Quem Seremos no Ciberespaço?

Langdon Winner


Para aqueles que vêem a América desde outras partes do mundo, pode parecer, às vezes, que somos pessoas compulsivas, que não descansam, estamos continuamente nos reinventando, renovando nossos meios de viver num piscar de olhos. Não parece haver idéia, por extravagante que seja, ou projeto, por ousado que seja, que um determinado segmento da sociedade não vá levar adiante, experimentar, ver como funciona. Local de origem de novas idéias, descobertas, práticas, estilos, invenções e instituições, os Estados Unidos ganharam reconhecimento como um laboratório para a exploração das identidades humanas e relações que mais tarde se espalharam para outras partes do globo.

A propensão à reinvenção pessoal e social remonta aos primeiros tempos de nossa experiência nacional. Na metade do século dezoito, parecia provável que a monarquia britânica e um estilo de vida estável monárquico, nas colônias americanas, iriam perdurar para sempre. Enraizada em conceitos de hierarquia, desigualdade, patriarcalismo e relações bem-estruturadas entre patrões e clientes, a monarquia conferia sentido e coerências à vida das pessoas. Mas os esforços para manter este padrão também comportavam descontentamento e eventuais revoltas. A bem-sucedida guerra dos colonos contra o Rei George III foi também uma revolução na política cultural, que causou o término da monarquia como uma fábrica de relações humanas bem amarradas.

Durante sua subida ao comando, os líderes dos emergentes, os pais fundadores, deram seu melhor para criar uma nova sociedade, construindo instituições políticas, legais e econômicas baseadas em modelos adaptados das repúblicas antigas. Liberdade individual e consentimento por parte dos governados se tornaram os princípos-guia. Mas as instituições políticas do sistema republicano dependiam da liderança de um pequeno grupo de iluministas, homens virtuosos, pessoas de grande alma e habilidades, um arranjo que muitos americanos não concordavam. Não demorou muito, então, para o conceito republicano de relações políticas e sociais ser desafiado pela proliferação de regras, papéis e relações bem mais democráticas. No início do século dezenove, os americanos estavam novamente ocupados se auto-transformando, afirmando que a promessa do país era que as massas de trabalhadores comuns pudessem conquistar prosperidade material e auto-governo genuíno (Wood, 1992).

Em adição, durante um período que se estendeu de 1750 a 1820, passou-se por uma seqüência de três modos radicalmente diferentes de definir o que era a sociedade, três modos de definir quem uma pessoa era e onde ela estaria na ordem macro das coisas. Chamo atenção a este período da história americana para relembrar o fato de que épocas de rápida transformação não são novas para nós. Os fanáticos atuais da era da informação e do ciberespaço freqüentemente insistem que somos confrontados com circunstâncias totalmente sem precedentes, circunstâncias que exigem uma acelerada transformação da sociedade. Isto é verdadeiro em alguns aspectos. Mas também é verdade que nós, americanos, somos mestres escolados em nos reinventarmos e às vezes chegamos de modo pensado a bons resultados.

Desde a metade do século dezenove, episódios de transformação pessoal e social focaram tanto nos relacionamentos das pessoas com os sistemas tecnológicos quanto estiveram nas instituições políticas. Já é uma história familiar: inventar uma nova tecnologia requer que (de uma forma ou de outra) a sociedade também invente os tipos de pessoa que a irão utilizar; práticas antigas, relações e maneiras de definir a identidade das pessoas caem em desuso; novas práticas, relações e identidades criam raízes. A partir daí, no momento em que aparatos tecnológicos e sistemas estão sendo introduzidos, é importante que aqueles que se preocupam com o futuro da sociedade consigam ir além das questões sobre as utilidades destes novos sistemas, além mesmo de perguntas acerca de suas conseqüências econômicas. Alguém pode questionar:

1. No campo de influência destes instrumentos, quais são os contratos, o que vem junto e quais as obrigações concernentes?
2. A quem ou a que as pessoas estão conectadas ou dependentes?
3. As pessoas comuns se enxergam tendo um papel crucial no modelo que está se formando?
4. As pessoas se vêem com competência, aptas a tomarem decisões por meio dele?
5. Elas sentem que suas opiniões importam na tomada de decisões que irão afetar a família, o local de trabalho, a comunidade, a nação?
6. Elas se sentem tratadas de forma justa?

