, etc. proliferam tão rápido na realidade virtual quanto em qualquer fábrica da boneca Barbie.

Alguns indivíduos, no entanto, ocupam o gênero oposto com tamanha intensidade que acabam descobrindo aspectos de si mesmos que eles não descobririam de outra maneira. Elaine, que na vida real é um homem, se identifica como normal e nunca teve um amante homem na realidade, descobriu que jogar como mulher foi intensamente transformador. Para ela, ser fêmea “tem algo a ver com querer habitar algo- élan, humor, presença emocional, comunicação, palavras- que eu sentia tão próximo de mim mas não tinha nenhum modelo masculino.17

Em outra conversa, ela expressou quão intenso era para ela ser mulher em uma experiência de sexo com um personagem de apresentação masculina:

Quando você está sendo fodido por um homem, tem essa coisa maravilhosa... você se dá conta de que você está recebendo toda essa energia e poder... ele passa por você e você pode canalizá-lo, jogá-lo de volta, aumentar a voltagem, fazê-lo explodir, descarregá-lo através da ponta dos seus dedos... Ou apenas surfar como uma onda... só que é ao mesmo tempo dentro e fora de você, dissolvendo... Deus sabe como são estranhas as coisas que estou dizendo sobre feminilidade e [masculinidade] e sobre mim e sabe-se lá o que, mas eu sinto... fortemente.18

Além de todas as mutações e combinações possíveis para incrementar machos e fêmeas, alguns MUD´s oferecem escolhas de gêneros alternativos. O gênero “Spivak” disponível no LambdaMOO, com seus pronomes únicos (“e, em, eir, eirs, eirself”) permitiu que alguns indivíduos burlem as restrições anatômicas humanas bem como os personagens de gênero comuns.19 Por que os pronomes inventados para ele diminuem as distinções de gênero, um Spivak pode ter qualquer morfologia e estrutura genital que “e” desenha “emself”. Twin descreve sua experiência com um corpo de Spivak com uma riqueza imaginativa e uma sensualidade que ofusca o potencial erótico oferecido por encenações superficiais de feminilidade ou masculinidade:

Para mim, o spivak pode se transformar bem rápido...bem, talvez gradualmente...tipo, desenvolver um pênis em poucos minutos...? E dois spivaks significa que um pode modelar o outro, também...se o outro permite as sugestões...e para mim também há essas pequenas extensões... como pequenas raízes de cabelo na raiz de uma árvore...de qualquer forma... esse cabelinhos formam muitas e muitas conexões...Eles são muito sensíveis...e enquanto o sexo vai progredindo...eles pulsam, penetram e até se fundem. Além disso, sexo spivak, para mim, envolvia tons musicais que vinham do fundo do peito, muito como o ronronar de um gato...e pequenos sons de sino daqueles tentáculos.20

As convenções do sexo virtual envolvem uma troca mútua na qual alguém expressa ações na terceira pessoa que esse alguém está fazendo com seu parceiro, que é referido na segunda pessoa. Porque tal troca requer uma interação constante entre o virtual e o real, uma percepção simultânea não só do corpo físico no teclado, o “eu” emocional e falante na tela, mas também a existência de outro indivíduo, real e projetado, que está semelhantemente envolvido – a consciência da mente/corpo não está dividida, mas duplicada, magnificada, misturada.

Dizer que o sexo virtual envolve jogos onde as pessoas estão muito conscientes de si mesmas não significa que os papéis interpretados sejam necessariamente falsos. Como também é verdade em representações teatrais, rituais, liturgias e, em algumas práticas sexuais, um papel dentro de um contexto de uma cena dada pode ser interpretado com tamanho foco e intensidade de propósito que o “eu” torna-se sem sentido, ficando fora do indivíduo em um estado de êxtase, literalmente sendo colocado fora do lugar, capturado, levado à força, arrancado, punido. Quando uma intensa união erótica é realizada em um vazio no qual os corpos são detalhadamente imaginados, sentidos vivamente e totalmente ausentes, o sentimento de captura resultante, de dispersão, de perda de si mesmo pode ser sentido como uma mistura violenta de prazer e dor.

Em “O Ego e o Id”, Freud afirma que “a dor parece fazer parte do processo... pelo qual em geral nós chegamos à idéia do nosso próprio corpo...O ego é primordialmente e sobretudo um ego corpóreo; não é meramente uma entidade superficial, mas é em si a projeção de uma superfície”.21 Sugerindo que a nossa sensação de corporificação é ligada à dor, Freud sugere ainda que a experiência da dor é intrinsecamente ligada à experiência erótica.22 Mais ainda, a intensidade de certos tipos de prazer erótico são derivados não da satisfação, mas da tensão que cresce e se mantém em um nível tão alto que a dor e o prazer são experimentados ao mesmo tempo.

De acordo com Leo Bersani, “a tensão prazerosa/não-prazerosa da sexualidade- a dor de uma excitação que se quebra em várias partes- se direciona em ser mantida, replicada e até aumentada”. Continuando a discussão de Freud, Bersani argumenta que o “sujeito humano se origina de uma sexualidade multi-facetada”, e sugere que o prazer sexual humano bem pode estar ligado ao masoquismo de forma intrínseca.23

A discussão de Bersani sobre o masoquismo poderia ser um modelo útil para calcular o tipo de intensidade que alguns indivíduos experimentam durante o sexo virtual. Para se envolver totalmente no sexo virtual, um indivíduo deve construir um corpo imaginário, transferir sua consciência sensorial para esse corpo bem como para o corpo imaginário do outro que é focado da mesma forma; e, simultaneamente, duplicar e deslocar a sensação física de si mesmo. A intensidade do prazer resulta precisamente deste tipo de auto-divisão sustentada.

