Crise no Desenvolvimento Cultural - Problemas das Culturas Tardias*

Arnold Gehlen


Devemos agora voltar nosso senso cr�tico � nossa pr�pria cultura, e, ao mesmo tempo, lidar com algumas dificuldades e obje��es. Nosso argumento situa-se em um contexto estabelecido por v�rias tentativas dentro da filosofia da cultura, datadas do in�cio do s�culo. Entre tais tentativas, duas das que mais merecem considera��o foram feitas sob a sombra de uma ou das duas Guerras Mundiais, na Alemanha por Spengler, na Inglaterra por Toynbee. Contudo, como P. A. Sorokin mostrou (1), algumas das considera��es relevantes mais tarde desenvolvidas por esses dois autores j� haviam sido apresentadas pelo russo N. J. Danilewski (1822 - 1885) em seu livro Russia and the West (2).

Todos esses autores concordam nos seguintes pontos: a Terra viu muitos fen�menos, amplamente independentes um do outro, chamados culturas; as culturas - mais do que as pessoas ou os estados - deveriam ser consideradas as unidades pr�prias do discurso na hist�ria universal; apesar de suas diversas particularidades, todas as culturas mostram alguma uniformidade ou semelhan�a estrutural; nossa pr�pria cultura (essencialmente, europ�ia ocidental) encontra-se em decl�nio, tendo entrado no "est�gio civilizacional" e, como uma "cultura tardia", est� lentamente se aproximando de seu fim; isso permite compara��es significativas com as condi��es avan�adas de culturas anteriores, e particularmente com aquelas da Antig�idade cl�ssica.

A maioria dos argumentos e evid�ncias apresentados para sustentar essas desalentadoras conclus�es s�o t�o chocantes que n�o deixam de impressionar a maioria dos leitores informados historicamente que pretendam levar em conta evid�ncias qualitativas. Logicamente, a habilidade para discutir essas teorias pressup�e um n�vel de conhecimento compartilhado apenas em c�rculos relativamente limitados de leitores.

H� um not�vel n�vel de concord�ncia, entre aqueles autores que merecem considera��o, a respeito dos �ndices que justificam o uso de um termo como "culturas tardias". Ao descrever as caracter�sticas intelectuais de uma cultura em sua fase civilizacional, pode-se usar a express�o empregada por Goethe ao final de sua breves, mas significativas, proposi��es sobre o tema "�pocas do esp�rito" (1817) (3):

Ningu�m pondera com sensatez ou trabalha silenciosamente; todos espalham aleatoriamente semente e joio. N�o h� mais um ponto central em rela��o ao qual algu�m estabelece uma opini�o. Todo mundo se apresenta como um professor e um l�der, e trata qualquer bobagem que esteja anunciando como se fosse uma realiza��o perfeita... Qualidades que naturalmente se desenvolviam em separado s�o levadas a um forte confronto.

Toynbee, na parte final da vers�o condensada de seu trabalho A Study of History (vol 1.), lista um grande n�mero de caracter�sticas associadas �s fases tardias das culturas. Particularmente significativos s�o os sintomas de natureza espiritual; que s�o geralmente vistos atrav�s de polariza��es; por exemplo, tanto a "malandragem" quanto o "andar sem rumo" encontram um correlato n�o apenas na sensa��o de pecado, mas tamb�m na consci�ncia sens�vel ou na fuga do mundo, que freq�entemente toma a forma de uma fuga da sociedade. Pr�ximos aos arca�stas e �queles que romantizam o passado s�o encontrados os futuristas; assim, em nossa pr�pria �poca, tend�ncias pleb�ias e prolet�rias s�o parte do mesmo panorama no qual aquelas atitudes mais sens�veis, como as pinturas de Klee, florescem. O sincretismo, a mistura de todos os estilos, formas e sentimentos, triunfa em todos os n�veis e em todos os cen�rios.

