Utopia Redux

Karrie Jacobs


Primeiro caiu o comunismo. Depois, houve a campanha publicitária para a bebida Frutopia. Agora, os arautos do ciberespaço, os pretensos digerati, estão promovendo este novo lugar virtual, onde você existe como se estivesse numa terra incógnita, onde podemos começar a vida novamemte.

Passando por alto sua discussão, o conceito de utopia está sendo completamente degradado e comercializado.

Segundo o editor executivo da Wired, Kevin Kelly, no New York Times Magazine:

A razão porque os hippies e as pessoas como eu se interessam por computadores é que eles são miniaturas de mundo, pequenos universos. Existem maneiras de recriar civilizações. Agora podemos fazer a maior pergunta de todos os tempos: o que é vida? O que é humano? O que é civilização? E a maneira de perguntar não é a dos filósofos antigos, sentados em poltronas, mas tentando experimentar realmente a coisa toda. Vamos tentá-lo e fazer a vida acontecer. Vamos tentá-lo e fazer surgir uma comunidade.

Para Douglas Rushkoff, autor de Cyberia:

Quando os programadores de computador e guerreiros psicodélicos perceberem conjuntamente que "tudo é uma coisa só", surgirá a crença comum de que a evolução da humanidade foi uma progressão intencional no sentido da construção da Cibéria, a próxima morada dimensional da consciência.

No New York Times, Louis Rossetto (Wired), afirma:

[Os leitores mais fiéis desta revista] se conectam a nós para se conectar a seus amigos, para se conectarem a uma comunidade, para serem parte de um conjunto de mentes, de uma consciência que transcende os limites dos antigos meios de comunicação. No curso deste processo, começam a construir uma nova sociedade, uma nova cultura, uma nova maneira de pensar a comunidade.

Para John Perry Barlow, co-fundador da Electronic Frontier Foundation:

Todas as relações de poder existentes no planeta estão, atualmente, sendo desmontadas, sendo jogadas para o alto. Em última instância, qualquer coisa que for centralizadora será minimizada e amplamente redistribuída.

Redistribuição de poder? Qual? Eu não acredito que Kelly, Rushkoff, Rossetto e Barlow não saibam mais. Eu não acredito que eles não entendam que a cultura eletrônica na qual eles operam ainda é amplamente administrado por homens brancos, ainda é glosada por eles (cf. Sinopse: o futuro do futuro, Wired, outubro de 1995) e, enfim, dominada por grandes corporações, como a ATT, Microsoft e Sony.

Dentro deste novo mundo, aquele que começa onde as pontas de nossos dedos tocam o teclado e termina em um site da web fazendo propaganda do mais novo modelo da Chrysler ou em uma discussão da BBS do filme Kids, encontramos apenas a velha vida e as velhas comunidades. Quando as pessoas colocam suas máscaras eletrônicas, disfarçando sexo, raça e atributos físicos, geralmente elas apenas brincam com o personagem deles mesmos. Quando as corporações entram no mundo on-line e nos convidam a interagir, elas estão vendendo os mesmos produtos que elas vendem em outdoors, comerciais de televisão e cupons de jornal.

O mundo deste lado da tela do computador é a continuação do mundo do outro lado, tanto que até mesmo o serviço secreto se faz presente. Em setembro, seu pessoal anunciou a descoberta de seis hackers acusados de negociar códigos de telefones celulares roubados. Aparentemente, os delinqüentes não tiveram nenhuma restrição em discutir atividades deles em uma BBS dedicada aos tópicos de fraudes de telefones e cartão de crédito. O serviço secreto tinha armado para eles. Será que os hackers realmente acreditaram que a rede era um ambiente anárquico, no qual os agentes federais não iriam entrar ?

Eu concordo com um dos mais duros críticos da cultura do computador, Jerry Mander, quando ele afirma que "os únicos problemas que serão solucionados peos computadores são os problemas que as corporações fazem frente".