Estes são tópicos a respeito de condições que afetam a individualidade e a cultura cívica, questões que sempre deveriam ser levantadas com a emergência de novas tecnologias. Se limitarmos nossa atenção às aplicações técnicas poderosas, seus usos e prospectos de mercado, tendemos a ignorar o que pode ser a maior conseqüência da mudança tecnológica, a formação das condições que afetam os sentidos de quem as pessoas são e porque elas vivem juntas.

Na nossa época, a situação mais importante para fazer estas perguntas é a digitalização de uma espantosa quantidade de artefatos materiais interligados às práticas sociais. Em um local após o outro, as pessoas estão dizendo: Vamos pegar o que existe agora e reestruturá-lo ou substituí-lo pelo formato digital. Vamos pegar o atendente dos bancos, aquele sentado atrás do balcão com pequenos pedaços de papel e uma calculadora, e substituí-lo por um caixa eletrônico acessível 24 horas por dia. Vamos substituir a gravação analógica e os LPs de vinil por compact discs nos quais a música é codificada como uma série de bits digitais. Vamos substituir a sala de aula com professor, quadro negro, livros e intercâmbio verbal por materiais apresentados em hardware e software de computadores, e chamar a isto de 'aprendizagem interativa' (como se as salas de aula de antigamente carecessem de interatividade). Um caso após o outro, o movimento de computadorizar e liquefazer digitalmente significa que muitos modelos culturais pré-existentes subitamente foram diluídos, perdendo sua forma original e sendo adaptados para a expressão computadorizada. Na medida em que novos padrões se solidificam, tanto os artefatos utilitários quanto as texturas das relações humanas que os circundam são com freqüência tornadas diferentes dos que existiam previamente. Este processo resulta num poderoso experimento em andamento, do qual ninguém compreende inteiramente suas ramificações a longo prazo.

As oportunidades e desafios que se colocaram com os processos de digitalização geraram grandes ondas de entusiasmo. Empresários estão ocupadíssimos criando novos produtos e serviços. Inovadores organizacionais estão experimentando todos os tipos de trabalhos colaborativos mediados por computador. Artistas, mesmo os fortemente céticos em relação aos efeitos da tecnologia da informação, estão extasiados pela variedade de expressões estéticas que se tornavam possíveis graças aos computadores e às telecomunicações. Não é surpresa que a proliferação do entusiasmo acerca da computação também alcançou expressão ideológica. Os antigos comentários inúteis a respeito da teoria simplista em ondas da história de Alvin Toffler, raramente trazidos à tona dois anos atrás, receberam novo fôlego no manifesto direitista 'Cyberspace and the American Dream: A Magna Carta for the Knowledge Age' (Dyson et al., 1994). Neste e em outros hinos à era digital, há uma reconsideração das expectativas milenaristas que costumam aflorar durante períodos de mudanças tecnológicas e sociais, acompanhadas pelas esperanças infundadas no 'mito da informação', por exemplo, na expectativa de que a proliferação de máquinas de informação é, de alguma forma, inerentemente democrática, e que ninguém precisa levantar um dedo para atingir a democratização e criar uma sociedade sadia (Winner, 1986).

Mas junto com o entusiasmo e o sentimento de que há possibilidades ilimitadas, surgem alguns sérios temores. Conforme o processo de liquefação digital de práticas e instituições sociais prossegue, há os que observem processos de liquidação econômica a ele associados, que erodem as profissões de muitas pessoas das classes média e trabalhadora. Conforme os empregos e atividades e estruturas organizacionais passam pela transformação digital, estruturas estabilizadas há tempos são desmanchadas, liquidadas na medida em que o capital aproveita a oportunidade de se deslocar para outro lugar. Nos negócios, nas universidades, nas agências governamentais e em outras organizações, a ligação entre a introdução de novos sistemas computadorizados e os anúncios de demissões e enxugamentos parecem óbvias. A liquefação digital se tornou o solvente cultural que propicia a liquidação financeira e organizacional. Neste processo, vocações - secretárias, operadores de telefonia, caixas de bancos, atendentes de serviços postais - foram eliminadas ou abolidas ou reduzidas drasticamente. Durante as duas décadas em que a automação e a informação entraram em seus locais de trabalho, o nível de remuneração para a maioria da população diminuiu. A queda nos rendimentos não está mais limitada a colarinhos azuis ou trabalhadores de escritório. Estudos recentes sobre a força de trabalho feitos pela American Association of Engineering Societies mostram, igualmente, um declínio na remuneração real de profissionais técnicos (Bell, 1995). As firmas estão dispensando gerentes de alto nível, de altos salários, e o staff técnico, e contratando os profissionais mais jovens e mais baratos, recém-saídos da faculdade. A base de conhecimento informatizada de organizações provê uma estrutura de trabalho estável a partir da qual as lideranças das empresas podem experimentar programas audaciosos de reestruturação e reengenharia.

