Pigmaleão:
silêncio, som e espaço


Sean Cubitt


Há uma certa
quantidade de viagem
em um sonho postergado
(Hughes 1974:270)

 

Silêncio

Anos atrás, num remoto vale na parte norte de Quebec, eu ouvi pela primeira vez os sons que me permitiram entender linhas escritas 3000 anos antes:

Tento lembrar a pausa, thock, pausa,
Feita por lâminas de machado enquanto elas passam
Umas às outras através de uma madeira preciosa.
Apesar de o trabalho ter lugar no longínquo
Lado de um vale, e os golpes de machado são
Silenciados por profundezas de calor, ar parado e estagnado,
Eles pulsam, pulsam, perto de seu ouvido;
E aqui e ali você captura uma frase
Trocada entre os homens que trabalham
Mais do que uma milha adiante, com perfeita claridade.
(Logue 1988: 26)

O barulho da população da Europa torna impossível ouvir com tal pureza de tungstênio o ordinarismo do som. Homer força a intimidade do escutar, enquanto ele compara as batidas de uma bateria ao retinir da espada na espada no meio da batalha, uma acutância sensorial que é largamente perdida ao sobrecarregado vazamento de som do contemporâneo. Essa perda talvez explique por que nós acabamos por gostar do silêncio e propô-lo como uma faceta central da apreciação estética.

Em 1952, o compositor John Cage visitou uma das câmaras anecóicas no laboratório psicoacústico da Universidade de Harvard, um quarto desenhado para absorver quase todos os sons produzidos nele. Cage podia, contudo, ouvir dois sons distintos: um pulso baixo, vibrante e um tom musical alto. O engenheiro no comando explicou que o primeiro era o som do seu sangue, o último, do sistema nervoso central. “Tente, como nós vamos, fazer silêncio, nós não podemos,” Cage observou. “Nenhum silêncio existe que não esteja grávido de som.” (Revill 1992: 162) Para Cage e para a cultura moderna, segue que o silêncio é um estado desejado, em que tanto o mundo do som exterior e o corpo que ouve são igualmente ignorados.

Mesmo em uma galeria cheia de gente, nós buscamos uma quietude interior que associamos com a extasiada meditação do objeto estético. A autonomia da obra de arte de Kant (1952 [1790]) a Greenberg (1992) produziu essa ilusão ímpar de silêncio no meio da multidão. O silêncio da obra de arte visual não é uma qualidade inerente da arte visual, mas o produto histórico de sua constituição como mensagem e de sua apreciação desmaterializada, do desinteresse kantiano ao imaterialismo pós-estruturalista. Até mesmo a música atingiu um certo silenciamento, não apenas do ouvinte, mas do trabalho em si, no prestígio alcançado à pureza de padrão em, digamos, Arte da Fuga de Bach, uma inteligência algorítmica extra-sensível que transcende as excentricidades da performance, o corpo subjugado e as vibrações materiais do ar e do ouvido. O grande empreendimento de Greenberg foi dar um pouco de matéria de volta à arte, mas, ao enfatizar a média-especificidade da pintura em particular, ele contribuiu obliquamente para o silenciamento da arte e seu consumo. Trabalhando com um conceito similarmente som-específico de autonomia musical, tanto Stockhausen quanto Cage, em modos muito diferentes, lutaram para restituir à música, através de novos modos de escutar e novos princípios estruturais, um senso de materialidade sonora. Esse mesmo passo, ao renovar a confrontação entre auditor e vibração, dá ao ato de escutar uma materialidade que este havia perdido. O momento utópico de silêncio, como o claro mundo-sonoro de Homer, pode já ter passado, apesar de a estética do puro ouvir, uma devoção à autonomia do som, persiste, e vai nos levar na direção da necessidade e dificuldade radical de verdadeiramente reunir mídias audiovisuais.

Pura audição

Christian Metz identificou uma dificuldade no caminho da pura audição em um ensaio originalmente publicado em 1975, onde ele argüiu que:

se eu ouvi distintamente e conscientemente uma ‘dobra' ou um ‘assobio', eu apenas tenho a sensação de uma primeira identificação, de um ainda incompleto reconhecimento. Essa impressão desaparece apenas quando eu reconheço que isso foi a dobra de um rio, ou o assobio do vento nas árvores : em suma, o reconhecimento de um som leva diretamente à questão: “Um som de quê?” (Metz 1980:25)

A questão pode ser respondida com a ajuda de um princípio semiótico, a metacodificação do som na linguagem: uma duplicação sobre a qual se dá à percepção do som um significado socialmente construído. Há uma pressão, no escutar, a não escutar o som mas o nome do som, para inferir de sua fonte, ou para imputar a ele uma certa função semântica. Então, em vez de ouvir o que a coisa é em si, nós ‘reconhecemos' o som, através do qual nós podemos identificar o que o está produzindo e dizer a nós mesmos ‘Agora eu entendo.' Quando isso acontece – por exemplo, quando você ouve um rangido e diz, ‘Isso é aquela lajota solta' – você desloca o conteúdo da percepção do ouvido para a lajota, e o ato da percepção da vibração ar/ouvido para um reconhecimento verbal. Como Metz conclui,

Nós nos encontramos bem longe, poderíamos dizer, do ‘espetáculo adverso' do sujeito e objeto, do cosmológico tanto quanto existencial (ou no mínimo transcendental) ‘há' no qual a fenomenologia desejada para estabelecer nossa presença nos objetos e a presença dos objetos em nós. Não tenho tanta certeza, ou de outro modo essa ‘distância' é ao longo de certas formas, e não implica uma completa ruptura do horizonte. (Metz 1980: 31-2)

Antes do stress, a permeação comum do som através do ouvinte e o mundo, essa audição codificada enfatiza a oposição entre sujeito e objeto, reconhecendo a natureza histórica da audição como uma habilidade adquirida, formatada nas determinações de uma cultura específica. Metz salienta uma divisão formal, senão originária, da audição e da visão. Em contraste, o fenomenologista Merleau-Ponty descreve uma situação em que:

nem o som nem a cor, através de suas próprias configurações, jogam um objeto em alívio, como por exemplo um cinzeiro ou um violino, e esse objeto fala diretamente a todos os sentidos; de outro modo, na outra ponta da experiência, o som e a cor são recebidos para dentro do meu corpo, e se torna difícil limitar minha experiência a apenas um departamento sensorial. (Merleau-Ponty 1962: 227)

Aqui, nem o objeto se apresenta à percepção como um todo, nem o corpo experimenta seus sentidos como uma unidade, mas em nenhum caso, som e audição são um. Por outro lado, talvez porque seu argumento depende do intervalo entre sujeito e objeto construído pelo som gravado, separando ouvinte de ouvido. A relação semântica de Metz da audição codificada sugere uma instrumentalização do escutar, a administração do aparato sensório em uma hierarquia semântica. Esse tipo de audição não é pelo prazer em ouvir, mas por nomear e controlar o mundo do som e o poder somático da percepção. Metz entende isso como um fenômeno sociológico, como algo dado no contexto cultural contemporâneo; nós deveríamos ser prudentes para não confundir com uma qualidade inerente de todo o escutar. E mesmo, há uma tendência nas artes acústicas contemporâneas especificamente oposta à semanticisação do som em qualquer forma.

Em seu Traité des objets musicaux (1966), o compositor Pierre Schaeffer argumenta pela autonomia de uma fase de audição anterior mesmo à ‘primeira identificação' de Metz, um ‘escutar reduzido' que evita tanto a definição causal quanto a descrição afetuosa/semântica ao focar nas qualidades acústicas do som em si. Em seu comentário sobre Schaeffer, Michel Chion explica que ‘A percepção não é um fenômeno puramente individual...esta nesta subjetividade nascida no meio da objetividade que reduzida a escuta, como Schaeffer define, deve ser situada' (Chion 1994: 29). O que você escuta out for no escutar reduzido é precisamente o que é compartilhado: o que qualquer um pode ouvir, um tanto distante de suas interpretações. Esse modo profundamente não-natural de escutar ‘acousmatic'(tudo que transmite sons sem mostrar seu emissor são meios acousmatic, ex: rádio, fonógrafo, telefone) faz nascer uma formação distintiva do sistema sensório auricular, que, na tipologia de Schaeffer, desenvolve um vocabulário escultural de texturas, massas e velocidades. Além disso, dependente como isso é, na prática, da audição exatamente o mesmo som em exatamente o mesmo ambiente acústico, isso é particularmente aplicável ao som gravado, apesar de claramente um ouvido treinado – as anotações de Olivier Messiaen de músicas de passarinho vêm à mente – será capaz de responder aos mais efêmeros eventos do ambiente sônico. E finalmente, sua atenção greenbergiana ao tecido do meio, a coisa em si, antes de idéias inferidas sobre sua produção ou sua recepção, nos permite perguntar o que um som puro poderia ser, e que relação ele poderia ter com a utopia da modernidade acelerada. ‘Não menos entre essas qualidades serão a identificação' do que pode ser compartilhado na percepção do som como massa, textura, velocidade.

Microritmos e microtonalidades, mesmo nanoritmos, nanotonalidades, caracterizam algumas das mais acústicas das músicas contemporâneas, como exemplificado nessa seleção ‘perto-aleatório' de uma de outra maneira inextraível entrevista com Stockhausen, descrevendo o capítulo Áries de sua enorme obra Sirius.

No fim uma pessoa não recebe nada exceto um único som de uma certa densidade, similar a um murmúrio. Ao seguir a tendência oposta, do outro lado, que um gradual rallentando, as melodias assumem forma novamente, os sons gradualmente se tornam mais claros. O limite melódico é definido claramente com seus ritmos, suas freqüências de som e seu conteúdo intervalar. Nesse ponto começa a redimensionalização dos sons, que contraem e encolhem. A melodia torna-se condensada e comprimida, como se um gigante fosse reduzido ao tamanho de um anão. Você volta de novo à percepção de não mais que um ímpar, solitário som, enquanto o ritmo continua a seu modo, um tenaz sobrevivente trancado em uma única linha. (Tannenbaum 1987: 53)

Stockhausen segue em descrever processos similares que ocorrem com o ritmo e sua progressiva aniquilação, após o que nada resta, mas puro timbre, do qual a obra é reconstruída. Originada como tons puros ou como samples ao vivo de transmissões de rádio, a composição decompõe sons em espaços musicais, desfazendo a estreita instrumentalidade do escutar semântico. Stockhausen afirma o fato bruto do som como percepção aural. Como músico, ele está preocupado com a prática material do fazer dos sons, mas é feliz em alocar controle sobre fontes e modulações à chance, ou à discreta lógica da composição do som, livre da referência da melodia, harmonia, contraponto ou os objetivos tradicionais da música. Os sons autônomos de Stockhausen são distâncias navegáveis, que são tanto do mundo humano quanto não o são, explorações da automonia diáfana da música, até mesmo de suas próprias histórias.