A tais aspectos da fase civilizacional, Spengler incorpora for�as impositivas mais amplas de uma natureza objetivamente social: as megal�poles, o dinheiro, o intelecto racional. Spengler reconhece este intelecto como a forma urbanizada da mente; ele "corrige as grandes religi�es da primavera, e erige ao lado da velha religi�o da nobreza e do clero, a nova religi�o do Tiers �tat: a ci�ncia liberal." Spengler viu o socialismo �tico como a for�a que, desde a virada do s�culo, decretou-se como a portadora da interpreta��o definitiva para o mundo. A "economia pol�tica convertida ao tom imperativo" anteriormente reinou soberana, mas agora o cora��o tornou-se completamente socializado por sentimentos de simpatia e enternecimento. Esses sentimentos proporcionam uma esp�cie de comovedora m�sica ambiente �s nossas violentas cidades com suas altas taxas de mortalidade. E as taxas de mortalidade demonstram que, apesar de o homem poder ajustar seu comportamento � cidade industrial, ele n�o pode mais enfrentar esse modo de exist�ncia no n�vel mais profundo, biol�gico, de sua pr�pria constitui��o.

Algumas obje��es

N�o se pode excluir de uma investiga��o s�cio-psicol�gica as id�ias rec�m discutidas apenas porque elas ganharam, na mente de muitos, o status de auto-evidentes. No entanto, devemos considerar brevemente a quest�o na perspectiva deste livro, em contraste com os fundamentos daquela interpreta��o.

Algumas vezes o ponto n�o � tanto a verdade das proposi��es do tipo das aqui relembradas, mas sim a sua alega��o de serem toda a verdade. Tais restri��es s�o especialmente plaus�veis quando dirigidas a textos particularmente dedicados a uma avalia��o cr�tica meticulosa de nossa pr�pria �poca. Pode-se argumentar que a �nfase sistem�tica localizada no fen�meno patol�gico em tais textos leva a uma descri��o tendenciosa. Por�m, tal �nfase � inevit�vel. Todas as entidades vivas tornam-se acess�veis para an�lise somente quando s�o tomadas em separado, decompostas; e isso ocorre provavelmente porque � apenas nesse momento que o curso de seu desenvolvimento � completo at� um determinado fim, ou porque � nesse momento que rela��es causais s�o simplificadas. Os fisiologistas devem interferir no organismo para fazer experimentos e obter conhecimento; apenas em um estado n�o-natural o seu objeto encontra-se dispon�vel para investiga��o. Poderia ser diferente com os fisiologistas da cultura? No estudo da cultura, o mais rico de todos os fen�menos vivos, onde o florescer e a decad�ncia continuamente disputam e alternativamente conquistam a vit�ria, o estudante n�o corre o risco de perder esses processos ocultos que mant�m a vitalidade, em sua preocupa��o com o urgente problema da decad�ncia? De forma mais gen�rica, pode-se questionar se aqueles fen�menos que exigem maior aten��o, devido a sua urg�ncia e a sua aparente signific�ncia, s�o verdadeiramente os mais representativos. Particularmente no �mbito social, aqueles aspectos que pedem aten��o imediata e aqueles mais acess�veis para investiga��o n�o deveriam representar a totalidade ou at� mesmo a maioria; n�o como indicadores de tend�ncias decisivas. Tendo isso em vista, pode-se buscar estabelecer a verdadeira import�ncia daqueles sintomas que Spengler e Toynbee analisam, e os quais este livro tamb�m menciona ocasionalmente.

Admitimos que tal obje��o pode ser feita a nossa pr�pria argumenta��o, mas consideramos que ela ser� apenas relativamente, n�o decisivamente, significante. Al�m disso, a situa��o alem� exige alguma reflex�o complementar. Aqui, sobre a teoria da cultura, associada � sociologia e � psicologia social, recai a tarefa de resumir a "grande disputa" que, no geral, tanto a filosofia quanto a literatura abandonaram. Em um importante ensaio, Erich Franzen mostra que a fic��o moderna - especialmente aquela produzida fora da Alemanha, e representada por autores como Hemingway ou Camus - est� dominada por um sentimento profundo de ansiedade. Esses autores refletem do come�o ao fim, com implac�veis conseq��ncias, o destino de um sujeito que encontra-se absolutamente desamparado em um mundo incontrol�vel e perigoso: "uma tens�o objetiva agora prevalece exclusivamente entre os fragmentos do ego e do absoluto perdido que, sozinho, poderia manter aqueles fragmentos unidos." (6) Essa transforma��o da realidade em um espa�o com dimens�es dificilmente imagin�veis discorda do projeto de uma sociedade guiada pela raz�o, a qual deve considerar esse tipo de literatura como "uma aventura deplor�vel". Sem d�vida, aquela sociedade est� limitada a encontrar a transgress�o em livros que enfocam "as �reas marginais da exist�ncia", e nos quais um tipo de mitologia ou "paramitologia", como se fosse escrita em hier�glifos (7), desafia severamente a cren�a das massas no progresso ou nas utopias simpl�rias dos profetas da felicidade. Particularmente esse tipo de confronta��o � especialmente dif�cil na Alemanha; Kafka deu a partida, mas ningu�m posterior a ele levou-a adiante. Na percep��o de Franzen, o grande choque precipitou uma esp�cie de amputa��o psicol�gica; a elabora��o emocional do complexo de ansiedade permanece truncada porque preferimos bloquear qualquer coisa que possa ativar esse complexo. A cr�tica rejeita toda nega��o do eudemonismo como "niilismo", e nenhuma luz intelectual � lan�ada sobre a situa��o.

