Práticas de pique
A produção e regulação de corpos extáticos no mundo rave


Maria Pini


Freqüentar uma rave é um tempo para você gastar fazendo coisas que significam liberdade... É quando você pode realmente ser você mesmo. (Jane)

[Freqüentar uma rave] lhe proporciona uma liberdade pessoal. É uma forma de auto-expressão, não é mesmo? É uma forma de expressão total. (Teresa)

É quando você deixa tudo fluir e apenas é o que você é mesmo. Você se liberta de todas as suas inibições e se sente muito mais livre para ser você mesmo. (Kate)

Você se sente realmente livre... Você sentiu que você era você mesmo. (Miriam)

Como tem sido historicamente o caso na interpretação das práticas culturais da juventude, apareceu um associação entre as práticas de rave e certas noções de liberdade. Desde os anos 80, a cena rave britânica vem gerando a sua própria versão particular do que essa liberdade implica. O objetivo principal deste [texto] é confrontar certas leituras (argumentativamente) simplistas demais a respeito da cultura rave, identificando algumas das complexidades e contradições envolvidas em suas experiências. Particularmente, desejo contrastar as reivindicações de 'liberdade' feitas pelos simpatizantes das raves com os esforços extenuantes que podem ser necessários para sua produção. Desse modo, enfatizo também quanta auto-regulação e gerenciamento são necessários para produzir o que muitos ravers e acadêmicos valorizam como uma forma indisciplinada de ser.

[Noutro texto], Lisa Blackman destaca a tendência de polarizar as novas tecnologias segundo os modos liberador ou repressivo; sua aplicação ora com um potencial radical transformador, ora com uma temida extensão do controle repressivo e vigilante do Estado. Podemos fazer vários paralelos entre o criticismo da técnica corrente e o jogo discursivo que envolve a cultura rave contemporânea. Primeiramente, há a associação entre freqüentar uma rave e obter liberdade. Assim como se faz uma leitura festiva do espaço virtual, também o ambiente da rave é geralmente visto como capaz de levar o eu socializado em direção a um estado mais 'livre' de existência, que revelaria a essência básico do ser humano, além do seu exterior socializado. De alguma forma, o uso de drogas, os efeitos da música, a prática popular de dança em grupos e a natureza coletiva das raves dissolveriam essa imagem exterior, deixando os participantes num estado mais 'natural'. Alguns estudos acadêmicos sobre a rave se referem a uma natureza do ser pré-edipiano, enquanto outras invocam a linguagem primitivista do xamanismo e do tribalismo.

A segunda ponte de ligação entre a rave e o debate da crítica sobre a técnica é o dualismo entre uma cultura rave que sinaliza uma forma progressiva e pós-moderna de política juvenil e uma forma de escapismo, através do qual parte dessa juventude tenta 'evitar' as realidades sociais e econômicas mais abrangentes. Hesmondhalgh, corretamente, nota que as discussões sobre rave tendem a se dividir nas categorias ou de celebração ou de lamentação. Alguns críticos vêem-na constituindo uma forma de espaço 'sem regras', reminiscente da 'Zona Autônoma Temporária' (TAZ), de Hakim Bey. Outros, como Richard Sutcliffe, enfatizam a autonomia, sugerindo que 'a rave diz respeito à expressão corporal livre em relação à música'. Sutcliffe enxerga experiências individuais de autonomia na organização coletiva autônoma da rave, que ele relaciona à noção de máquina de guerra de Deleuze e Guattari. Ou seja, nela há algo de rizomático na forma e de resistente à fixação. Para ele, a fuga em relação ao controle e ao monitoramento policial e a forma errática como a divulgação das festas é disseminada podem ser vistas como indício do caráter rizomático da rave. Outros pesquisadores interpretam a rave em termos do que Deleuze e Guattari chamam de 'Corpo Sem Órgãos' (CSO), argumentando que os movimentos nas pistas de dança das rave podem ser melhor compreendidos através do conceito de linhas de fuga. Entretanto, os argumentos acima são difíceis de sustentar. Por exemplo: Hakim Bey recentemente declarou que a liberdade da interferência do Estado dentro da TAZ não é mais possível, e isso também pode ser verdadeiro para outras formas de reuniões públicas. Já Sutcliffe faz uma conexão automática entre as práticas que podem ficar de fora do controle burocrático do Estado e uma forma 'livre' de subjetividade. Igualmente dúbia é a teoria (acadêmica) de que a rave é uma cultura de 'desaparecimento' que, de alguma forma, resiste a um significado e, portanto, não pode ser classificada e nem apropriada pela academia.