Outro modelo, talvez um pouco menos perverso, é a tradição de Amor Cortesão. Como o amante cortesão, o parceiro do sexo virtual imagina cenas de amor com o seu amante que tomam uma intensidade e uma realidade próprias precisamente porque os corpos físicos e reais podem nunca se encontrar. Outra similaridade é que quase todas as trocas se dão através de palavras: poesia, música e conversas. Para existir na realidade virtual, e sustentar o prazer erótico, o indivíduo deve manter seus poderes de linguagem em um momento em que o poder de expressão verbal coerente é normalmente abandonado. A fala e a sensação das partes do corpo físico são necessariamente divididas pela exigência de se manter a linguagem dentro da sensação. Mais do que um vácuo sensual, no entanto, essa divisão pode talvez ser descrita como um espaço muito carregado – o abismo delirante e dilacerante entre a apreensão da linguagem e a implícita e iminente morte da linguagem (do “eu” falante) que Roland Barthes descreve em O Prazer do Texto.24

Paradoxalmente, quanto mais intensamente que os indivíduos experientes em sexo virtual sentem prazer, mais hábeis eles se tornam para evocar intensidades físicas em palavras, saltando sobre o buraco entre o discurso e a ação, liberando a corrida das sensações físicas e o êxtase do autor em produzir texto, estar no texto e estar no corpo de forma simultânea.

Sujeitar-se continuamente a uma condição na qual a experiência física e a emoção são constantemente expressadas em palavras é problemático. Nossa cultura com freqüência considerou que o enorme prisma de emoções e experiências que simplesmente não são passíveis de expressão lingüística não merecem atenção, o que prejudica a saúde emocional. Corpos vivos e reais encontram-se desvalorizados em uma era onde a recepção passiva da informação selecionada veio para repor como realidade a experiência vivida.

Apesar disso, sexo, amor e prazer em qualquer forma bem podem fornecer algum tipo de resistência contra as forças tecnológicas e sociais que nos separam uns dos outros e nos impedem de nomear e modelar nossas próprias experiências. Erotizar nossa tecnologia não significa desistir do fantasma, mas sim entregar-se aos prazeres da corporeidade que se rende sem explicação às divisões arbitrárias entre animal, espírito e máquina.







NOTAS

1 Gibson, William, Neuromancer (New York: Ace, 1984), 51.
2 Haraway, Donna, “ A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist Feminism in the Late Twentieth Century,” in Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature (New York: Routledge, Chapman & Hall, Inc., 1991), 151.
3 Haraway, 150.
4 Foucalt, Michel, A História da Sexualidade, uma introdução, vol. 1, tradução inglesa de Robert Hurley (New York: random House, 1978), 157.
5 Reid, Elizabeth, Cultural Formations in Text-Based Virtual Realities, unpublished thesis, University of Melbourne, 1994, 3.
6 MUD´s (Multi-User Dimensions or Dungeons) Dimensões ou Calabouços de Multi-participantes. N. do T.
7 Reid, 4.
8 Reid, 3-4.
9 MOO´s (Object-Oriented Muds), assim chamados porque sua interface em particular permite a construção e manipulação de objetos programados, os quais podem ser feitos para interagir e também para servir de base para a construção de objetos mais complexos.
10 Reid, 17.
11 Sado-masoquista
12 Role-play, no sentido de atuação, ou “jogos de personagem”. A partir daqui, role-play passará a ser chamado como “jogo”. N. do T.
13 Entrevista com Kanu, DhalgrenMOO, 29 de março de 1995.
14 Shaviro, Steven, “Doom Patrols” (ftp://ftp.u.washington.edu/public/shaviro/doom.html).
15 entrevista com Shade, DhalgrenMOO, 5 de dezembro de 1994.
16 Entrevista com existence, LambdaMOO, 31 de março de 1995
17 Entrevista com Elaine, DhalgrenMOO, 24 de outubro de 1994.
18 Elaine, 30 de outubro de 1994.
19 Essa categoria de gênero foi originalmente empregada por Michael Spivak em The Joy of TEX: a Gourmet Guide to Typesetting with the AMSTEX Macro Package (Providence: American Mathematical Society, 1990).
20 Entrevista com Twin, DhalgrenMOO, 10 de dezembro de 1994.
21 Freud, Sigmund, “O Ego e o Id,” The Standard Edition of the Complete Psychological works of Sigmund Freud (London: Hogarth Press, 1953), vol. 18, 25-26.
22 Freud, Sigmund, Three Essays on the Theory of Sexuality, tradução de James Strachey (HarperCollins, 1962),25.
23 Bersani, Leo, The Culture of Redemption (Cambridge: Harvard University Press, 1990), 36.
24 Barthes, Roland, The Pleasure of the Text, tradução de Richard Miller (New York: Hill and Wang, 1975).





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