Dessa forma, Franzen, de maneira perspicaz, responsabiliza a tend�ncia da fic��o alem� contempor�nea a omitir os elementos de perigo e a enfatizar os temas rom�nticos, uma tend�ncia que visivelmente contrasta com a inquietude percept�vel na poesia e na pintura. Contudo a poesia e a pintura n�o servem para an�lise sistem�tica e abrangente; elas tendem a ser consideradas artes menores (particularmente a pintura, com suas tend�ncias de transformar-se em arte gr�fica). Para um impacto e reflex�o maiores, deve-se basear sobre a contribui��o interpretativa a ser feita pela fic��o e pelas disciplinas acad�micas e cient�ficas, principalmente pela filosofia. Quando essas, entretanto, falham ao desempenhar esta fun��o, recai exclusivamente sobre a ci�ncia da cultura a tarefa de iluminar intelectualmente a situa��o. N�s devemos a consider�vel dimens�o da literatura alem� na teoria e na cr�tica cultural �s rela��es objetivas m�tuas entre os v�rios campos culturais, tanto quanto �s condi��es particulares da mente alem�. (8)

Um Novo Limiar Cultural

Quando James McNeil Whistler se op�e � vis�o de que a nossa � uma �poca de decl�nio, pode-se querer assentir. (9) Afinal de contas, o que alguns podem perceber como uma queda, uma desintraga��o, tamb�m pode ser experienciada, por outro lado, como a liberta��o, a abertura de novos horizontes, a fuga do c�rcere. Aquilo que, de fora, parece um desfecho predeterminado e superado, como uma progress�o por uma curva descendente preordenada, pode ter sido visto durante sua ocorr�ncia como uma nova aventura aberta a for�as vanguardistas. "O destino � sempre jovem", diz Spengler. (10)

At� o momento, assim como muitos esfor�os correntes no campo da reflex�o cr�tica, nos utilizamos livremente de muitos grupos diferentes de ferramentas. Contudo, pode-se, agora, reconsiderar a situa��o contempor�nea a partir de uma perspectiva mais ampla, v�lida e sistem�tica, e assim colocar em um quadro mais abrangente a quest�o do qu�o "tardia" � a nossa �poca.

Para fazer isso devemos recordar nosso argumento segundo o qual, com a cultura industrial, a humanidade encontrou um "limiar cultural absoluto" e iniciou uma seq��ncia de eventos qualitativamente singular, que avan�a em um ritmo sem precedentes. A hist�ria da humanidade conhece poqu�ssimos desenvolvimentos grandiosos cuja progress�o � irrevers�vel; os quais, pelas suas caracter�sticas, colocaram toda a hist�ria da humanidade em um novo n�vel, e subordinaram a sua influ�ncia todas as demais leis da hist�ria. J� na primeira edi��o deste livro (1949) n�s defendemos - como fizemos acima - que a hist�ria da cultura conhece apenas duas quebras t�o decisivas: a transi��o pr�-hist�rica da cultura da ca�a ao sedentarismo e � agricultura (a revolu��o Neol�tica), e a transi��o moderna ao industrialismo. Mais tarde, em nosso Urmensch und Sp�tkultur, afirmamos:

A impress�o � que a transi��o � cultura industrial, o dom�nio adquirido sobre o reino inorg�nico e, particularmente, sobre a energia nuclear, abre um novo cap�tulo na hist�ria da humanidade. Estamos envolvidos nesse processo nos �ltimos duzentos anos, e esse "limiar cultural" tem uma import�ncia compar�vel � do Neol�tico. Nenhuma esfera da cultura e nenhuma fibra do homem permanecer�o inalterados por essa transforma��o, que deve durar pelos s�culos futuros. Mas � imposs�vel prever o que ser� consumido nesse inc�ndio, o que sair� dele modificado, e finalmente o que ir� passar por ele relativamente conservado. (11)