Quando a cultura rave é comparada à TAZ ou ao CSO, significando que é algumas vezes menos sujeita à regras e, assim, hierarquicamente estruturada do que outras formas coletivas de organização, os ravers são em geral interpretados como personificações de 'liberdade'. Assume-se que a sua 'liberdade' deriva da ausência de dispositivos classificatórios e olhares 'grandiosos', que aparentemente caracterizariam outras formas mais 'racionais' de subjetividade. Rietveld, por exemplo, argumenta que um raver experimenta uma 'desintegração da forma construída'. Jordan escreve que: "Nessas vastas celebrações comumente chamadas de raves, os participantes gradualmente perdem a crença subjetiva de si mesmos, e se fundem num corpo coletivo cuja natureza é melhor captada pelo conceito de Deleuze e Guattari de 'corpo sem órgãos'". Ao mesmo tempo em que não nego o genuíno sentimento de liberdade que envolve [a prática da] rave, nem a 'perda' de racionalidade que pode surgir na congregação particular de tecnologia/corpo/química que constitui o evento, também acredito que uma análise mais apropriada da natureza precisa dessa liberdade pressentida se faz agora necessária. Inversamente, nota-se que, em oposição a essas interpretações mais celebratórias da rave pressupõem algum tipo de estado humano mais fundamental, não-regulado e essencial, outras sugerem que os ravers são 'trouxas', 'enganados' ou 'confusos'. Um argumento comum sobre dança social contemporânea é de que ela dá poderes à garotas e mulheres. Sarah Thornton, por exemplo, desconsidera as experiências de liberdade sentidas pelas ravers do sexo feminino, referindo-se à 'realidade' da sua situação social subordinada. Ela também critica certos estudos, que fazem 'confluir o sentimento de liberdade alimentado pelo ambiente de discoteca com os direitos políticos e liberdades substantivas'. Admitidamente, sua preocupação não é com o estudo da experiência, mas com o acúmulo, dentro da cultura clubista [club culture], de um pensamento influente, que ela chama de 'capital subcultural'.

Acredito ser inadequado o desprezo dessas experiências de 'liberdade' simplesmente porque é possível confrontá-las com uma 'realidade' mais visível. Donna Haraway declara que 'experiência é uma semiose, uma corporificação de significado', e nesse contexto, experiência não é um significante menos relevante do que os sinais mais concretos de 'direitos e liberdades'. A experiência [humana] é tão passível de tratamento sério como são os traços mais formais de cultura. Precisamos antes de mais nada explorar mais de perto as referências que chamamos de 'liberdade' e 'liberação'. Argüir que um momento de experimentação de 'liberdade' pode ser produzido ao mesmo tempo em que ele é monitorado ou elaborado de outra forma não é dizer que ele não é real: é apenas reiterar-se os argumentos do construcionismo social. Mas enxergar nas experiências de 'liberdade' um simples produto da suposta falta de controle das raves também é insuficiente. [Essa idéia] parece repousar num essencialismo que sugere haver uma essência humana que é de alguma forma descoberta através da prática da rave.

Em resumo, só porque a prática da rave pode prover uma liberdade de certas práticas regulatórias mais amplas do dia-a-dia (incluindo, talvez, as práticas interiores envolvidas para manter uma subjetividade mais coerente e racional, necessária para, digamos, trabalhar, ir à escola ou conduzir uma conversa), isso não significa que ela constitui necessariamente um espaço desregulado. Não há, como se está argüindo, algo como um espaço inteiramente desregulado ou um sujeito essencialmente não-regulado, porque até mesmo a experiência de liberdade pode envolver mecanismos de auto-gestão e regulação. Essa visão não é compartilhada pela perspectiva 'pós-modernista' adotada em Rave Off. Seus autores parecem enxergar a cultura rave como parte de um "além" quase pós-apocalíptico, no qual tanto o 'significado' quanto o 'indivíduo' construído estão mortos. Um dos problemas dessa interpretação é que é dada pouca ou nenhuma consideração para as várias experiências que precisam ser trabalhadas para a produção do que pode vir a ser experimentado como um estado de insignificância, liberdade ou existência não-acabada, além do trabalho que acompanha a manutenção desse estado. Ao invés disso, a impressão dada por vários dos seus autores é a de que o raver adentra esse estado de 'liberdade' fácil e automaticamente, como resultado do simples estar dentro do ambiente da rave. Participar dessas experiências envolveria necessariamente, ao invés, a compreensão da extensão em que os indivíduos são 'feitos' tanto quanto 'desfeitos' dentro do contexto da rave. Além disso, a falta de especificidade que caracteriza em geral esse tipo de trabalho contribui para a rejeição das numerosas diferenças que existem entre diferentes experiências individuais e grupais do mundo rave e, assim, suas diferentes noções do que são 'liberdade' ou 'autonomia'. Em conseqüência, na maior parte desse tipo de comentário, é mais fácil encontrar um raver como um generalizante não-específico, como um 'tecno-xamã' ou um 'ciber-hippie', do que como um sujeito portador de marcas de inscrição corporais como raça, sexo e outros.