Porque, afinal, nós não, e isso é impossível, distinguimos entre a vibração do ar, a vibração da membrana timpânica e dos ossos (os pés, depois dos ouvidos, são nossos receptores mais sensíveis, especialmente de notas de baixo; a clavícula e o peito respondem a sons mais aéreos), e os eventos neurobiológicos que, em associação, nos propiciam o evento mental da percepção do som, eventos sonoros criam um espaço sem respeito pela sacrossantidade da epiderme na filosofia ocidental. Além disso, assim como o olho é uma fonte de luz, mas muito mais, o corpo é uma fonte de som: o pulsar do pulso, o ritmo da corrente sangüínea, o choro alto do sistema nervoso central. Toda audição é feita da interferência entre esses sons corporais e aqueles que entram nele de fora dele, atravessando-o com vibrações e fluxos eletroquímicos. Ao mesmo tempo, a fonte do som e a percepção do som estão fisicamente conectadas, pelo ar, pela proximidade, e ouvir um batida vibrante de baixo pela pista de dança, pela matéria sólida: a interpenetração fenomenológica do objeto e do sujeito é muito mais difícil de desfazer nas “aural” do que nas artes visuais.

Ao mesmo tempo, há dois aspectos da natureza social da audição. De um lado a “acousmatic”: o que é comum em qualquer percepção de um som, a solidariedade fisiológica da audição. De outro, o codificado: a separação semântica e instrumental do objeto sonoro e sujeito da audição efetivado através da semiótica e, então, códigos sociais de linguagem e nomeação. Alguém pode entender as lutas sobre o significado do som, especialmente da música, como lutas sobre os tipos de socialidade que estão implícitos neles.

O mais persuasivo desses modelos aparece na dialética da chance de habitando a audição o 4' 33” de John Cage, de 1952, três movimentos desempenhados pelo fechar a tampa de um piano por períodos medidos adicionando até quatro minutos e trinta e três segundos. Cage estava no momento no propósito de um modo de composição que poderia obliterar o ego através do uso da chance. No ano anterior, ele começou a usar o I Ching como um meio de remover controle de composição sobre a produção da música dentro de um sistema régua-limite. Agora, ele removeu o conteúdo máximo da música, reduzindo-a a pura duração. Ainda dentro do tempo marcado para fora, as relações entre sons assim como os sons em si assumem um tipo de liberdade: ‘alguém pode desistir do desejo de controlar o som, limpar sua mente de música, e estabelecer que quer descobrir meios de deixar os sons ser eles mesmos, antes de veículos de teorias feitas pelo homem ou expressões de sentimentos humanos' (Cage 1994; 8-9). Assim como a arte foi transformada pela Fonte de Duchamp (1917), o mictório com a assinatura R. Mutt, também a música, e as artes auditivas que agora podem emergir de sua sombra, são totalmente mudadas por 4' 33” .

A composição de Cage precisa não ser definida negativamente, como a negação do controle humano e limitação do universo acústico, nem simplesmente positivamente como a abertura do senso de beleza aos sons do cotidiano. Em uma futura peça de companhia, 0' 00” , mesmo o controle sobre a duração seria retirado, para revelar a pureza dos sons e para refrescar as possibilidades do escutar o mundo. Ainda ao mesmo tempo, em um brilhante ensaio, Douglas Kahn pode argüir convincentemente que:

A principal estratégia avant-garde na música de Russolo a Cage dependia bem evidentemente de noções de ruído e som de palavra como ‘extra-musicais'; o que estava fora da materialidade musical era então progressivamente trazida de volta para dentro da congregação a fim de rejuvenescer a prática musical... Mas para um som ser “musicalizado” nessa estratégia, ele teria que estar em conformidade materialmente com idéias de sonicidade, isto é, idéias de um som despido de seus atributos associativos, um som minimamente codificado existindo em proximidade à ‘pura' percepção e distante dos efeitos contaminantes do mundo. (Kahn 1992: 3)

Há dois elementos na crítica de Kahn. De uma parte, o novo escutar cageano é acusado de abandonar o mundo como conteúdo, e de produzir um espaço de puro som no qual os sons mais feios e os mais belos pesam igualmente. A crítica não apenas reside na quietude budista de Cage, mas evoca a crítica de Benjamin da fotografia de Neue Sachlichkeit , que ele acusou de ‘tornar abjeta a pobreza em si, ao manejá-la de um modo modista, tornando-a um objeto de divertimento' (Benjamin 1973a: 95). Tal mundo de som, como o silêncio demandado pelo consumo meditativo da arte, como a negação do corpo como uma fonte de som, apaga o mundo como intrínseco ao ruído.

O segundo elemento da crítica de Kahn está implícito nas próprias ambigüidades de Cage sobre o significado de 4'33”. Por um tempo, no discurso de 1957 citado acima, ele fala de sons em liberdade, em uma nota de programa mais antiga citada por seu biógrafo, ele fala do descobrir que, no uso de sons encontrados e instrumentos, ‘nós dominamos ou subjugamos o ruído. Nós nos tornamos triunfantes sobre ele' (Revill 1992: 64-5), um credo apoiado por uma nota do poeta William Carlos Williams a First Construction, de Cage, de 1939: ‘Eu senti aquele ruído, o ruído desvinculado da vida, assim como esse no metrô... fora na verdade dominado, subjugado. O compositor tomou essa coisa odiada, vida, e equipou ele mesmo do poder sobre ele pela música' (Revill 1992: 65). Como admitido, 4'33” representa um significativo ponto de virada nos métodos de composição e direção musical, mesmo metafísica. Apesar disso a crítica de Kahn permanece firme: a peça simultaneamente coloniza e apaga o mundo abaixo do sistema semiótico da música, mesmo no ato de refazer o aparato musical, para que então aquela possa colonizar.

A peça, então, não é dialética, mas uma oscilação entre sujeição a um mundo, incluindo o corpo, que é modelado como completamente externo ao sujeito musical, e a objetificação radical do mundo como composição musical. Com efeito, a peça pode ser discutida, ser psicológica antes que estética, produzindo um certo modo de subjetividade de ouvidor e ouvido. Apesar disso, ela abandona a semântica e o instrumental, ela o faz ao fingir uma espécie de realismo. Assim como o realismo do século XIX, os elementos atendem em ser desprezados e excluídos do som-mundial; como a seqüência de doze tons de Schoenberg, ela abandona a hierarquia entre as notas em favor de uma relação democrática. Todavia, ao mesmo tempo, a democracia a que se refere é aquela da infinita troca de bens finalmente intercambiáveis. Realmente, Adorno poderia quase ter pensado no 4'33” quando escreveu:

Os pólos do trabalho artístico são isso que é feito tanto quanto uma coisa entre coisas quanto um veículo psicológico do espectador. O que as obras de arte reificadas não são mais capazes de dizer é substituído pelo observador com o eco padronizado de si mesmo, ao qual ele escuta. Esse mecanismo (...) faz com que isso pareça próximo e familiar a sua audiência, que foi afastada delas e trazida novamente para perto somente por ter sido heteronomamente manipulada. (Adorno 1997: 17)

A pureza da pura audição, os machados de Homer, é irrecuperável. O que 4'33” nos apresenta, então, não é os sons não-mediados do mundo, nem a liberação da música de sua própria autonomia, mas a transformação do som como música na forma atual de não comercial, sem valor de uso, uma pura ostentação de gosto. Como Attali observa, quando Cage abre a porta para o salão de concertos para deixar o barulho da rua entrar, ele está regenerando toda a música (...) Mas o músico não tem muitos meios de praticar esse tipo de música entre as redes existentes: o grande espetáculo do ruído é apenas um espetáculo, mesmo que seja blasfemo' (Attali 1985: 136-7). Como composição, 4'33” faz um espetáculo auditório do mundo, assim como o culto do pictórico e o sublime romântico transformaram terra vulgar em paisagem. A regeneração da música é atingida às expensas de sua demolição, o refazer do conjunto maquinal da música. A peça, então, é meramente um exemplo de codificação aberrante, a subversão de redes, práticas, instituições, discursos e tecnologias existentes que formam a música como uma arte. Ela falha em desfazer o aparato, porque ela determina a si mesma a tarefa menor de resistir a ele. E de modo curioso, a reivindicação pela imediação, falha especificamente ao lidar com a condição mais importante do som no século XX, sua mecanização.

Gravação: a Mobilização do Som

Quando o professor Higgins aproxima-se agressivamente da garota-flor Eliza no Covent Garden para gravar suas vogais estranguladas, no Pygmalion de George Bernard Shaw (1941 [1912]), ele é impedido em sua tortura imprudente pela chegada de Colonel Pickering da Índia Service. Higgins, no começo um fanfarrão ansioso, amolece e se dá conta que este é Pickering, o autor de ‘Spoken Sanskrit'. Sobre a cabeça confusa da classe trabalhadora Shavian, Higgins e Pickering falam por dois modos alternativos de gravar. A stenografia de Higgins, mais especificamente seu fonograma, é o equivalente auditório do ‘pincel da natureza' de Fox Talbot, a recuperação mecânica e armazenamento do som, puro realismo empírico. Mas sânscrito falado?