A. Varagnac recentemente falou a respeito de uma mudan�a no ambiente natural do homem, acarretando diferentes "n�veis t�cnicos". (12) A cultura da ca�a e coleta era associada ao reino animal; a rural e pastoral, ao reino vegetal; e finalmente, a moderna cultura volta-se � mat�ria inanimada. (13) Nesse quadro, pode-se argumentar que toda a �poca cultural denominada como a "era da cultura" est� prestes a chegar ao fim, se utilizar-se a palavra "cultura" em um sentido aplic�vel �s mais altas culturas humanas at� agora. Alfred Weber defendeu exatamente isso:

Um processo de decomposi��o ideal, que coloca tudo em questionamento, est� afetando agora toda a Terra. Esse final n�o pode ser comparado com o de nenhuma outra era. O que est� terminando n�o � apenas o desenvolvimento ocidental at� o momento; n�o apenas, mais amplamente, a seq��ncia iniciada quando uma nova e conquistadora humanidade flutuou sobre o mundo por volta da metade do segundo mil�nio a.C. O que est� terminando � todo o padr�o das culturas mais sofisticadas constru�das desde 3500 a.C., e com ele aquelas culturas primitivas e semi-primitivas, que existiram lado a lado com as mais sofisticadas. (14)

Se tais vis�es t�m alguma validade, suas implica��es s�o enormes. Nessa perspectiva, a tem�tica inteira da maturidade e decl�nio de nossa �poca � como se "subsumida"*, levada em frente de uma nova maneira. Passa a ser poss�vel lidar com a �poca atual como uma encarna��o do padr�o de interfer�ncia ou de interpenetra��o entre uma era civilizacional antiga e outra inteiramente nova. No restante deste cap�tulo, pretendemos explorar estas implica��es.

Uma dessas implica��es � a possibilidade de se dar raz�o ao sentimento freq�entemente expresso de que a nossa � uma "�poca de transi��o". Nesse aspecto, a teoria de Spengler e Toynbee de ciclos culturais � inadequada. Ela requer que povos n�o experimentados historicamente devam estar esperando do lado de fora dos port�es da envelhecida cultura ocidental europ�ia-americana - mas n�o h� tais povos � vista. Mais exatamente, estamos testemunhando a reentrada no palco da hist�ria de povos tais como os indianos, os eg�pcios, e at� mesmo os chineses: povos os quais, de acordo com Danilewski, atingiram seu est�gio p�s-hist�rico, e os quais Spengler considera "povo de fel�s", resultados do desgaste de culturas debilitadas. Por outro lado, se o que define um povo como n�o experimentado � o fato de ele estar em um movimento t�o intenso que parece n�o ter forma para um observador casual**, ent�o todo o mundo atual est� novamente repleto de tais povos.

Indetermina��o como uma caracter�stica das �pocas

Retornamos agora dos problemas hist�rico-mundiais discutidos acima para os nossos temas s�cio-psicol�gicos, tendo respondido � quest�o colocada no in�cio deste cap�tulo sobre o lugar que a cr�tica da nossa cultura ocupa em nossa tese. Apesar de ser justificada subjetivamente por muitos fen�menos, uma postura meramente cr�tica deve dar lugar a um conhecimento mais profundo, possivelmente enquanto as linhas da hip�tese de trabalho avan�am. Se aquilo com o que estamos lidando � uma interfer�ncia entre, de um lado, uma condi��o da civiliza��o j� vista diversas vezes na cena mundial, e de outro, um processo singular pelo qual a humanidade est� estabelecendo o "ambiente natural" no qual viver� no futuro - em suma, o processo multidimensional de "industrializa��o" e as mudan�as de consci�ncia a ele associadas - ent�o torna-se poss�vel colocar sob uma nova estrutura os sintomas e fen�menos a serem mencionados. Dentro desse contexto, todos eles parecem ter dois lados: eles desafiam tanto o futuro quanto o passado. Essa bilateralidade e essa ambig�idade s�o parte de sua natureza particular, e constituem caracter�sticas distintivas de nossa �poca.