Os gurus no circuito dos seminários de negócios - Tom Peters, Daniel Burrus, Michael Hammar, James Champy e outros - preferem ver estes levantes como desafios estimulantes. Então, Peters aconselha pessoas em vias de trocar de carreira a adotarem a 'adolescência perpétua', porque 'precisamos viver em tempos de negócios velozes' (Peters, 1994, pp. 301 e 308). Outros observadores descrevem estes acontecimentos como potencialmente cataclísmicos para a maioria da população, na medida em que o 'fim do trabalho' e o 'fim da carreira' entregam à sociedade condições para as quais ela está mal preparada (Bridges, 1994; Rifkin, 1995; Glassner, 1994). Quaisquer sejam as previsões nesta seara, é certamente verdadeiro que, em nosso tempo, condições básicas de identidades humanas e associações estão sendo fortemente redefinidas. Quem seremos quando estes acontecimentos tiverem cumprido seu percurso? Quais tipos de ordens política e social irão emergir?

Melhor que procurar uma resposta sobre estas questões a partir dos atuais confusos manifestos do ciberespaço, talvez devêssemos considerar capítulos relevantes na nossa própria história, capítulos nos quais a transformação tecnológica envolveu profundas mudanças no indivíduo e na sociedade, períodos nos quais importantes escolhas para o futuro estavam sendo tomadas. De particular relevância, no meu entendimento, estão uma série de estudos recentes feitos por historiadores e cientistas sociais que tentaram identificar o que é distintivo a respeito da própria condição humana no que ficou conhecido como sociedade moderna, industrial. Vários estudiosos em campos diversos - David Hounshell (1984), Terry Smith (1993), Jeffrey Meikle (1979), David Noble (1977), Adrian Forty (1986), Ruth Schwarz Cowan (1983), Dolores Hayden (1981), Roland Marchand (1985), David Nye (1990), David Harvey (1989) e outros - se debruçaram sobre a primeira metade do século vinte na América, destacando alguns acontecimentos como a linha de montagem da Ford, a difusão da manipulação científica, o desenvolvimento de amplos sistemas de eletricidade, suprimento de água, trânsito, telefone, rádio e televisão de longa distância, procurando explicar como eles chegaram à forma que atingiram, como foram recebidos pela população como um todo, como o crescimento da economia de consumo e suas aplicações e valores vieram a ser definidos como necessários para uma vida digna, e como o desenvolvimento associado da publicidade, design industrial, relações públicas, educação e outros campos ajudou a formar a opinião pública e indicar uma rota para o desenvolvimento social.

Quais as conclusões destes estudos que podem ser úteis hoje? O que podemos extrair deles que pode nos ajudar a refletir sobre acontecimentos contemporâneos que relacionam a informática com o futuro da sociedade? Resumidamente destaco algumas questões que me parecem especialmente importantes.

Uma descoberta consistente na história da época moderna é que o poder sobre as decisões mais importantes de como as tecnologias foram introduzidas esteve longe de ser distribuído igualitariamente. Aqueles que tiveram os recursos tecnológicos e financeiros necessários para criar novas tecnologias nas primeiras décadas de nosso século em muitos casos acharam desejável e viável moldar a sociedade de acordo com sistemas tecnológicos emergentes e planos organizacionais. Muitos dirigentes do setor corporativo julgaram a sociedade como simplesmente uma massa que poderia ser esculpida com resistência mínima por parte da população afetada.