Sânscrito, o membro mais velho da família indo-européia de línguas, floresceu como língua falada cinco ou seis milênios atrás. Hoje ele sobrevive como corpus literário. Contudo, um elemento auditório ainda resta. Os antigos hinos dos Vedas têm poder mágico, mas somente se cantados corretamente. Uma antiga linhagem de instrução oral preservou essa pronúncia. Shaw, o teosofista amante de Annie Besant, pode bem ter estado a par da tradição que jaz abaixo do aparentemente academicismo fonológico sem significado. Não importa se ele estava ou se não. Pickering defende, brevemente, uma outra tradição de gravação, utilizando seres humanos como meio de armazenamento, um raro, puro exemplo da idéia em operação (veja Dawkins 1989: 192-201; Dennett 1991: 200-10). A tradição védica oferece uma alternativa ao mecanismo de Higgins tão profundamente conservador quanto o fonógrafo de Higgin é profundamente normativo.

A memória é uma sorte de laceração. As faixas da memória são depositadas nos primeiros meses de vida, enquanto os rizomas sinápticos começam a ossificar dentro do mapa rodoviário do hábito infuso (Changeaux 1985: 249; Rose 1993: 140). Nesse processo, os poderes mágicos e transformadores da criança narcisista são dispersados, em favor de um crescente e complexo hábito de sobrevivência. Mas externalizações cognitivas de memória, como um fundo de data e diagramas , perde a mutualidade da vida contemporânea, para a qual você tem que aprender um vasto número de protocolos adaptáveis para sobreviver em ambientes de confiança de risco como os sistemas tecnológicos de transporte dirigidos por peritos (Giddens 1990: 79-111) – ou seu servidor de Internet e a Internet em si. Tais memórias não são localizáveis em uma mente ou cérebro individual, mas os caminhos que interligam indivíduos que sempre foram figuráveis, embora de modo diferente em diferentes tempos e lugares, como as memórias entalhadas na ferramenta que lembra a mão do seu fazedor, a velha vassoura que lembra onde o pó está, o agrupamento de máquinas que lembra os sistemas de conexão. Nem a memória é um banco, no qual as experiências podem ser depositadas e os mapas cognitivos, retirados. É mais um fluido do que um sistema de conexões. O duplo erro do trabalho de memória contemporâneo foi individualizar e externalizar que a memória existe apenas como comunicativa, e na qual nossos aparatos sempre figuraram como mais do que relativos à memória.

A memória e o esquecimento governaram a percepção do som antes da gravação, quando não existia tecnologia para gravar sons e vozes do mesmo modo como paisagens e faces poderiam ser preservadas através da pintura e da escultura. O som é profundamente temporal. Ele não pode ser congelado, como uma imagem: sua própria essência depende da materialidade do ar em movimento, de pressões cambiantes, de vibração. Sons, mesmo os mais ligeiros e mais minuciosamente percebidos, ocupam o tempo por causa de sua existência como vibração. Em alguma noite inimaginavelmente quieta, sem vento e serena, um alfinete cai na lama macia: uma pequena queda no manancial do silêncio. Mas o que você experimenta aqui não é apenas o som, e o tempo de sua percepção, mas o tempo que leva um som para cobrir o espaço entre você e ele, e a conseqüência da percepção, enquanto o silêncio re-forma a si mesmo sobre ele, e você espera por uma repetição ou continuação, uma terceira vez. Esses tempos constituem uma forma de distância, a mistura de tempo e espaço. Os tempos do som são também elementos de sua geografia. É na natureza do som, quer isso seja informação conveniente sobre um mundo já conhecido, agindo como o veículo para o padrão e para a estrutura independente de suas vozes, quer meramente duplicando as certezas preexistentes de um metacódigo verbal, para ser redundante. Isso é precisamente o que permite a possibilidade da autonomia do som, mas também é o que o nos volta a um ambiente humano, e, ao mudá-lo de mero veículo para mediação material, re-situa-o nas distâncias entre as – e dentro das – pessoas. Por causa de sua transitoriedade, os sons ancoraram as espécies nos processos do tempo, irreversibilidade trágica da mudança, condoídas pelas falas de Catullus, ‘o que uma mulher diz a seu amante no ato do amor / deveria ser escrito no vento e água corrente' (Catullus, Poema 70; 1970: 72), e um milhão de outros poemas. Justamente o que importa mais – os relacionamentos entre as pessoas – desaparece mais rápido e mais completamente. Essa efemeridade material é reestruturada em suas raízes mais profundas com a invenção da gravação. Adicionar gravação à tradição tem um simples efeito: liberar o resto da mente para ouvir ou outras ocupações. Isso nega a memória ao substituí-la com um armazenamento externo. Acima de tudo, isso separa a memória do som da voz humana, do agente humano.

Na versão de Ovídio da história de Pigmaleão, enquanto as preces do escultor são atendidas, e sua amante esculpida vem à vida, o prazer da ligação entre as tecnologias do dia e o gozo sensual é descomplicado:

... o marfim polido suavemente, e pondo bem de lado
Toda dureza, gritada debaixo de seus dedos como vemos
Um pedaço de cera feita suave contra o sol, ou desenhada para ser
Em formas de mergulhadores ao aquecê-lo entre as mãos de alguém e então
A servir para usos. Ele, impressionado, ficou hesitando em voltar atrás
Entre alegria e medo de ser enganado; novamente ele ardia em amor
(Ovídio x, 248ff; 1939: 310)

Esse padrão tátil é suprimido na versão de Shaw. O trabalho de Higgins é sublimado das mãos para o ouvido, pelo meio do fonograma, cuja agulha e cavidade promulgam sua luxúria proibida. A versão Shavian forma parte de um súbito interesse no mito entre artistas como Gérome e Burne-Jones e dramaturgos como George du Maurier, em cuja peça Svengali atua como Pigmaleão. Para teóricos do cinema, o apogeu do ciclo chega com L'Eve future de Villiers de l'Isle-Adam, de 1880-1, em que um Thomas Edison ficcionalizado inventa uma mulher mecânica na imagem narcisística do protagonista, Lord Ewald. Para Michelson (1984) e Bellour (1986), a mulher ideal então criada simboliza a política sexual do cinema. Mas a utopia da estória deriva da pornografia escondida atrás do corpo mecânico, permitindo-lhe falar e, através de uma inteligente e não tão impossível tecnologia imaginária, conversar. A ilusão é aquela do livre-arbítrio; a garantia de que tal liberdade sempre se adaptará ao desejo de Lord Ewald. Ao mesmo tempo, claro, a mulher ideal é ideal porque mecânica, dizendo sempre o que ele quer ouvir. A gravação é então uma tecnologia formada nos traços do metacódigo de Metz, um modo de controlar o espaço sonoro, de modo que ele sempre irá adaptar-se a uma expectativa já catalogada, magicamente adaptando nosso desejo de ouvir com o som desejado.

A invenção da gravação eletro-mecânica e sua evolução até a digital duplicaram a quantidade de sons no mundo. Ambas são parte dos mundos de som que habitamos, junto com o rio e os furos de pneumático, o teclado barulhento e o zunido do refrigerador. Não mais banhada pela intensidade mágica que envolve qualquer nova tecnologia com glamour, a gravação de som esquadrinha suas ‘particularidades' dentro da paisagem fônica, integra-se com ela mesmo enquanto ela mantém suas qualidades distintivas. Ela tornou o estranho familiar. Mas enquanto as tecnologias de portabilidade e de radiodifusão aceleraram o potencial para a comercialização e instrumentalização. A única arte global do som é a indústria da música e as exportações audiovisuais. Seu critério é que o som seja restituído como objeto, de modo que ele possa ser usado. Os círculos estreitos concêntricos do fonograma eram, para o professor Higgins de Shaw, uma utilidade para controlar o futuro. Certamente, toda gravação é uma peça do passado restaurável ao presente, mas o ato de gravar é também uma tentativa de assegurar aquela peça do futuro quando a gravação vai ser tocada. Mas o que é controlado perde sua vida, sua capacidade de evoluir. Assim foi o destino da sinfonia européia na era da gravação do som. Refinado e definido crescentemente rigidamente para dentro de uma hierarquia de formas dependentes da fidelidade a uma partitura escrita e preservada (de acordo com Michael Chanan 1995: especialmente 116-36), o repertório orquestral ossifica. O culto associado de autenticidade em tempos, instrumentação e interpretação abreviam radicalmente o espaço emocional das performances clássicas. As possibilidades mais recentes de remasterização de gravações ao vivo usando samples de fita entrelaçadas e edição digital finalmente livram o artista da escravidão da perfeição, enquanto dá ao produtor as ferramentas para criá-la. Ainda assim, essa perfeição tende, mais uma vez, a uma forma idealizada, o ideal de um espaço puramente acústico, um texto puro e pura instrumentação. Aqui a integridade da mensagem triunfa às expensas da evolução da cultura.

Eu nunca seria capaz de começar a entender a música de câmara de Schoenberg sem a ajuda das gravações. O processo de escutar nunca é algo de pura repetição, especialmente no caso de obras complexas que demandam uma certa concentração. Porém, essa mesma tecnologia, como uma técnica de repetição, também é regressiva, no sentido de que produz um fantástico sistema de controle sobre um ambiente transitório. No entanto, como Rick Altman mostrou, a repetição também é subitamente invadida pelo ambiente que procura comandar: ‘Não somente eu escuto a fabulosa acústica do salão de concertos do lar da Cleveland Orchestra, mas ao mesmo tempo eu tenho que armazenar com a acústica menos que ideal da minha sala de estar. Todo som que escuto é, portanto, duplo, marcado tanto pelas circunstâncias específicas da gravação quanto pelas particularidades da situação da reprodução' (Altman 1992: 27). Não apenas o playback será acusticamente alterado da origem, mas a gravação é separada do playback pela definição – os dois podem apenas destruir um ao outro no ruído branco do feedback , a menos que as regras da distância sejam respeitadas. Nesse sentido, as tecnologias de gravação são como fotografias, dependentes da ímpar dialética da presença e ausência, em que a presença da gravação demanda a ausência da performance, uma distância que é ao mesmo tempo temporal e geográfica.