Os cibermascates são parte de uma longa tradição, estão fazendo o que os vendedores sempre fizeram: eles nos vendem uma nova tecnologia ou um novo pedaço de terra, e nós investimos nisso nossos sonhos e esperanças. Abandonamos o mundo tal como o conhecemos e vamos em frente, acreditando que será melhor. Nossos avós fizeram isto, viajando em alojamento de terceira classe até chegar à outra dimensão. Nossos pais iam às feiras mundiais e voltavam inspirados, acreditando no futuro de acordo com General Motors. Nós ouvimos o barulho de nossos modens e acreditamos que o que estamos ouvindo é música-tema de uma nova sociedade.

Desejo crer que existe pelo menos uma verdadeira qualidade utópica na rede: a padronização.

Descrita por Thomas Morus em 1516, a utopia original era uma ilha escondida no hemisfério sul do ainda grandemente inexplorado Novo Mundo. Os utopianos, tanto mulheres quanto homens, trabalhavam seis horas por dia no negócio que escolhessem e viviam em grandes famílias; não tinham dinheiro e selecionavam todas as suas necessidades de gente do século XVI numa espécie Wal-Mart gratuito. Ouro e prata eram mantidos apenas para cobrir as despesas com gastos de guerra (geralmente travadas por mercenários estrangeiros) e, quando não era preciso, eram derretidos e guardados na forma de vasos e grilhões nas pernas dos escravos, que convenientemente faziam os serviços sujos da nação.

Choca-me na opressiva e familiar qualidade da Ilha de More sobretudo o fato de os utopanos não poderem escapar ao confinamento de suas próprias vidas, porque todos os lugares da ilha eram iguais a qualquer outro lugar: "Existem 54 cidades na ilha, todas espaçosas e magníficas, com língua, costumes, tradições e leis idênticas". "Desde que o local permita, são todas construídas segundo o mesmo planejamento e aparência", escreveu Morus.

Morus poderia estar escrevendo os sobre shopping centers note-americanos ou sobre nossas redes hoteleiras, mas sua descrição também pode ser aplicada às cidades construídas pelos arquitetos soviéticos, 450 anos depois da sua morte, com seus blocos de apartamentos idênticos, com uma praça pública a cada um a ou duas milhas, uma área de comércio, um restaurante e um centro comunitário.

Reflexo da utopia original - uma palavra que literalmente significa lugar nenhum - também pode ser visto na maneira como os designers de sofware reempacotaram o mundo. Você pode ir a qualquer rede com o netscape, e mesmo assim você ainda estará dentro do esquema familiar do seu navegador. Como a utopia de Morus, a rede é um lugar onde "conhecendo uma de suas cidades, você conhece todas". Pulando de web site para web site, ou pegando dinheiro em um caixa eletrônico, o mundo eletrônico é um lugar para número limitado de gestos.

Certamente que o sucesso de um filme e da televisão reside em sua habilidade de ligar ou criar um canal com as fantasias de nossas vidas em formatos familiares. Online, porém, todos os aspectos de nossas vidas - compra na mercearia, religião, sexo, conversa - são sujeitos a mesma formatação. Os espaços são divididos em retângulos de texto ou imagem. Digitamos, clicamos, respondemos "sim", "não" ou "cancelamos". A rede aspira a vastidão do planeta para dentro de alguma coisa clara e gerenciável.

"Aonde quer que eles vão, apesar deles nada pegarem, não falta nada, porque eles estão em casa em qualquer lugar", escreveu Thomas Morus.

"Esta é a minha casa", afirmou, segurando o seu power book, o andarilho planetário John Perry Barlow em uma conferência, no ano passado, em Amsterdã. Depois disse que o ciberespaço deverá crescer no sentido de se tornar uma "consciência global coletiva, esperta o bastante para manter Deus em companhia, tornar um grande ecossistema da mente".

Como os utopianos, talvez venhamos a descobrir que não existe escapatória mesmo nos confins das nossas vidas. A utopia antiga era uma ilha, a nova é um mundo enfiado dentro de uma caixa.




Tradução de Lisandra Reis de Souza. Revisão de Francisco Rüdiger.





* "Utopia Redux" (Internet, 1996). In Peter Ludlow (org.): Crypto anarchy, cyberstates and pirate utopias. Cambridge (MA): MIT Press, 2001.
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