A abertura para um controle social mais claro estivera presente nos locais de trabalho. Neles, os empregados eram geralmente vistos como maleáveis, submetidos a rotinas e disciplinas de trabalho. Esta atitude foi claramente mostrada no paternalismo de Principles of Scientific Management, de F. W. Taylor, e as práticas que antecipava. 'No passado o homem foi o primeiro', Taylor explicou. 'No futuro, o sistema deve ser o primeiro' (Taylor, 1911, p.7). Na visão de Taylor e em abordagens similares do dirigismo moderno americano, as relações de autoridade da indústria moderna eram perfeitamente claras. Quando um trabalhador aceitava um emprego em uma determinada firma, era contratado para seguir um intrincado esquema especificando o que fazer e como fazer. O empregador nomeava o emprego, especificava seu conteúdo e determinava o nível de conhecimento ou habilidades que o trabalho exigia. Assim, de acordo com a maneira que os locais de trabalho da sociedade industrial eram organizados, as pessoas eram requisitadas não apenas para tarefas produtivas, mas também para papéis estáveis, previsíveis e reproduzíveis. Estes esforços comportavam um forte componente moral. Os historiadores culturais observaram que durante as décadas centrais do século vinte, virtudes apropriadas ao desenvolvimento de máquinas - ordem produtiva, eficiência, controle, procura de dinamismo - se tornaram, igualmente, virtudes sociais em voga (Smith, 1993).

Para líderes industriais como Henry Ford, Henry Luce e Alfred Sloan, homens aptos a visualizarem processos em desenvolvimento, uma descoberta chave foi a de que o contínuo crescimento econômico exigia que um grande número de pessoas fossem não somente produtores, mas também consumidores. Nos anos 20, era comum aos estrategistas corporativos a ambição de penetrar profundamente nas vidas das pessoas, oferecendo itens e oportunidades para consumo, juntamente com imagens e slogans sob medida, que ajudavam a figurar identidades, atitudes e estilos de vida que poderiam guiar as tendências das pessoas na vida caseira e no lazer. O design industrial, a publicidade, o jornalismo patrocinado por corporações e educação pública se combinaram com o planejamento industrial para promover uma série de papéis sociais fortemente demarcados, descritos em fotos, jornais e artigos de revistas e livros escolares (Marchand, 1985). Na inteligente observação de Michael Schudson, 'Onde a compra substitui o fabrico, o olhar substitui o fazer como ação social fundamental, ler sinais substitui seguir ordens como uma habilidade moderna crucial."

Sob esta ótica, os historiadores Roland Marchand e Terry Smith comentaram os amplamente difundidos tableaux vivant presentes na vida moderna, combinações de textos publicitários e fotografias que, da década de 20 aos anos 50 descreveram:

O executivo no prédio comercial
O trabalhador na fábrica limpa e bem-organizada
A dona-de-casa na sua cozinha bem-equipada
Crianças cercadas de produtos para os pequenos
O motorista dirigindo velozmente em uma auto-estrada totalmente livre.

O propósito dessas imagens era projetar possibilidades de vida na sociedade moderna em um momento no qual muitas dessas possibilidades ainda eram ficção. Fundamental para o efeito destas projeções era uma descrição sobre o mundo na qual o papel ordenado das pessoas na produção seria recompensado por um papel igualmente ordenado, racional e moderno no consumo. Juntamente com as estratégias corporativas bem-planejadas que relacionavam os bens de consumo com slogans publicitários, fotografias, relatos em revistas e outros estímulos muito bem divulgados, as pessoas eram encorajadas a procurar sentido e completude dentro de opções prescritas. Seria absurdo afirmar que estes esforços obtiveram êxito em determinar o conteúdo da vida das pessoas completamente. Mas penso que é verdadeiro afirmar que houve momentos deliberados e efetivos na formação e guia de como as pessoas comuns entendiam as possibilidades da vida. Alguém deveria viver somente por um tempo em sociedades nas quais estes acontecimentos não formaram raízes - por exemplo, sociedades prósperas na Europa contemporânea, onde o consumismo como modo de vida ainda não controla a maneira pela qual as pessoas entendem a si próprias, a família e a sociedade - para notar a artificialidade e pungência das estratégias modernas de controle social da América.

Histórias destes processos sugerem claramente que os termos básicos deste contrato social eram não-negociáveis. As idéias e planos dos cidadãos comuns não foram consideradas como cruciais para o planejamento corporativo. Nos anúncios e tableaux vivants, o futuro era sempre descrito como algo integral e inevitável. As pessoas eram levadas adiante por forças maiores que elas mesmas, para um mundo racional, dinâmico, próspero e harmonioso. Um visita à World's Fair em Nova York em 1939 bastava para convencer alguém do furor disto tudo. Não havia pavilhões para solicitar sugestões públicas a respeito de novos aparelhos, sistemas ou definições de papéis. Conforme milhões de visitantes passeavam na feira, eles aprenderam como orientarem-se para mudanças no viver que pareciam abranger suas trajetórias inegavelmente.