E então esse momento de gravação é também o ponto em que os sons tornam-se espacialmente móveis – e plurais. Um som gravado ou recordado pode ser recuperado não só em outro tempo, mas também em outro lugar. Tempo e espaço são reconciliados na descorporificação do som, sua separação de seu ponto de origem. A adição de tecnologias de transmissão – escrita fonética, telefonia, radiodifusão, amplificação – meramente acelera o processo de distanciamento da origem. O processo em si é antigo. O fenômeno fônico sempre viajou: os nomes de Moctezuma e Chingis Khan ecoavam pelos continentes. Mas não só nomes, mas também vozes podem viajar. Elas podem ser ouvidas mais rapidamente, e talvez essa mudança quantitativa tenha trazido uma mudança qualitativa no sentido que podemos atribuir ao som mediado. As tradições mnemônicas podiam relembrar apenas a voz humana, e, da voz, apenas sua pronúncia e entonação, mas não seu grão, a particularidade, mesmo imparidade, de uma fala de pessoa sequer. A oralidade preserva uma qualidade abstrata da voz, não sua materialidade. As tecnologias da gravação procuram restaurar o material, mas tropeçam, porque cada playback modula o som – de fala, digamos assim – não só por causa da nova situação acústica do playback , mas também por causa dos sistemas de amplificação que não funcionam como a voz em si. ‘Ao mais leve toque,' cantam Flanders e Swan, ‘eu posso fazer Caruso soar como Hutch.' A gravação mecânica do som ‘residuais' a voz na problemática da representação. Ela a toma como sua fidelidade de objetivo, antes de construção, o falso materialismo da réplica da origem. Com a gravação, os sons não são meramente duplicados. Nas segredos da fidelidade, o som torna-se sons: multiplicando-se em sua dispersão e em seu constante refúgio em direção a um original que eles não podem mais acessar.

O som foi sempre situado porque ele foi sempre físico. Ele borbulhou da víscera molhada do corpo, o rolar da água, o impacto do bronze na madeira, para preencher o espaço do ouvido, o vale, o campo de batalha. Esse material de som articulou o corpo com o mundo em sua comunhão, eles compartilharam a existência. O som gravado, contudo, duplica o som do lugar com uma arte de disseminação. Essa é a fonte daquele senso que nós temos às vezes de que a música é insubstancial, não porque não pode ser preservada, mas porque ela não é ancorada em coisas, do modo que quaisquer formas representacionais são. Apesar de, sob alguns aspectos, ser uma figura menos influente que Cage, Karlheinz Stockhausen produz mais pelo modo de prelúdios e pontos de entrada para um novo espaço de percepção da audição. Sua megalomania própria torna não apenas possível, mas imperativo escapar do musical, num exemplo crucial ao sintonizar rádios aleatoriamente, freqüentemente ‘ freqüências mortas de rádio': para ouvir o que qualquer ouvido pode ouvir. Mas mesmo Stockhausen, em suas explorações da pureza do timbre, do ritmo e do resto, imerge a si mesmo e a sua audiência em pura percepção. O uso do rádio se intromete em sua subjetividade contemplativa, apresentando a dependência do escutar na mediação que o torna possível.

A teoria do som apresenta grandes problemas para o conceito de realismo, e especialmente para a problemática familiar da representação. A gravação não é mais uma réplica inocente ou transparente do real, ‘som pró-fonográfico do que a fotografia é do pró-cinemático'. Ela tem suas próprias técnicas de formatação e seleção, sua estética transpassada, suas práticas de apagar as marcas do seu fazer. A emenda de fitas é para se aproximar do ideal, rendição com perfeição de estúdio é trancada em uma dialética sem fim do propósito delirante de uma perfeição inaudível. O problema para o realismo e para a crítica da representação não é simplesmente que a música, apesar de definida, é não-referencial, mas que a engenharia de som mais contemporânea é rica em técnica ao ponto tal que sua devoção à revelação da realidade tem que ser duvidada. Isso pode ser tanto uma crítica baziniana do som de cinema, quanto uma crítica das tendências idealizadoras da teoria representacional. Ele é também a problemática da obra de compositores eletrônicos como Pierre Schaeffer, Stockhausen e Michel Chion (assim como em algumas das peças de fita de Cage), onde o meio de gravação é trazido para o primeiro plano, uma solução modernista. Uma gravação, não importa o que mais ela seja, é sempre uma comunicação sem um conteúdo, pura mediação, sempre um efeito, nunca a coisa em si. Se nós aprendemos a ouvir habitualmente, e habitualmente a identificar sons por suas origens, é porque nós esquecemos como ouvir. Mas identificar a origem de um som como “o CD player ” é, claramente, dizer nada sobre seu conteúdo. As artes da gravação, orais ou mecânicas, são as artes que restituem ao som a pureza que elas assumem ao perder a origem.

Como escreve John Potts (1995), a gravação do som digital altera as capacidades metafóricas do som. De uma parte, a amostragem digital, rodando a aproximadamente 44.000 amostras por segundo, colhe um minúsculo fragmento de som para alocar na memória; de outra, a taxa de amostragem é mais alta que os ciclos da audição humana, de modo que os percebemos como um fluxo. A interface gráfica da maioria dos editores de som proporciona uma marca sincrônica, como uma partitura orquestral, na qual o cursor pode atuar como um presente plástico e errante, não confinado à linearidade. Potts enfatiza a novidade dessa liberdade temporal, mas é claro que isso implica também uma liberação espacial, não confinada ao sistema visual da interface, mas ajustando canais da mixagem, e implicando a mutabilidade do espaço acústico em playback. Nesse espaço mutável, os sons deixam de ser o que eles são, eles não podem mais determinar seus futuros, mas tornam-se sujeitos em seu próprio direito ao entrar na história do futuro como condições daquele futuro, destinados à complexidade das condições mutuamente interagentes da audição. Assim, os sons tornam-se menos agentes, e mais sujeitos, sujeito ao mundo para dentro do qual eles reemergem. É nesse sentido que os sons gravados ganham sua discrição, sua habilidade de fazer a mediação entre pessoas sobre distâncias espaço-temporais, como relações entre pessoas antes de como coisas.

A prática de Stockhausen mais tarde apresenta, através de suas manipulações do som gravado, a essência dos eventos sonoros em audição reduzida, revelando que mesmo a pureza imaginável do evento como um momento de ser é um produto de complexas interações e fluído apropriado. Apesar de uma vez gravadas, ou mesmo desempenhadas, as fluidezas de suas obras são estabelecidas às especificidades de sua existência, e Stockhausen é notoriamente um insistente pela precisão e autenticidade na gravação, uma homenagem ao ideal que a gravação trouxe à centralidade na concepção da música contemporânea. Mas os espaços aurais do playback doméstico tradicional são sempre ‘inadequados' a conceitualização de uma acústica ideal. Talvez a única paisagem aural que se aproxima da pureza do ideal é a proporcionada pelos fones de ouvido. Há uma anedota iluminadora a contar aqui, dizendo respeito a uma retrospectiva maior de instalações de vídeo européias em Köln alguns anos atrás. Um problema de curadoria com ter mais de uma ou duas instalações em uma mostra é que seus espaços de som tendem a sobrepor-se, produzindo uma cacofonia não administrável nas zonas de transição entre elas. A solução dos organizadores foi equipar os visitantes com fones de ouvido ativados pelo infra-vermelho, iriam colher o som de uma instalação à medida em que eles caminhavam para dentro do espaço de seu transmissor de miniatura. Não apenas a maneira abrupta da transição que ofendeu alguns dos artistas em exibição, mas também a tradução de um espaço arquitetônico em espaço pontual. Transmitido através do ar, o som ocupa e cria um ambiente. Transmitido diretamente ao ouvido, com qualquer que seja a pureza de reprodução, esse espaço é reduzido a um ponto ótimo (e imaginário) no meio do caminho entre os ouvidos: a teoria cartesiana da glândula pineal como ponto de controle central no cérebro onde, hierarquicamente, todas as percepções obtêm consciência (veja Dennett 1991: 104).

Tal paisagem de som cartesiana, construída como uma tecnologia na qual a perspectiva aural é focada em torno de um ponto central imaginário do cérebro, não apenas nos volta para um dualismo residual de mente sobre sistema sensorial, não apenas reduz a experiência do som de um evento corporal a um evento puramente auricular, mas também remodela o espaço do som como individuado. Se Altman está correto, cada ato de audição é dependente do ambiente acústico imediato, e suscetível a mudanças minúsculas nas qualidades da umidade, dos corpos e dos tecidos para absorver o som, e nas vibrações e ecos favoráveis do mobiliário e da decoração. De modo que cada evento de playback é único, aberto à ‘serendipity' (a faculdade ou fenômeno de encontrar coisas valiosas ou agradáveis que não procuradas) de um ambiente habitado por uma acústica cambiante e fontes adicionais de som. Mover-se através do ambiente acústico de uma videoinstalação é, portanto, alterá-la. O fone de ouvido cartesiano, em seu propósito de uma idealidade imaginada de reprodução, priva o receptor da socialidade fundamental do som, aqui menos escultural, e a ver com o fazer do espaço, do que arquitetônico, e comprometido em habitá-lo. Longe de simbolizar uma dicotomia entre o nômade urbano (Chambers 1990) e o solipsista urbano (Hosokawa 1984), o walkman é o material preciso que descreve a sua síntese no hiperindivíduo sinérgico e corpóreo como aglomerado de máquinas. O som gravado em instalações abertas, esculturais é, ao contrastar e criar a frase de Le Corbusier, uma máquina para viver dentro.

Transmissão: Audição Silenciosa, Leitura Silenciosa

Os imensos casos de patente entre Bell Telephone, Western Union e a grande subsidiária da Bell, AT&T (Barnouw 1966: 43ff.; Douglas 1987) limitaram o rádio de duas vias a usos marítimos e militares, e efetivamente estabeleceram o conceito de radiodifusão como meio de uma via. Monopólios de estado na Europa tiveram o mesmo efeito (veja, por exemplo, Briggs 1985). O rádio amador ‘ham' foi restringido como resultado a uma minúscula porção das freqüências de ondas curtas, e as corporações de telefone, telégrafo e rádio telégrafo operavam como um cartel para impedir qualquer aspiração ao acesso democrático às ondas aéreas. O rádio se tornou totalitário e universalizador pelos poderes que assumiu sobre a transmissão, mesmo naqueles momentos, como no discurso de Roosevelt de Pearl Harbor, ou as transmissões de Churchill na época da guerra, nos quais ele precisava mais desesperadamente obter apoio democrático. Os interlocutores invisíveis e inaudíveis daqueles que se direcionam à ‘nação', sem visão e sem discurso, tornam-se abstrações ideológicas – a massa, o público, a pátria de ‘ouvintes em casa', dos ‘ouvintes de entro' excluídos do começo da BBC. A radiodifusão monolinear irradia silêncio, enquanto ela recusa, ou, na melhor das hipóteses, policia a possibilidade de diálogo.