A tendência de apresentar os ravers como figuras abstratas não-específicas está diretamente relacionada ao 'totalitarismo semiótico', que marca muitos trabalhos sobre raves e que pretende fazer afirmações fortes sobre sua 'verdade'. Centrar o foco nas negociações específicas das possibilidades abertas pela cultura rave questiona essa linha de raciocínio. Trata-se, no entanto, de algo necessário, se é para que a 'liberdade' que um raver específico possa experimentar não se torne um simples conceito abstrato de 'liberdade'.

A construção do momento de pique

Escrevendo há quase uma década atrás, Simon Reynolds fez a seguinte observação:

"Nossa cultura tem, desde muito, parado de pedir por uma redução de gratificação ou sublimação energéticas: ela insiste na satisfação, incita-nos a desenvolver nossa capacidade para o prazer. 'Juventude' - por estar correlacionada com sexo, estilo, hedonismo e boa-forma - tornou-se o valor supremo na nossa sociedade, quase uma definição de saúde... O Pop sempre foi uma música do corpo, mas o corpo agora é o locus primário da operação da força, é onde a força nos solicita. Ser um sucesso na vida envolve uma maximização do potencial do seu corpo para a saúde e o prazer."

Se Reynolds vê nas práticas culturais populares da metade da década de 80 uma crescente incitação ao aumento dos prazeres corporais, então a rave pode ser vista como tendo levado isso a um extremo nos anos 90. Apesar de ser importante reconhecer a crescente fragmentação da 'cultura' rave, o que une as diversas modificações dessa cultura é a (por vezes incansável) busca da experiência 'extremada' ou 'limite'. Como se argumentou em outro momento, no âmbito da rave está a relação mente/corpo/alma individual, é ela o alvo primário a ser trabalhado em busca desse limite.

A análise que se segue procura dificultar qualquer atribuição muito simplista do potencial 'libertário' da prática da rave, ainda que simultaneamente reconheça a realidade desse potencial e as sensações prazerosas que sua busca e obtenção podem proporcionar. Partindo de material de entrevista, simplesmente quer-se ilustrar como, em algumas situações específicas, se alcança o êxtase extremo. Emerge desta discussão infelizmente breve a necessidade de olhar para a especificidade da situação dos sujeitos desses extremos. Os exemplos seguintes - que ilustram algumas das várias operações pessoais envolvidas em alcançar e manter um estado desejado durante a rave - têm a intenção de levantar questões sobre idéias como as de Sutcliffe, para quem 'a autonomia é inerente à prática da rave' e a 'rave diz respeito a expressão corporal livre em relação à música'. Elas também destacam algumas das contradições próprias ao discurso dos ravers.

Foucalt escreve que:

"As Tecnologias do eu ... permitem aos indivíduos pôr em ação, por seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um número de operações nos seus corpos e almas, no seu pensamento, conduta e forma e existência, e, com isso, transformar-se de forma a ater um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade."

Sally e Jean são duas mães solteiras, desempregadas, de 19 anos. Os seguintes excertos foram pinçados de uma entrevista em grupo realizada em 1996. Quando perguntadas, inicialmente, sobre o que elas obtinham de bom nas raves, ambas concordaram que era a liberdade que lhes proporcionava. Jean chamava a isso de auto-expressão completa. No contexto geral de suas vidas, onde as exigências de mães solteiras e as restrições financeiras limitam como e quando elas podem "expressar" a si mesmas, é fácil perceber como o ambiente rave provoca esse momento de "liberdade". Paradoxalmente, contudo, seu momento de 'liberdade' e 'auto- expressão' - que ambas concordaram ser suas horas mais felizes (nos dois casos tão importante quanto terem se tornado mães), pode custar o equivalente a quatro semanas das despesas da casa, o que significa que elas têm de fazer grandes sacrifícios durante o tempo em que não estão nas raves. Igualmente, repetidas vezes, elas detalhavam a crescente intensidade de sua caída na fossa das drogas. Jean descreve isso como um 'inferno' e enfatiza que 'sabe' que terá sempre um 'repé' ruim, consciente de que isso será um 'inferno'.