Apresentar o futuro desta maneira foi útil a um importante propósito. Os responsáveis pelas escolhas da direção de prioridades sociais e investimentos - por exemplo, Robert Moses e outros organizadores da New York World's Fair - não desejavam abrir o planejamento das inovações téncico-sociais de forma a tornar o processo mais inclusivo. Divulgando o guarda-chuvas do 'progresso' acima dos detalhes da política, as elites políticas e econômicas foram capazes de dissolver as críticas públicas. O consenso social bem-manejado de que os desenvolvimentos em curso não eram negociáveis foi refletido no silêncio dos discursos públicos sobre alternativas, como por exemplo, a quase total ausência de fóruns públicos na imprensa ou em qualquer outro lugar, dos anos 20 até os anos 50, nos quais os significados de novas tecnologias e suas conseqüências poderiam ser discutidos, criticados ou debatidos.

Entregues à população americana como a última promessa de sociedade moderna foram as satisfações individual e material. O mundo moderno seria um local onde os desejos pessoais seriam saciados através do consumo de mercadorias industrialmente produzidas. Tão glorioso era o futuro vindouro, que qualquer tentativa de negociar seus termos seria vista como petulante. Estavam faltando neste prospecto a atenção para com os bens e os problemas coletivos. O comprometimento social de longo prazo e os custos sociais do 'progresso' foram obscurecidos pela crença de que a realização individual era tudo o que importava. Ou seja, comprar e dirigir o automóvel daria ao motorista e à sua família uma sensação de emoção e pertencimento. Na ocasião e também atualmente, o automóvel era mostrado sempre em auto-estradas milagrosamente livres de outros veículos, em estradas bem pavimentadas que pareciam se estender ao infinito, seja onde fosse que os motoristas felizes guiassem seus volantes. Como um anúncio dos anos 30 da gasolina de etilo proclamava: 'Sempre há espaço lá fora".

Um outro ponto importante dos estudos culturais e sociais do modernismo se detém sobre o design dos artefatos. Aqueles em posição de tomarem decisões estavam cientes de que, no momento em que a população observasse as novidades pelas quais é bombardeada, poderia achar as transformações complexas e confusas. Sob esta ótica, uma estratégia de design comumente escolhida era ocultar as complexidades dos aparelhos, os sistemas e arranjos sociais, e fazê-los parecerem simples e maleáveis. Assim, por exemplo, o aerodinamismo e outras variedades de metais brilhantes foram adotados em mecanismos técnicos e complexos, dentro de superfícies atrativas e suaves. Na medida em que as pessoas se sentiam à vontade com essas formas, as obras do mundo artificial que as circundavam pareciam cada vez menos compreensíveis. O mesmo se aplica a textos e fotos publicitários. Soluções extremamente simples - freqüentemente envolvendo melhora pessoal com a ajuda de produtos consumidos - eram propostas para problemas reais e complicados. Eventualmente, alguns destes problemas complexos - congestionamento, poluição, degradação ambiental e urbana - se colocavam como questões difíceis, causando ainda mais irritação pelo fato de que eles pioravam a cada década.

Quando ponderamos sobre os horizontes da informática e da sociedade hoje - por exemplo, escolhas na criação e uso de redes de computadores em escala gigantesca - parece provável que a sociedade americana irá reproduzir algumas tendências básicas do modernismo:

. Poder desigual nas decisões-chave sobre o que será construído e porquê
. Tentativas de moldar e direcionar as vidas das pessoas no trabalho e no consumo
. A apresentação da sociedade do futuro como algo não-negociável
. O reforço na gratificação individual ao invés dos problemas e responsabilidades coletivas
. Estratégias que ocultam e ofuscam importantes domínios de complexidade social.

Modelos deste tipo persistem porque as instituições de planejamento, finanças, governo, propaganda, educação e design que determinaram a forma da modernidade mais cedo neste século, ainda são extremamente poderosas. Focos ocasionais de resistência e reforma por parte dos sindicatos, ambientalistas, grupos de consumidores, feministas e outros, têm sido, na maioria das vezes, neutralizados ou absorvidos. Por exemplo, o impulso para os limites da ecologia é repaginado na forma de 'consumismo verde', e as demandas por participação nas decisões no local de trabalho viram 'autorização' através da posse e do uso de computadores pessoais. Possibilidades para escolhas sociais conscientes e ações sociais deliberadas são geralmente colocadas em segundo plano para tornarem-se obsessões focadas na compra e posse de bens.