‘Qualquer falador', escreve Bakhtin, ‘é um responsável em um maior ou menor grau. Ele não é, afinal, o primeiro falador, aquele que perturba o eterno silêncio do universo' (Bakhtin 1986: 89). Mas até um certo ponto, os discursos de rádio fingem tal originalidade cosmológica. O silêncio do rádio, sabemos, é finito. A tecnologia do rádio é ecológica no sentido de que ela responde a eventos ambientais, humanos ou cósmicos: raios, tempestades solares, radiação cósmica, a máquina de lavar incontida do cômodo ao lado. Porque o rádio é sintonizado ao universo material, ele não pode ser universal no sentido Idealista. Contudo, a miraculosa emergência de vozes remotas do alto-falante, de qualquer maneira acalmadas e massageadas por aparatos de continuidade e habitualidade, audição meio inteirada, não pode ser totalmente descartada. A conversa sem fim do rádio é uma tentativa de erradicar o vazio do qual ela parece brotar tão magicamente, e ao mesmo tempo, uma tentativa de negar a insurgência de sons do ambiente, deixando sempre menos espaço auditório ou tempo de transmissão para reflexão e resposta. Em sua profissionalização durante um período de décadas, ele se rendeu à sua reivindicação pela comunicação, e se tornou um estímulo.

O encerramento que o rádio faz ao diálogo pode ser ouvido no elenco de tipos específicos de voz, vozes treinadas que gravitam em direção a tipos específicos de programação ou publicidade: o quente amigável e perfeitamente familiar, ‘the laidback (programa ficcional de linguagem)', o hipermaníaco, o casualmente trivial. Do outro lado, há aquelas vozes selecionadas, e gravadas sem o benefício da acústica do estúdio, que estão em posição favorecida como as não repetidas, espontâneas e terrenas. Todavia, mesmo tal voz é formatada – pela escolha do microfone, pelo espaço acústico tipicamente exterior ou movimentado, a falta de fundo, a tomada deliberadamente não repetida – não para ser real, mas para representar o real. A submersão do estúdio para o espaço sonoro da rua então formata mesmo tal voz popular como evento do rádio primordial e incontrovertível, a fratura do silêncio, mesmo enquanto ela representa uma construção ideológica de continuidade entre o mundo do rádio e o social. Tal continuidade existe apenas como pantomima.

A entrevista de vox pop (sistema de entrevistas, geralmente em locais públicos que pretendem mostrar opiniões espontâneas) é a última fortificação do rádio não repetido, não por causa da voz, que é sempre a voz não dessa pessoa aqui, mas daquela pessoa falando no rádio; mas por causa do ambiente descontrolado da gravação. A voz do rádio nunca é sem ambiente, e nunca mais dependente do ambiente do que quando confinada em um estúdio. Aqui a imitação da vida está no seu pico, a anarquia perfeitamente controlada das crianças e do rádio pop, no respeito acusticamente suprimido do estúdio morto onde políticos falam em seu mais grave e auto-enganador. A radiodifusão não irá permitir o silêncio. O único silêncio que ela reconhece é o silêncio de ser desligada, um silêncio mais profundo do que qualquer uma das artes pré-eletrônicas, nas quais o portador – pedra, tela, performance, página – é co-extensivo e isomórfico com a obra de arte em si. No rádio, o veículo permanece quando o tenor foi desligado. Nós somos deixados com o silêncio do mobiliário, ou do toque que nem flui nem goteja, um silêncio sem função, diferente da pausa no discurso que, ligado, ele pode apenas imitar, mas não expressar.

O mistério do telefone não é tão grande: nós ainda podemos ver os cabos que carregam a voz, e você pode imaginar que está ouvindo a miríade de vozes se você põe sua orelha em um poste telegráfico e escuta o murmúrio do vento nos cabos. Cabos formam um contato físico de um ponto a outro: não há ação mágica em uma distância. O telefone, entretanto, é um meio isolado, no sentido de que ele não é vulnerável à perturbação atmosférica ou radiação eletromagnética. Telefonia, como a telegrafia antes dela,é um sistema fechado; que é por que ela, antes que o rádio ou a imprensa, deu à luz a teoria da informação. Além disso, o telefone é um meio íntimo. Apesar do fato de que 80% do tráfego de telefone mundial é de negócios para negócios, o telefone retém aquela aparência de diálogo que o permite encorajar rumor e fantasia. Mas a um preço. O que liga – invisível – tem a escolha do anonimato, uma escolha que colore sua identificação. A fantasia é comprada ao custo da descorporificação. Mas esta também é restringida, apesar dos esforços técnicos para o contrário, na imaginação e no uso diário, de um para um. Eis por que programas de ligações ao vivo são tão desequilibrados: quem telefona é sempre um indivíduo, mas o apresentador do estúdio é sempre a companhia. Condições similares são obtidas em números enormes de ligações para consumidores de ‘linhas quentes' e agências de encontros. A condição de igualdade do diálogo é negada, mesmo antes do mapeamento da conversação enquanto trocam diagramas entre operadores treinados de corporação.

A telefonia carece de uma certa complexidade tonal, que as soluções técnicas não podem superar. Os interesses pela eficiência, por entregar a mensagem antes de estabelecer a comunicação, reduzem o espaço ‘sobre-tons', às expensas tanto do diálogo quanto de tal polifonia na qual a má compreensão criativa nasce. Mesmo a transmissão de voz melhorada ainda sofre de discussão. A telefonia digital e estéreo de parte de um sistema considerando cada membro ainda ocupa um vão auditório, apagado do universo acústico. Ouvir uma voz no telefone é se abstrair do resto do mundo, assim como certamente os quatro minutos e meio de Cage, não como nós fazemos quando selecionamos um interlocutor entre uma multidão de vozes, mas à cristalina insistência em ser ouvida daquela voz do fone de ouvido. A perspectiva do ouvido é reduzida àquela de receptor, onde, no espaço acústico cotidiano, eles estão perambulando ‘varredores de qualquer vibração'. Em lugar de patrulhar ativamente o ‘aural' (relativo ao que o ouvido percebe), nós tornamos-nos, como Nipper de HMV, meramente atentos. Além do sistema fechado de telefonia e radiodifusão, nós vagamos através do espaço auditório, mas nele, as atividades acústicas são afuniladas para um único ponto – se ‘monaural', ou definido por fones de ouvido no ponto pineal místico de consciência escondido profundamente dentro da caixa craniana.

Quando o poeta de Nova York Frank O'Hara escreveu em seu burlesco manifesto ‘Personism' sobre poesia, assim como sobre ligações telefônicas que de algum modo nunca tinham sido feitas, ele indicou não só a intimidade que a sua poesia se esforça por encontrar, mas a necessidade, no sentido de ganhar intimidade, de abandonar o léxico e a sintaxe ordinária, eficiente da conversa telefônica, e por último a própria máquina, na época o grande meio de fala da Nova York tecnologicada. Não importa o que mais ela diga, uma ligação telefônica é a ausência de um para o outro na conversação. Telefones são aparelhos para manter as pessoas distantes. Essa descorporificação da voz, sua redução a uma estreita largura de banda, sua solidão em um ambiente vazio, seu foco no ouvido ou no fone de ouvido cartesiano, a distância necessária entre os que ligam: tudo isso serve tanto à ideologia do individualismo e da burocratização de até mesmo nossas relações mais íntimas. A Babel e Gemeinschaft parecem nossas únicas alternativas: colapsar o mundo semântico, ou reinventar a comunidade performática. Contudo, ambos são nostálgicos para um passado que nós não vamos trazer de volta à vida; e ambos estão na armadilha da dialética da resistência, para sempre subordinados a um dominante cuja dominação eles precisam presumir.

Não pode haver ‘retorno' ao diálogo. Nós não podemos encarar uns aos outros novamente como iguais, sabendo que compartilhamos os mesmos valores, referências, crenças e vocabulários. Tal transparência foi-se, e, com ela, a presença de discurso em sua origem. Nós nos tornamos mais conscientes que nunca que falar é retórico. Alguma súbita imitação sobre o que gravação e radiodifusão nos ensinaram para acreditar na própria enunciação, na sintaxe correta, que afeta a entonação que habita em nós mesmo quando estamos falando em silêncio ou para nós mesmos.

No longo processo histórico de se tornar retórico, falar tem tudo menos abolir a escuta como uma arte passiva. Obcecados com intervenção, nós somos os nossos piores observadores. O triunfo da teoria sobre a prática num mundo tecnológico onde nós temos que nos reunir com outros para construir ou transportar nossas comunicações e nossa comida tecnológica, nos deixou fracos para entender sobre o materialismo do mundo. Então nós somos escassamente capazes de ouvir um discurso. Ouvir, se tornando cômodo, tornou-se também banal. Mas se nós não entendermos sobre a frieza do diálogo, podemos nos tornar permeáveis para uma parte deste processo e cruzar com nós mesmos.

Arte, pelo outro lado, não é mais silêncio. A arte antiga também tem mudado. Perdeu o silêncio com sua aura. Hoje, a arte tem quem implicar no mundo acústico, ou se for silenciosa, entra como uma coisa silêncio num mundo de sons. As transformações não dependem do clamor do discurso que acrescenta para cada significado um evento no mundo contemporâneo, mas da relação dos trabalhos de arte com a cultura auditiva, da mesma maneira como palavras invisíveis demandam ser entendidas como elementos do visual. Arte, que por dois séculos prendeu a si mesma no discurso precisa agora se relacionar com as vozes humanas que mudaram, com a gravação e a difusão, e na relação com imagens em movimento, imagens impressas e gráficas.

Eu não quero ligar o trabalho de Finlay com o pastoral não consciente do Inglês barroco, mas afrontar uma estética especificamente retórica na qual a emblematização da madeira viva nos permite ouvi-la, não como música, nem como natureza, mas como um elemento no qual a imaginação do real se torna uma zona poética começando com deleite e terminando com sabedoria. Isso é um estágio entre o mito de Cagean de uma recepção pura e ingênua e a mediação de uma gravação, foto ou fonográfica, uma crítica do sublime industrial ou natural.