Pode-se sentir com freq��ncia que os est�gios e eventos atuais resultam de componentes completamente heterog�neos; que h� algo amb�guo e objetivamente obscurecido sobre eles. Mesmo fen�menos importantes, como Thomas Mann bem o sabia, oscilam entre o s�rio e o c�mico; e necessidades t�cnicas, com suas mentalidades correspondentes, podem ser quaisquer coisas desde construtos com objetivos fixos e historicamente desenvolvidos at� realidades dotadas de legitimidade, profundamente enraizadas no cora��o. Somente alguns poucos pintores modernos foram capazes de representar esse estado de realidade, ao produzir imagens surrealistas que s�o objetivamente indeterminadas.

� em guerra que estamos, ou em paz? Temos ou n�o uma p�tria? Vivemos na era do socialismo ou do capitalismo? As respostas s�o arbitr�rias, mas n�o porque elas variam de acordo com o ponto de vista - mais especificamente, porque ambas respostas s�o igualmente certas. Considere um pa�s onde os postulados revolucion�rios cl�ssicos do programa Gotha foram de 80% a 100% atingidos***, onde os padr�es de vida das classes mais baixas melhoram a todo momento, e onde os ricos tamb�m ficam mais ricos a todo momento. Como voc� vai classificar esse pa�s? Como voc� caracteriza uma �poca na qual a socializa��o de sentimentos progrediu a n�veis sem precedentes, de forma que todos concordam que qualquer sofrimento, real ou imaginado, deve ser socorrido, e quando, por outro lado, as dist�ncias entre as classes aumentam objetivamente?

Outros exemplos poderiam ser tomados de numerosas esferas. Alguns estudantes contempor�neos de medicina interna acreditam, sem reservas, na causa ps�quica de doen�as org�nicas, ao ponto de as doen�as aparecerem como culpa e de os tratamentos quase transformarem-se em metaf�sico. Se n�o se deseja ir t�o longe, ent�o se permanece amarrado a uma realidade que, ela pr�pria, � objetivamente obscurecida, objetivamente indeterminada, e que compartilha com os exemplos sociol�gicos anteriores � propriedade de permitir julgamentos conflitantes. Tais realidades, lentamente, est�o se transformando na caracter�stica distintiva de nossa �poca; considere que at� mesmo a f�sica agora analisa entidades obscuras, sem rela��es esclarecidas, e objetivamente indeterminadas. E a arte, ent�o? Aqui encontramos, como por exemplo em Klee, imagens que decisivamente violam os limites que a arte anteriormente havia imposto a si mesma. Como plantas ex�ticas, elas nos assombram com misturas de qualidades nunca antes vistas, surpreendem o olhar e o tato. Enquanto seu p�blico a contempla com uma consci�ncia diferente, mais arcaica, tal arte poderia muito bem ser entendida como uma rival direta da natureza, como um fetiche.

A consci�ncia da nossa �poca persegue com uma energia extraordin�ria o seu dever prescrito de violar fronteiras, de mesclar elementos heterog�neos, at� ela pr�pria assumir essas caracter�sticas. As "opini�es" previamente abordadas (ver, no cap�tulo 3, "Opini�es como uma Segunda-Experi�ncia), tornam-se novamente importantes nesse contexto. Indubitavelmente elas s�o formadas por uma rea��o compulsiva � perda da experi�ncia direta e �s desagrad�veis tens�es da ignor�ncia; contudo elas tamb�m representam um caminho atrav�s do qual a indetermina��o objetiva atinge a mente individual, e traduz-se no pensamento de todos. Claramente, a necessidade de informa��es precisas e pensamento agu�ado tornou-se menos amplamente sentida, e agora est� limitada a c�rculos estreitos. � not�vel o quanto a amplamente difundida necessidade de divertir e expressar opini�es se encaixa com as verdadeiras vagueza e indetermina��o da realidade em si.

Um exemplo adicional mostra como certos fatos s�cio-psicol�gicos, uma vez vistos sob essa estrutura, parecem bifaciais, quase ambivalentes, apesar de receberem uma interpreta��o simples e fatalista na teoria da cultura de Spengler. Spengler, como se sabe bem, atribui um racionalismo acentuado �s �pocas amadurecidas. Ele agu�a uma pol�mica originada com as tend�ncias jacobino-naturalistas (Rousseau e Diderot), levada adiande pelo romantismo e pelo pietismo e mais tarde fixada, ao menos no que diz respeito � opini�o p�blica alem�, por Nietzsche. (15) Indubitavelmente, � verdade que toda cultura viu uma tend�ncia de, a longo prazo, passar "do mito ao logos"; contudo pode-se defender que o futuro n�o guarda mais nenhuma perspectiva de ressurgimento de uma consci�ncia mitol�gica, visto que a cultura industrial que hoje est� conquistando o globo � racionalista do come�o ao fim. A quest�o das origens e conseq��ncias da racionaliza��o do esp�rito humano �, sem d�vida, uma quest�o chave. Max Weber j� a colocou (16), e pretendemos contribuir com algumas considera��es a respeito.