Por mais forte que essas tendências permaneçam, entretanto é duvidoso que o mundo que se forma ao redor e dentro dos atuais sistemas de informação irá simplesmente reproduzir os termos de décadas anteriores. De fato, muitas das formas de individualidade e organização social cuidadosamente criadas para a sociedade moderna parecem mal-apropriadas para condições que, agora, confrontam cada vez mais os americanos no local de trabalho e em outros locais. Por exemplo, o foco da identidade pessoal baseada na posse de um emprego duradouro parece destinado a se tornar uma relíquia do passado industrial (Glassner, 1994). No contexto das comunicações globais, empreendimentos globais, produção escassa e flexibilidade organizacional, a idéia de que alguém possa ser funcionário permanente de uma organização ou indústria é cada vez menos sensata. Muito trabalho do pessoal de escritório e de colarinhos azuis é, agora, temporário. Para uma quantidade crescente de profissionais, até mesmo os técnicos com boa formação, exige-se que eles se definam como empreendedores aptos a passarem de projeto para projeto, tarefa a tarefa, lugar a lugar entre muitas organizações. O pressuposto para empreendimentos centrados em computadores não é mais aquele de pertencer e ser importante para qualquer quadro de relação de trabalho duradoura. De forma crescente, nossas companhias fomentam o perpétuo desprendimento. Como as pessoas reagem a estas situações, como elas vão recriar a inidividualidade em uma era em que todos são dispensáveis, pode se tornar uma questão muito mais séria nas próximas décadas do que a freqüentemente lamentada queda real dos salários.

Outra crise emergente na sociedade da informação está relacionada com onde e como as pessoas vão experimentar quadros sociais. Para o modernismo, o quadro prescrito para relações sociais era o das cidades e subúrbios. As pessoas estavam situadas geograficamente e esperavam formarem vínculos próximo às suas casas. Mas hoje é terminantemente óbvio que, para segmentos mensuráveis de nossa sociedade e importantes economicamente, os vínculos não são mais definidos apenas por uma questão geográfica. Muitas atividades de lazer e trabalho se desenvolvem em ambientes globais, eletrônicos, e assim as pessoas acabam formando suas relações. Robert Reich, entre outros, se preocupa com o fato de os analistas simbólicos das redes de empreendimento global atuais estarem abandonando as lealdades tradicionais a seus compatriotas, abandonando os menos favorecidos, os menos "conectados" para sofrerem em cidades decadentes (Reich, 1991).

Sem dúvidas, atitudes desta natureza podem ser encontradas no ciberlibertarianismo sociopata dos anos 90, como as representadas, por exemplo, no 'Cyberspace and the American Dream' da Progress and Freedom Foundation (Dyson et al., 1994) e em muito na prosa hiperventilada da revista Wired. O que é afirmado neste pensamento é um forte desejo pela liberdade de mercado e uma auto-expressão sem expectativas de que ciber-egos inflados nada devem aos que estão geograficamente situados. As condições de trabalho e comunicação que têm prevalecido parecem encorajar o desenvolvimento de maneiras de ser humano que correspondam aos movimentos hipertextuais da world wide web. 'Não conte comigo para nada; estarei fora daqui na velocidade de um clique de mouse.' As virtudes importantes expressas neste contexto não envolvem mais a busca moderada de eficiência, preditabilidade e ordem favorecidas no modernismo clássico. Valorizados, agora, são a flexibilidade protéica, o empreendedorismo incansável e uma vontade de dissolver os vínculos sociais na busca de ganhos materiais. Claro, há muitos conflitos sociais que este individualismo exacerbado esconde. Muitos daqueles cativados com a globalização como um acontecimento de vitalidade econômica também lamentam a 'família enfraquecida', o 'colapso da comunidade', e o 'caos nos centros das cidades', falhando em notar a conexão com o que defendem de modo mais genérico. Conforme a força da computação global se expande, fica incrivelmente difícil para os computadores em casa somarem 2+2 e obterem 4.