A palavra do emblema abre um canal entre o marco, o som, a voz e a imagem. Na suplantação da imagem som coisas verdes, os jardins de Finlay mostram um meditante, agradável e instrutivo espaço no qual essas ordens do pensamento não são muito desafiadas quando tocadas num modo diferente de reverberação e eco. Essa é uma arte sonora que retoma o senso renascentista de Alberti da etatuae ridiculae (estátua engraçada). Essa eram apropriadas para um jardim onde a brincadeira combinava com o inesperado. (Lazzaro 1990: 152). Para Nicola Salvi, arquiteto das fontes Trevi em Roma, “as fontes e suas águas podem ser chamadas de a única fonte inesgotável de continuidade.” (citado em Moore 1994: 49).

Em Salvi, a vitória do fugaz sobre o inesgotável é a prova da “sabedoria indefinida” da água. Em Little Sparta , a Fonte foi apropriada à espirituosidade. Um dos melhores exemplares de Finlay tem o no formato de um carregador de aviões no qual, ocasionalmente, uma ave marinha pousa. Aqui, a gravidade da sabedoria entra numa dialética com a simplicidade da piada. O intermitente som da brincadeira cerca o barco de pedra com o oceano analógico, a frivolidade do pássaro com a inesperada dura luminosidade da metáfora.

Finlay escreve numa carta de 17 de Setembro de 1963:

Isso volta, após cada poema, para um nível do ser , para uma quase intuição física do tempo, ou de uma forma... o “concreto” começou para mim com o senso extraordinário de que a sintaxe que eu vinha usando, o movimento de linguagem em mim, num nível físico, não estava mais ali. (citado em Bann 1977:9)

Sua descoberta da perda de trajetória no seu verso é uma descoberta simultânea de uma maravilhosa imobilidade. A palavra se torna um pé, estendido na duração de seu chão – vidro, pedra, madeira, construção, jardim – e levando consigo como “intuição física”, coisas cuja adição ao mundo reordenam as possibilidades desse mundo. Em alguns dos trabalhos de Finlay, especialmente no jardim de Stonypath, as palavras são ditas não pela voz, mas pelas árvores, pelo vento, pela água. É importante que esses sons sejam de um jardim, não da natureza. A natureza, uma implicação da voz no mundo, é passado. O jardim é uma construção desenhada para amplificar, em algumas instâncias, o pensamento sônico da palavra gravada. Se uma certa moda da poesia escrita abandonou tanto a referência quanto a voz para identificar a si mesma com o espaçamento e o silêncio da palavra, os argumentos de Finlay com relação a outras práticas, algumas mencionadas no capítulo conclusivo desse livro, onde o poema funciona como um objeto material no mundo , propondo esse fragmento do mundo como uma mediação. O abandono do autor empurra o poema para a objetividade pura, a objetividade do fetiche, na qual a relação entre as pessoas – linguagem – é dada a forma absurda de um objeto. A solução de Finlay é formar na sua relação com seu jardim um modo de interação com tecnologias de horticultura e fontes que servem a necessidades precisas, mas que também oferecem um potente sentido de uma cultura ciborgue, uma interpermeação do humano e do tecnológico além dos instrumentos da escrita.

A incoerência da trilha sonora

Se as relações entre a escrita e som vêm sendo muitas ao longo do último século, as relações entre som e imagem, especialmente entre as quase gêmeas artes do som gravado e da cinematografia, têm beirado a guerra civil. Se, como Tynianov argumenta, “a vida social entra em correlação com a literatura acima de tudo devido ao seu aspecto verbal” (Tynianov 1965: 131), ela então entra dentro da mídia de imagem movimentada sob três aspectos: o visual, o escrito e o aural. Quando os filmes chegaram, no final dos anos 20, o social não podia entrar no cinema como discurso, como uma língua que, apesar de profissionalizada, ainda era compartilhada. Ao invés disso, o social entrou no cinema de formas já tecnologizadas e comercializadas – como filmes mudos, sons gravados e tipografias. O social emergiu então não como fala e escrita, mas como audição e leitura, em relação com a produção industrial de bens de consumo, ao invés da cultura urbana celebrada pelos formalistas russos. O problema que se abatia sobre diretores como Hitchcock, Mamoulian e Sternberg no início do período sonoro, era então de produzir a partir desses materiais díspares, um trabalho de arte que ainda poderia promover uma forma de coerência, no modelo exigido pelos conceitos de arte do século XIX. Em jogo na pseudo-convergência de som e filme estava, então, o mútuo reesforço entre canais de comunicação com distintas histórias, práticas e identidades. Sintomaticamente, os emergentes filmes abandonaram a experimentação vocal das artes de performance, os vanguardistas musicais do jazz, a investigação futurista e dadaísta do ruído, em favor do modelo teatral do século XIX, da sua música romântica e da sua restrição do ruído para efeitos simbólicos. Nós certamente não estamos na presença de um modo de percepção primário, renovado e sem tramas. Pelo contrário: as complexas mediações entre a mídia no ambiente multimídia dos filmes encerraram as possibilidades evolucionárias assim como as abriram.

O cinema nunca foi, é claro, mudo. Uma pesquisa recente indica a existência de trilhas até mesmo antes da virada do século, trilhas que serviram claramente para mascarar o barulho do equipamento de projeção, mas que também serviram, de acordo com Adorno e Eisler, “como um tipo de antídoto contra a imagem... a música foi introduzida não para suplementar a vida que faltava aos personagens – mas para exorcizar o medo e ajudar o espectador a absorver o choque” (Adorno e Eisler 1994[1974]: 75). Em outras palavras A música servia para mediar as imagens para com a audiência. O medo e o choque que eles notam é um efeito da manifestada natureza representacional, a presença contraditória e ausência da imagem por ele própria; a música media entra a ausência da imagem e a presença do auditório, não menos, por que, como performance, ela está entre o espetacular e o imediato. A música manteria seu status mediativo ao longo da era do estúdio. A função mediativa ajuda a explicar a riqueza da relação som-imagem, removendo essa relação da necessidade banal da reforçar a imagem permitindo um comentário mais fluido do que uma escolha entre o paralelismo e o contraponto (ver Kalinak 1992: 24-9). Entretanto quando a trilha sonora é tão artificialmente audível quanto no Inimigo Público (1931) de Wyler – usando amplificação exagerada para ganhar efeitos de choque com tiros de armas de fogo e pneus cantando – ou os musicais de Astaire e Rogers RKO, suas experiências têm o efeito de minimizar a relação entre trilha sonora e as imagens, sem contar as referências a um mundo existente. Em sua função mediativa, a trilha sonora atinge uma certa autonomia na narrativa do filme, mas no processo de se tornar espetacular, perde um pouco da implicidade na relação com a audiência que servia tão bem nos dias anteriores ao som gravado. Neste lugar, diálogo oferece identificação e uma certa preocupação com a narrativa.

A trilha sonora clássica pode ser vista como um campo de batalha entre os propósitos de clareza narrativa, lavados principalmente pelo diálogo, e a funções mediativas da música. É discutido por muitos críticos que a trilha sonora clássica existe para uma “ideologia da presença”. Então a sincronia labial, o ato de casar o diálogo com o movimento labial das figuras na tela, tem a intenção de dar a audiência a mais poderosa ilusão da real presença dos personagens e também garantir como um todo o mundo fílmico, persuadindo-nos da coerência da ficção. A maior da forças do cinema é a sua habilidade de mediar a ilusão de tal maneira que o abismo traumático entre o filme e a audiência pode não apenas ser ligado, mas se tornar uma fonte para que sua narrativa nos leve a uma maior subjetividade. Os casos de clara narração de uma subjetividade unificada tornaram-se formalmente indistinguíveis nos maiores feitos da Hollywood clássica.

Na sua preocupação com a coerência, verossimilhança não é um objetivo do filme clássico, apenas em suplementos estilísticos ocasionais. O caminho alternativo do cinema realístico tomou uma diferente abordagem. Jean Renoir “deu boas vindas com prazer... Afinal, o propósito de toda criação artística é o conhecimento do homem, e não é a voz humana a melhor maneira de se definir a personalidade de um ser humano?” (Renoir 1974: 103). Renoir entende a voz gravada como um momento do falado. “Eu digo, que a adição do som após o filme ter sido gravado é um ultraje” (Renoir 1974: 106), Renoir acrescenta, enquanto também expandindo no uso tanto da música quanto do efeito sonoro como igualmente importantes com o diálogo e a trilha sonora, sendo particularmente orgulhoso de que o som do trem em Tony (1935) não é apenas o som de um trem real, mas o som do trem da própria tela. O que importa é um senso de unicidade do mundo. O realismo de Renoir tem mais a ver com essa unicidade do mundo do que com a unidade do filme em si, que é meramente um efeito disso, ou do que com a unidade do espectador, que não pode ser um efeito do filme, já que é a unidade do espectador e do mundo que formam a premissa do realismo por si. O realismo de Renoir devolve à audiência sua existente (porem esquecida) solidariedade com o resto da criação. Isso produz certas demandas formais que se reciclarão através do momento crítico do som digital.

O que é importante é a possibilidade de se mover através da saída de som: de se deparar com a trilha sonora com a mesma liberdade com a qual nós ouvimos o mundo. Nesse sentido, ultimamente, para Renoir, é a unidade do trabalho que prevalece acima da unidade do espectador, e ele leva as convenções do realismo para seus extremos formais a fim de ganhar coerência. A gravação sincronizada se utiliza da multivalência, ambigüidade e autonomia do som para fazer da trilha sonora um jogo do qual nós podemos participar. Fazendo isso, remove a possibilidade da familiaridade que produz desprezo, a automatização do que se ouve. Mas até mesmo o realismo depende da multiplicação das técnicas de pós-produção, incluindo as claramente audíveis através das quais, por exemplo, nos movemos da perspectiva aural do originador do som, até aquela do auditor ideal dentro da diegese, mas fora da ação em si. Aqui a habilidade instintiva dos ouvidos de localizar e identificar uma palavra ou som crucial é manipulada pela variação do nível na mixagem. Mas como esse trabalho é empreendido em nosso lugar, nós tendemos a ouvir o resto da trilha sonora, empurrada para o fundo com a intenção de clarificar a linha de diálogo posicionada hierarquicamente. Infelizmente, isso não funciona do mesmo modo que as tecnologias de tela-plana e foco-profundo, que dão ao olho uma maior liberdade para focar onde quiser. Ao invés disso, a natureza construtiva da trilha sonora consiste na audição, produzindo um espaço entre as audiências ideais e ficcionais, exatamente naquele ponto onde se procura mais produzir um sujeito unificado ou um mundo unificado.