Keiter recentemente exp�s uma tend�ncia dentro da hist�ria universal em dire��o a, no geral, preferir-se meios de a��o mais efetivos e menos rigorosos. Segundo Keiter, entretanto, essa tend�ncia tamb�m se aplica a padr�es de pensamento, de forma que a longo prazo (e n�o sem recuos), padr�es de pensamento mais corretos, complexos, diferenciados e eficientes encontram o rumo do triunfo. Citando Keiter: "Isso acarreta, em princ�pio, que o curso dos acontecimentos humanos n�o pode, enfim, rejeitar muitos desses que n�s consideramos sinais de uma 'cultura mais elevada', visto que eles constroem seu caminho futuro nas bases do 'progresso t�cnico'." (17)

Essa perspectiva sugestiva significa que o processo s�cio-hist�rico possui uma esp�cie de mecanismo auto-regulado que, a longo prazo, direciona esse processo rumo ao processamento mais �gil e efetivo de todos dados - n�o somente dos naturais, mas tamb�m dos s�cio-hist�ricos! O resultado final desse processo seria inegavelmente a progressiva "racionaliza��o do esp�rito humano" ao longo da hist�ria universal.

Algumas considera��es antrop�gicas esclarecem essa conclus�o. Faz parte da ess�ncia da linguagem que ela coloque sobre o seu n�vel de diferencia��o, o do som, todas as ocorr�ncias, tanto internas quanto externas: sonhos e processos exteriores, sentimentos e instrumentos. N�s n�o refletimos o suficiente sobre o quanto isso � not�vel. Na medida que n�s articulamos palavras para indicar tanto informa��es internas quanto externas, estamos na posse de um instrumento universal. Isso � das mais poderosas conveni�ncias, j� que se poderia muito bem imaginar como seria se tiv�ssemos � nossa disposi��o uma linguagem de sons exclusiva para eventos externos, e se manifest�ssemos os internos atrav�s de uma linguagem gestual. Ao inv�s disso, somos capazes de um processo de abstra��o que comporta um importante efeito facilitador, j� que ele nos permite desprezar a distin��o praticamente mais importante de todas, aquela entre o interior e o exterior.

Contudo, nesse n�vel �nico, a linguagem permite inumer�veis diferencia��es emocionais; ela expressa atrav�s de v�rios dispositivos, entre eles o verso e a rima, as dist�ncias variadas das coisas em rela��o ao nosso cora��o. A racionaliza��o moderna, o produto final de um longo desenvolvimento, tem como conseq��ncia n�o apenas a coloca��o de fen�menos internos e externos em um mesmo n�vel, mas tamb�m basicamente que eles est�o a uma mesma dist�ncia. Visto de outra forma: torna-se poss�vel adotar, vis-�-vis todas as coisas e eventos, a mesma postura comportamental, banal, que recorre apenas a caracter�sticas objetivas. Isso permite uma extraordin�ria amplia��o de um modo de conduta que, h� muito habituados, n�s assumimos facilmente: a teoriza��o e a pr�tica racionais. Quando dizemos que algu�m pode "lidar" n�o apenas com carros, mas tamb�m com m�sica atonal ou com o clima social de uma f�brica, isso soa c�nico. Suscitamos intencionalmente essa impress�o para indicar que o dever da humanidade, em �ltima an�lise, � determinar quais dom�nios de coisas s�o, e quais n�o s�o, trat�veis pela racionaliza��o. Apenas o m�todo de tentativa e o erro pode dar uma resposta, e ent�o determinar o que � visto com pessimismo. N�o � poss�vel fazer previs�es exatas. Por exemplo, n�s agora atingimos, na esfera do estado, um grau de racionalismo e orienta��o banal que Fichte ou Hegel teriam considerado totalmente c�nico. Da mesma forma, n�s praticamente dispomos do conceito celebrado e cheio de p�thos de arte como um dom�nio aut�nomo e majestoso da realidade - um conceito que era a regra da arte aristocr�tica. Tamb�m em outras esferas, a considera��o central torna-se quais "diferen�as de dist�ncias do cora��o" devem ser preservadas, se as conseq��ncias desumanizadoras devem ser evitadas.