Há muitos, evidentemente, que esperam que novas formas desejáveis de comunidade vão surgir, que as pessoas vão usar seus computadores e a Internet para forjarem novos vínculos sociais e identidades, incluindo as que podem fortalecer a vida da comunidade local. O tempo vai dizer se estas esperanças desejáveis vão vingar. É o que qualquer um quer saber: que tipos de personalidades, estilos de discurso e normas sociais irão florescer nestas novas configurações? A mídia digital vai manter vínculos saudáveis entre as pessoas próximas e distantes geograficamente? Ou vai estimular a indiferença, o ressentimento e o desprezo mútuo que a distância gerou em outros contextos históricos? Se os hábitos de expressão comumente encontrados na metade dos anos 90 nos grupos de notícias na Internet são, de alguma maneira, indicativos, as formas de respeito interpessoal, civilidade e amizade que formaram as bases de comunidades baseadas na tradição e na proximidade física parecem se encaixar de forma insatisfatória na Rede. Encontramos freqüentemente on line nos nossos dias um personagem de Nietzsche para o século vinte e um: o homem branco irascível, auto-absorto, ciber-malcriado. (Winner, 1995)

Uma característica dos primórdios do modernismo do século vinte que a sociedade americana provavelmente vai reproduzir nos próximos anos é o hábito de excluir os cidadãos comuns de escolhas importantes sobre o design e a concepção de novas tecnologias, incluindo os sistemas informacionais. Os líderes industriais ainda se permitem a velha mania de apresentar como faits accomplis o que, de outra forma, poderiam ter sido escolhas abertas a diversas idéias públicas, investigações e debates. Em matérias de capa de revistas, as campanhas publicitárias de empresas e discursos políticos, os anúncios da chegada da Superestrada da Informação e metáforas similares ainda são pintados como inevitáveis. Preparem-se, pessoal, aí vem: a caixa com tudo em cima!

O Teatro Firesign dramatizou esta previsão muitos anos atrás, em uma sátira mordaz sobre um futuro eletrônico. Na esquete, um personagem vestido de palhaço entra em uma van em direção a um parque de diversões atraente. Uma gravação anuncia: 'Viva no Futuro! Está começando agora!' O passageiro olha para os outros presentes na van, buzina sua corneta e comenta: 'Sabe, acho que somos todos Bozos nesta condução'. Basicamente o mesmo pode ser dito dos líderes políticos e corporativos que esperam guiar a população como rebanho nas rampas da 'Supervia da Informação' com extravagâncias, como as que promoveram o lançamento do Windows 95.

Estas são questões nas quais os pesquisadores que desenvolvem trabalhos nas áreas de informática e de futuro poderiam ter influência positiva. Se estamos pedindo às pessoas que mudem suas vidas para se adaptarem à introdução de novos sistemas de informação, parece responsável solicitar ampla participação na deliberação, planejamento, tomada de decisões, protótipos, testes, avialiações e quetais. Alguns dos melhores modelos, no meu entender, vêm das democracias sociais escandinavas, onde uma variedade de circunstâncias sociais e políticas faz das consultas a trabalhadores comuns e cidadãos uma prática muito mais comum do que nos EUA (Sandberg et al., 1992). Amplas participações deste tipo são garantidas pelos princípios da democracia e da justiça social, mas também faz sentido porque é provável que isto produza sistemas melhores, que se adequem melhor a necessidades humanas reais. Infelizmente, modelos inovadores como este raramente foram tentados nos Estados Unidos, talvez porque sejam muito democráticos para os que vêem nosso sistema mercadológico como superior e onipotente.

Simultaneamente, é fascinante observar o que até mesmo as formas modestas de responsabilidade do cidadão encontradas nos contextos de testes de mercado supercontrolado revelam. Apesar da enorme pressão política e corporativa para a televisão de alta-definição no fim da década de 80, por exemplo, o público americano nunca acalentou a idéia. Afinal de contas, porque mais linhas na tela seriam desejáveis? Na metade dos anos 90, quando a indústria da televisão descobriu utilidades mais lucrativas para a largura de banda do vídeo, a campanha pela HDTV foi discretamente deixada de lado. Em um desenvolvimento similar, relatórios recentes sugerem que depois de todo o furor sobre a versão da tão aclamada supervia da informação enfatizando a TV interativa, companhias descobriram que os consumidores não se interessavam pelas suas aplicações mais 'quentes': filmes por pedido e compras em casa. Em contrapartida, o que as pessoas pareciam estar interessadas - uma possibilidade que muitos profissionais de informática socialmente responsáveis anteciparam há um bom tempo - são redes com arquitetura aberta, redes de comunicação de muitos-para-muitos, nas quais as pessoas podem ser mais que consumidores passivos de informação: podem ser produtores, atores criativos aptos a interagirem com novas possibilidades e, talvez, dar-lhes uma marca pessoal distintiva. Denise Caruso, que escreve sobre negócios para o New York Times, defende que os designers de corporações, sensíveis aos humores do público, voltaram às mesas de desenho, deixando de lado as caixas apenas para abrir, voltando-se para o aperfeiçoamento dos modens via cabo.