A tendência das tecnologias de som no cinema tem sido a unificação da audição, a produção de um centro, um sujeito Cartesiano da audição. Mas nem o cinema clássico nem o realista, nem laboratórios de multimídia, alcançaram tal unificação da audição, precisamente por que não resolveram a transição entre um sentido e o outro. A mídia não converge para formar um corpo unitário; eles continuam evoluindo, até mesmo em relação um ao outro, ao longo de caminhos divergentes, e devido a sua divergência, eles impactam na evolução interna de cada um dos sentidos e em cada uma das mídias associadas a eles. Diferente das sensações fenomenológicas de Merleau-Ponty, permeando um mundo onde se encontram ambos sensores e sensíveis, o mundo do sampling, gravação e playback, se relaciona com o tempo e a mediação, desviando o sujeito principal de Descartes, e aprendendo com Metz a desconfortável necessidade da semântica, a fora de lugar e textual relação entre som e imagem. Na trilha sonora, a formação de uma consciência Cartesiana, a construção de um sujeito textual e o estabelecimento de um relacionamento referencial com o mundo têm sido perseguidas pelas novas tecnologias e técnicas de gravação.

Essa é a problemática inata do neo-classicismo, a tendência nos filmes contemporâneos onde o foco não é nem na narrativa, como no classicismo, nem em referência ao mundo, como no realismo, mas na construção de mundos diegéticos exploráveis e navegáveis. Tais filmes são caracterizados pelo extensivo uso de foco profundo, designs de set elaborados e geralmente poluídos visualmente, narrativas pitorescas construídas em cima de sets discretos ao invés de suspense e de envolvimento psicológico com um personagem central, e uma preocupação com o mundo fictício do filme. Em filmes com esses, incluindo a maioria dos filmes levados pelos efeitos, o design de som tomou para si novas tarefas. Isso foi parcialmente forçado pela chegada do som magnético, que tornou redundantes as antigas bibliotecas de gravações ópticas, em parte pelas novas expectativas criadas em cima dos sistemas hi-fi, mas a sua evolução foi impulsionada por um novo entendimento do aural como soundscape (saída de som), como espaço explorável que não apenas aprofunda o espaço da tela, mas provém um aumento da profundidade de campo do auditório. Uma característica da nova mixagem de som, que se origina com filmes de Robert Altman como M*A*S*H (1969) e Nashville (1975), é a de que a música é tratada como efeito sonoro, usualmente como fonte na diegese (assim famosamente feito em Pulp Fiction , 1994), enquanto o diálogo freqüentemente sacrifica a claridade da atmosfera, com muitas vozes falando simultaneamente e com o mesmo volume.

Mas ainda mais surpreendente é o advento dos efeitos sonoros (sfx) para o topo da hierarquia aural. Enquanto o som é geralmente subordinado à visão, a luta entre o diálogo e a música pela supremacia no classicismo foi superada pelo triunfo do sfx. Fidelidade à fonte não é importante: técnicas de edição digital permitem a criação de novos sons através de fontes cruas e manipuladas combinadas, aceleradas, mixadas juntas para que se tenha sons de naves espaciais e tiros. Até mesmo a voz de atores é freqüentemente tratada, em filmes de orçamento alto, com o mesmo cuidado e da mesma forma que a voz de cantores famosos é tratada em CD´s de orçamento alto: Ben Burt (Lo Brutto 1994: 144) fala sobre a mixagem da voz de James Earl Jones com a gravação de sua respiração em um regulador de tanque de mergulho, ocasionalmente mais rápido e mais devagar, para dar o respiro metálico de Darth Vader em Star Wars (1977). Ainda nisso, o cinema digital contradiz a afirmação de Chion de que “com a exceção de seqüências musicais, não se deve editar sons em relação um ao outro, mas em relação a imagem” (Chion 1992: 81), exceto que a nova voz, assim como o som do sabre de luz ou o ruído do tornado em Twister (1997), os quais ainda que densamente mixados, estão sempre articulados com a imagem. Mas onde ambos som e imagem são digitalmente manipulados, permeados com sons e imagens gerados por computador, o processo de composição elimina a demanda realista pela autenticidade, Essa autenticidade foi, é claro, ela mesma um efeito de técnicas específicas, técnicas facilmente emuladas no interesse de, por exemplo, a urgência de uma reportagem de jornal.

Mais limitante, entretanto, é o sucesso do Dolby, Dolby SR e THX, sistemas de som teatrais com os quais a produção de som digital é intimamente ligada: claramente não há por que produzir gravações de alta fidelidade para saídas de som de baixa fidelidade. Saídas de som digital e a engenharia acústica são feitas para maximizar o efeito espetacular do estereofone e das gravações multicanais, adicionando separação para os canais, e construindo efeito espacial para a audiência: os helicópteros vindo do fundo do auditório até a parte mais próxima da tela em Apocalypse Now (1979) e o cenário de som urbano de Se7en (1996) são exemplos a esse respeito. Mas cada efeito é masterizado de acordo com os interesses de uma audição idealizada, uma arquitetura sônica cujo centro é cuidadosamente calibrado para coincidir com cada acento na casa. Como as caixas de som localizadas nos veículos dos parques de diversões, os estereofones teatrais procuram se reproduzir centrados nos sujeitos cartesianos do cenário sonoro, e assim ganham sua característica de neo-classicismo pelo retorno a unificação do sujeito como a preocupação principal. A maior diferença para com o classicismo é que quando os elementos da trilha sonora são reagrupados ao redor do efeito sonoro no interesse de construir um mundo fictício coerente, seja ele a cultura gangster de GoodFellas (1990) ou o futuro de The Fifth Element (1997), é a diegese, ao invés do personagem, narrativa ou realidade, que forma o centro, com o estereofone como seu mais novo e mais potente aliado. A gravação digital vai ainda além dos arquivos sonoros usados pelos clássicos gravadores para substituir referências analógicas e metafóricas. Como qualquer sistema ao ponto da totalidade, está também ao ponto da exaustão. No neo-classicismo e em seus truques de computador, o mundo dos jogos da personalidade sinergética acha sua mais perfeita expressão cultural, mas na sua demora em achar uma referência, ela cria o chão para que a sinergia encontre sua própria derrocada.

Espaços Dispersos: Arte Geográfica

Nas desenvolvidas artes audiovisuais, o som não pode mais continuar como um subordinado da visão, nem pode também exigir das audiências que elas habitem apenas um ideal e imutável espaço. Qualquer nova relação com a tela ira requerer que a audiência se mobilize. O cinema stéreo imobiliza a audiência fazendo todos os pontos da sala aureamente idênticos. A contra-relação deve então ser profundamente espacial, emergindo das transmissões da gravação (tempo e espaço da reprodução) e retransmissão (simultaneamente de espaços dissociados) e ligando elas a ontologia do filme como um meio que transporta imagens através do tempo e espaço: projeção. O som é uma projeção, aprendendo da dispersão mecânica de imagens pelo tempo e espaço para realizar sua própria arte de disseminação pelo rádio, gravações e telecomunicações: uma disseminação crescentemente global tanto em suas ambições quanto em suas fontes. O som entra no espaço para imitara escultura ou a arquitetura, mas, através de redes eletrônicas, para abraçar uma arte geográfica que entende também essa passagem do tempo na questão da história. O som move não somente os volumes do ar, mas a massa do corpo. O som, como uma arte de distância, de espaço e tempo, é uma arte de movimento. Para ter adicionado a gravação e a transmissão, para ter dobrado e redobrado o número de sons no mundo, refez não só um universo acústico imaginário externo, mas transmutou o movimento, a arca do corpo por quatro dimensões. Inventou uma forma dispersa e esparsa de dança das populações.

O relato ficcional sobre as aspirações e degradações do grupo envolvendo Michael X, o ambíguo fraudador e objeto de ódio do movimento black power do Reino Unido e de Trinidad, a coletânea de filmes negros Who Needs a Heart? (1991) é atravessada por um design de som de Trevor Mathinson caracteristicamente denso. Construído a partir de músicas sobrepostas (gospel, blues, free jazz, cantos budistas), efeitos eletrônicos e samples, efeitos sonoros sutilmente independentes da imagem, diretos, pré-gravados e regravados diálogos, a trilha de áudio opera através assim como junto e ao longo da imagem, marcando os significados das pessoas em repetições e poliritmos. Inundando a trilha do diálogo, a união focal que relaciona o som dentro da imagem e o subordina, trazendo o telespectador para dentro do espaço visual da tela, o design de som para Heart fica entre o telespectador e a imagem, traçando trajetórias oblíquas ao redor de ambos. Inspirado igualmente pelo que pode ser improvisado e pelo repetitivo, o temporal e o espacial, o trabalho de Mathinson não apenas descobre uma arqueologia da fascinação modernista de John Cage (já orientalista) pelo som puro e pela duração das músicas diasporais, mas marca para o filme um espaço que já é distanciado, um espaço fora da imagem, uma geografia de sua localização.

Tais distâncias – a distância da diáspora, das ligações entre Notting Hill e Guyana, Chicago e o campo Inglês; distâncias que são também os tempos do movimento histórico – abrem os espaços de uma contemporaneidade híbrida, negando a transparência do multiculturalismo através do insistente mapeamento da pluralidade de diferenças e diferenciações. Assim como os visuais detalham o minueto do gênero, classe e “raça” num momento formativo de políticas inglesas negras, a trilha sonora apaga a facilidade de julgamento que rotularia o filme como psicológico. A voz ocupa uma posição dupla aqui. Funciona como uma transmissão de identidade de dentro para fora, por si mesma uma performance, e radicalmente incompleta, como Kobena Mercer observa (1995: 52-3), sem o ouvido receptivo de um “outro” que reconhece. Mas é também um símbolo de uma autenticidade impossível, uma verdade própria e para si mesma, um simbolismo da própria idéia da falta de lugar.