Tais reflex�es esclarecem a no��o exposta acima de um processo s�cio-hist�rico auto-regulado visando ao processamento das pr�prias informa��es mais eficiente e conveniente, ou �timo em qualquer n�vel. O avan�o em quest�o ser� inst�vel, arriscado e talvez sangrento. Um dia, talvez, a cr�tica da cultura colaborar� neste avan�o, mas no momento ela parece se satisfazer com o protesto emotivo em nome da tradi��o contra aquilo que � percebido como excesso do processo de racionaliza��o. Contudo, os argumentos desse cap�tulo j� mostram que simplesmente caracterizar a �poca atual como "tardia" n�o lan�a uma luz adequada sobre todos os problemas contempor�neos; em particular, tal vis�o tem pouco a contribuir � discuss�o colocada acima sobre o problema do racionalismo. Talvez toda a tem�tica da "cultura", particularmente no entendimento alem�o do termo, perten�a em um sentido ao passado. Sem d�vida, n�o somente o tema, mas, mais ainda, seus referenciais diretos - o per�odo da alta cultura pr�-industrial com seu ritmo de exist�ncia correlato - parecem agora um evento singular, que durou do ano 3000 a.C ao ano 1800 d.C.. Nessa perspectiva, n�o parece mais inquestion�vel que a cultura, naquele sentido, compreenda os valores e experi�ncias mais elevados da significa��o.

NOTAS DA TRADU��O INGLESA

* Aufgehoben. A express�o Aufheben, carregada de significado dial�tico em seu uso por Hegel e Marx, expressa "abolir", "preservar" e "elevar a um plano mais alto".
** Urv�lker durch und durch bewegt sind bis zu dem Grade, dass sie dem fl�chtingen Betrachter g�nzlich formloss erscheinen.
** O "programa Gotha" (1875) foi a cartilha ideol�gica do partido social democrata alem�o no final de s�culo XIX.


NOTAS DO AUTOR

1. Pitirim A. Sorokin, Social Philosophy in na Age of Crisis, ch. 3
2. Esse trabalho apareceu pela primeira vez em um peri�dico russo em 1869, e foi publicado em livro em 1871.
3. Spengler se refere expressamente a essa cita��o de Goethe em seu Decline of the West, vol. 2, p. 37.
4. Ibid., p. 97.
5. Ibid., vol. 1, p. 367.
6. Erich Franzen, "Die moderne Epik und die deutsche �ffentlichkeit".
7. A refer�ncia � a um livro do pintor Max Ernst, Paramythen.
8. Veja, por exemplo, a primeira edi��o edi��o desse livro, publicado como Sozialpsychologische Probleme in der industriellen Gesellschaft (1949); Pitirim A. Sorokin, The Crisis of Our Age: The Social and Cultural Outlook [New York: Dutton, 1957]; Hans Freyer, Theorie des gegenw�rtigen Zeitalters; e poder�amos ainda mencionar as obras mais antigas de De Man, Ortega, Jaspers, etc.
9. James McNeill Whistler, The Gentle Art of Making Enemies.
10. Spengler, Decline of the West, vol. 1, p. 152.
11. Gehlen, Urmensch und Sp�tkultur, p. 294.
12. Alfred Varagnac, De La Pr�histoire au monde moderne, p. 35.
13. A s�rie de ilustra��es de Max Ernst, Histoire naturelle, se estabelece como uma representa��o simb�lica desse processo cultural: a transforma��o do org�nico em inorg�nico, da carne em pedra.
14. Alfred Weber, Kulturegeschichte als Kultursoziologie, p. 399
15. Ver Gehlen, Der Mensch, pp. 339 ff.
16. Ver Karl Jaspers, Leonardo, Descartes, Max Weber, p. 41.
17. F. Keiter, "Die Naturv�lker", p. 973.

Traduzido por Barbara Nickel, a partir de esbo�os de Naira Hofmeister e Raquel Carvalhal. Revis�o de Marcelo Tr�sel.

* Crisis in cultural development. In Man in the age of technology. Nova York: Columbia University press, 1980, pp. 111-126.






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