Ao passo em que é encorajador observar essa influência da população em geral, as contribuições que dela se espera são sempre silenciosas e indiretas. A atitude de muitos líderes na indústria da informática e telecomunicações ainda parece ser a de que somente eles sabem o que é bom para para seus compatriotas e que, no futuro, eles exercerão controle corporativo sobre a forma que os meios de informação terão, em seguida, vão se apossar destes mercados e, depois, colocar sua marca própria nas vidas das pessoas. Como observa Caruso, 'as companhias telefônicas..., preparando [suas próprias] redes e serviços, chegaram ao consenso de que a fibra 'co-ax' é o design correto (Caruso, 1995).

Quão tranqüilizante!: evidentemente o 'design correto' está direcionado em nosso favor e não tivemos que mexer um dedo sequer. Situações como essa fazem eco às primeiras palavras do Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau, escrito dois séculos atrás: 'Os homens nasceram livres, mas em todos os lugares eles estão acorrentados.'Uma máxima equivalente hoje pode ser: 'As pessoas não nasceram com anéis de metal em seus narizes, mas muitas inovações tecnológicas supõem, silenciosamente, que sim.'

Mas por que deveríamos estar prontos para um afrontamento tão ostensivo? Antes de excluir as energias e idéias da população americana, antes de tentar predeterminar os horizontes da informação e da sociedade, pesquisas e aprimoramentos em computação deveriam envolver o público - pessoas comuns de diferentes modos de vida - em atividades de inquérito, exploração, diálogo e debate. Aqui os profissionais da computação poderiam, se quisessem, exercer uma liderança que se faz necessária. Enquanto algumas vezes é tentador concluir que simplesmente estamos indo 'onde a tecnologia está nos levando', ou que as mudanças sociais por vir deveriam ser 'determinadas pelas forças de mercado', o ponto da questão é que, de fato, escolhas deliberadas sobre as relações entre as pessoas e novas tecnologias são feitas por alguém, de alguma maneira, todos os dias do ano. As pessoas cujo trabalho lhes possibilita participarem destas escolhas fundamentais devem ser diligentes em expressar seu conhecimento e julgamento para um público amplo. De outra forma, elas podem se ver empregadas meramente como 'novos rancheiros', que ajudam a amarrar a sociedade com os anéis de metal digitais.

Conforme o século vinte se encerra, é evidente que, para o bem ou para o mal, o futuro da computação e o futuro das relações humanas - na verdade, do próprio ser humano - se interligam completamente. Entre as obrigações que esta situação apresenta está a necessidade de procurar alternativas, políticas sociais que possam desfazer o legado melancólico do modernismo: sistemas de comunicação de mão única, prevenção contra a escolha social democrática contra a manipulação corporativa, e a apresentação de mudanças amplas nas condições de vida como algo justificado por um 'progresso' unívoco, irresistível. É verdade, os hábitos de sonambulismo tecnológico cultivado por décadas não serão facilmente superados. Mas como ondas de inovações superbadaladas enfrentam óbvios e crescentes sinais de desordem social, as oportunidades de conversas enriquecedoras às vezes se apresentam. Escolhas a respeito de tecnologias computadorizadas envolvem não somente questões óbvias sobre 'o que fazer', mas também algumas menos evidentes sobre 'quem ser'. Pela virtude de sua vocação, os profissionais de computação estão bem situados para iniciar os debates públicos nesta questão, ajudando uma população democrática a explorar novas identidades e os horizontes de uma sociedade mais justa.

REFERÊNCIAS

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Traduzido por João Pedro Delevatti Perassolo. Tradução ainda não revisada.







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