O cinema havia começado uma exploração de seus poderes para inventar o espaço de seus momentos mais primórdios. O espaço estaria preso no estilo clássico e no neoclássico ao que poderia ser imaginado dentro da tela, da narrativa ou da diegese. Isso foi justaposto por todo teórico de filmes pelo mundo realista do trabalho, amor, nascimento e problemas de moradia. Para o maior dos críticos realistas, André Bazin, o propósito do cinema é “o de que ele deveria, ultimamente, ser a própria vida que vira espetáculo, para que a vida no seu espelho perfeito seja poesia visível, seja o ser que o filme ser torna” (Bazin 1971: 82). Mas esse não foi o destino do cinema, não ainda; ao invés disso, o que tem acontecido é a transfiguração do cotidiano no consumismo espetacular, e o cinema teve de tomar seu lugar, no seu desenvolvimento como uma arte espacial, como o suplemento do real, uma presença material contestando a validade da distinção do filme/realidade não através da transformação do cinema, mas através da invasão do real, dos espaços materiais da reprodução amplificada e da luz refletida.

Tallulah Bankhead, acredita-se ter respondido a questão Zen, “O que é o som de um bater de palmas?” ao espertamente estapear o interlocutor na bochecha. A ambigüidade está na palavra “som”, pois não há som que não é ouvido, que não é enterrado na pele de seu auditor. A pele produz e recebe som. É a intimidade do corpo a corpo. O ar é comum: é o que nós respiramos. As peles são nossa última barreira contra o mundo, nossas máscaras finais, mas elas são porosas, atravessadas pelas energias dos outros, vibrando em simpatia com um mundo complexo. Mas nem toda a vibração é sincronizada. O processo de tradução – no seu sentido tanto de trazer de outras culturas e de mover coisas de lugar para lugar – são performances presas ao tempo. A tradução revive rituais de congressos interculturais, e fazendo isso revela a sim mesma como um modo de interpretação. Nas músicas do Atlântico Negro tal tradução une entendimento de distância e percepção mecânica no complexo intercâmbio entre comunidades diásporas, em sua faminta reinvenção das mais sofisticadas ferramentas, “fazendo”, como Mathinson disse em uma entrevista com o autor, “a tecnologia cantar com novas vozes”. O estranho mundo apenas se apressa, não instigou, e algumas vezes atrapalha a música global com seus designs. Músicos como Sun Ra, George Clinton, Lee Scratch Perry e Goldie, cada um na beira de inovação tecnológica. Como trabalhar uma trilha sonora para tais artistas?

As ferramentas são entrevistas e diálogos, música composta e de arquivo, e “atmos” (psytrance), as trilhas gravadas nas locações para combater o terrível silêncio do cinema e da TV. Nas mãos de Mathinson, assim como nas mãos de todos os bons designers de som, as trilhas atmos (trance) se tornam mais do que o suporte ambiental do diálogo. É um material que pode ser moldado e esculpido, conforme a ocasião requer, martelados no processo de analisar o som através de sua diminuição de velocidade, sua filtração, e dissociação do timbre pela altura do som, e retorcendo suas novas modelagens. Algumas fontes de materiais provem de anos de desenvolvimento de composições musicais que podem ser desenhadas para instalações, danças, performances e filmes. Nessa instância, o destino é a TV: uma versão (Mothership Connection) para o canal 4 no Reino Unido, e um mais longo (The Last Angel of History) inicialmente para ZDF na Alemanha. Assim como a capital que para fazer um filme é espalhada pelas fronteiras nacionais, o tema persegue interpretações e Zeitgeist conforme eles circulas ao longo da Passagem do Meio, e o trabalho é dedicado a adoção de futuras viagens através do tempo e de continentes. As culturas diásporas já acharam seu caminho para o “mundo policêntrico” de Amin (Amin 1990).

A tradução cultural é uma pratica na qual The last angel of history tanto documenta quanto pratica. A questão não é mais sobre a dominação do oeste sobre a cultura global, ou sobre o impacto das culturas não ocidentais no ocidente, mas a paciente hibridisação das culturas. Seu ponto de princípio são as “músicas impossíveis e imaginárias” do estúdio, elas mesmas talvez sendo o fruto de mais de um século no qual velhas músicas forma perdidas por serem forçadas ao isolamento, e o novo teve de ser imaginado nós módulos de um original perdido – assim como a música da Renascença se guiou sobre seus próprios modelos clássicos perdidos. Essas imaginações mútuas, então, tomam a forma de ficção científica não apenas pela experiência de ser um estranho, nem por que “a linha entre a realidade do dia a dia e a ficção científica é uma ilusão de óptica”, mas por que cada mundo imaginário que não se situa no passado – um curso sobre o qual a escravatura excluiu a diáspora africana – deve compartilhar seu modo do não ser com o futuro, que por definição não existe. O futuro é tudo aquilo que ainda não é agora. Na Black music, desde o New Thing adiante, o futuro cresce da negação para se tornar o que ainda não é.

Este trabalho não é música no senso em que foi aceita nos modelos ocidentais. Não é uma questão da fiel interpretação das trilhas autênticas, a abordagem de um ideal absoluto no qual Glenn Gould (1990), em um artigo clássico sobre gravação, a documenta como um delírio espiralado de artifício. Toma suas raízes da mixologia diáspora, uma pesquisa do som, um diálogo dinâmico com a tradição e a contemporaneidade. Seus critérios não são ideais – a contagem ou a idéia da música. Ao invés disso todo o ambiente se torna material para a mesa de mixagem, um instrumento de manipulação, mergulhando e apagando sons encontrados, musicais ou não musicais, capturados ao vivo ou extraídos de arquivos, para novos anos. Isso é dialógico, engajado no vasto, interminável, uma arte na qual o movimento do som é a escultura da distância e nossas trajetórias através dele. Mais: na aceitação da dissolução das origens, som de artes diásporas publica e faz a moral pública, como motivo e uma causa eficiente, quebrando o mais potente tabu que fica entre nós e a nova intimidade global.

O trabalho de Mathison com o Áudio Preto não só redefine o conceito de cinema como articula a dimensão faltante de tanto do audiovisual, o sonoro. Trazem no foco afiado a introdução da espacialidade e seu relacionamento com o tempo. Mostrar um filme é ocupar uma arquitetura e fazer ela sua própria. Cada vez mais, arquitetos estão descobrindo a necessidade de acelerar suas construções com espertas conexões, VDUs, monitores e projetores do painel. Nós esperamos que nossos edifícios, sejam, no mínimo, mais rápidos que nossos lares; para interagir, para trabalhar para gente e com a gente. A ‘artworld' tem que ser tão rápido e a inovação cinemática ter isso pelo menos a oferecer. Nas mudanças do cinema como berço de sonhos mudando os auto-falantes de trás da tela para o salão, um simples redesenho, o auditório deixa de ser Layotard's uma tela dimensional e se torna mais ‘spatialised'. O passo daqui para o trabalho de instalação é pequeno, como Mathison e Edward George descobriram na sua instalação The Black Room em 1994 na ICA em Londres. Outra recente diáspora de trabalho de arte – Pervaiz Khan and Felix de Rooy's The Garden of Allah (1996), Bashir Makhoul and Richard Hylton's Yo-Yo (1996), Stan Douglas's Hors- champs (1995), Keith Piper's Relocating the Remains (1997; see in IVA 1997; Piper 1997), muito do trabalho de Mona Hatoum's – evidenciam a intensa similaridade de acoplamento com as maneiras de cada som, ainda mais do que esculturas ou filmes, ocupa e atravessa o espaço.

Uma imagem em movimento sempre captará o seu olhar, levando-o a uma direção. Mas o som, contanto que ele não esteja contido em fones de ouvido ou num espaço individual, tem que ser aproximado, atravessado, penetrado e enquanto atravessado como se seu corpo moldasse a acústica ao redor de si, o som vai penetrar você. Mesmo que isso aconteça, sua qualidade estrutural se torna aparente: é uma válvula de escape aberta para um mundo que outros existem assim como o seu. Esta combinação entre intimidade e publicidade é o espaço da dança, e toda a riqueza da comunicação e mutualidade de cada dança, de qualquer modo pensado, irracional, envolvida em si, é possível. Não constrangido pelas limitações técnicas dos receptores de transmissão o som da instalação pode funcionar naquelas notas profundas onde o corpo inteiro ressona como um gongo de um templo.

E além das artes da arquitetura, além do movimento para a urbanidade marcado pelos artistas de instalação e pela performance que move o cinema e a galeria, encontra-se a arte espacial emergente, que agora está recém se tornando possível, a arte da tradução. Na maioria dos séculos o acesso a tecnologias de transmissão tem sido escasso e os portões para radiodifusores sensoriais, uma exclusividade. Mas as novas artes do telefone, da secretária eletrônica, do fax, rádio do artista, websites controlados pelo artista e estações de tv começam a alterar esta constelação. Dado a complexidade da interação do mundo é difícil frasear o que a arte pode ser. Confia menos na maquinaria do que na habilidade de conectar as velhas e novas tecnologias, e crucialmente convergir o visual e o aural não como unidades mas num diálogo. A arte do movimento no novo milênio deve intimar as inconscientes interações não só no nível do corpo e do local, mas deve ir além desta tradicional esfera de arte para que intervenha em fluxos globais de pessoas e poluição, sons, imagens e idéias, religiões e doenças, que constituem nós como pessoas, indivíduos, nos vários locais das mais secretas comunidades.

As novas artes espaciais do movimento serão globais, e devem aumentar, e o ato massivo da tradução que está agora começando a restabelecer as relações entre o audio e o visual, é agora uma chave para seu entendimento. As culturas já mapearam a informalidade do mundo, e aprenderam que não há centro que não é composto de milhares de tributos. Somente no caos essas complexidades, haverá uma chance de que o que ainda não é passe a ser.


PYGMALION: SILENCE, SOUND AND SPACE IN Sean Cubitt (org: Digital Aesthetics, Sage Publications, 1998). Traduzido por: Jonas Rocho e Helena Furtado.








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