Fica evidente em suas declarações a rigorosa administração de tempo, energia, dinheiro e sofrimento necessários à realização de seus momentos de 'liberdade'. Os seguintes trechos mostram como uma música 'errada'; uma droga 'errada'; um olhar ou palavra 'errados' de um companheiro de rave; as cãibras e uso de drogas, enfim, são possíveis ameaças à realização do estado desejado. Em virtude das constantes ameaças postas à obtenção do 'êxtase' (peak), as pessoa são levadas a trabalhar com paranóias e relações inter-pessoais de forma a arranjá-la por meio de estratégias 'administrativas'. Claramente, isso põe em xeque qualquer sugestão de que o 'êxtase' ou estado eufórico é um efeito direto ou de fácil entendimento, a exemplo de qualquer outro aspecto das práticas rave, como o uso de drogas. O que as declarações de Sally e Jean deixam claro é a grandeza dos esforços empreendidos para fazer a rave funcionar da maneira correta para elas. Em várias situações, as mulheres desabam ao terem de 'fazer força' para obter o efeito desejado das drogas - mais uma vez algo que põe em xeque os argumentos simplistas do 'determinismo farmacológico':

"Eu senti isso, que em muitos ecstasy você tem que 'fazer força' para a coisa funcionar. Tinha tomado uns três ecstasy, e não estava sentindo nada. Então eu pensei, puta que pariu, eu peguei dinheiro emprestado para vir até Londres, estou pensando e ainda tenho que 'fazer força'. Eu estava 'fazendo força', 'forçando a coisa'". (Jean)

Tomar as drogas 'certas', 'extasiar-se' com as pessoas 'certas', permanecer 'único' entre as multidões 'certas'... obviamente envolve grandes esforços. Jean e Sally deixam claro a volatilidade deste estado quando, pouco a pouco, vão descrevendo as forças que potencialmente perturbam sua procura. Por exemplo, Julie fala de uma noite 'ruim', quando seus sapatos de salto alto impediram-na de dançar, e ela sentiu que as pessoas a estavam olhando, o que por sua vez fez com que ela se sentisse consciente de si mesma pelo resto da noite. Para Jean, uma ameaça específica ao seu divertimento é encarnada por seu namorado, Peter. Vê-se, assim, que as experiências de pique de Jean são bastante estruturadas ao redor do que 'permite' e não 'permite' que ela faça:

"Imagine que eu estou conversando com um cara: eu sempre tenho medo de que Peter passe e me veja. Ele é tão ciumento! Tenho que ter cuidado. Então, o que eu costumo fazer é dançar até relaxar. Sempre tem gente que vem até mim dizendo 'Pete está te procurando'. E eu digo: 'tá, tá, certo, mas não diz prá ele que tu me viu' ... coisas assim. Aí, depois que relaxo, eu vou e o encontro. Eu não saía de mim por muito tempo. E isso porque meu namorado não deixava".

Enquanto mulheres como Sally e Jean criaram certas técnicas para reconhecer, manejar e suportar a paranóia, o depoimento de Andy tipifica o modo como os homens têm de lidar com sua notória ânsia em 'lidar' com as pressões presentes em uma rave. A habilidade de Andy em controlar e administrar se manifesta através de expressões de luta, como uma luta interior; um teste de caráter. Andy fala de sua experiência com ecstasy:

"Creio que ou você controla isso ou não...algumas pessoas não agüentam. A personalidade de algumas pessoas não consegue lidar - elas não controlam a viagem. Eu estive perto disso, mas consegui parar. É a paranóia no fundo da sua cabeça. Sempre te pega. Às vezes, você toma uma pílula e pensa: 'puta que pariu, será que eu vou ficar bem desta vez?' Você pode ter medo, mas, no final das contas, você tem que deixar de lado e dizer...'dane-se'."

A questão da paranóia é algo que, nas declarações de Jean e Sally, também está ligada a preocupações gerais em verem e serem vistas. Jean, por exemplo, diz que nada é tão bom para ela quanto perceber que está sendo olhada por um homem 'gostoso'. Ela dança onde estão os homens 'gostosos' e declara que ser olhada por um homem 'feio' simplesmente não lhe dá a mesma intensidade de prazer. Sally concorda. Perceber que está sendo olhada pelo tipo 'certo' de homem intensifica o 'êxtase' de Jean: 'É aquilo, uau, você está lá em cima'. Ela diz que os 'gostosões' fazem você 'viajar'. Não é surpreendente que uma das coisas que deixa as duas mulheres mais desconfortáveis é a possibilidade de serem vistas na luz 'errada'. Discutindo sobre as possibilidades de 'pegar' alguém em uma boate, Jean fala: 'Imagine que ainda está escuro e aí você sai. Você sabe, você está bem no escuro. Você não parece tão mal. Depois de algumas horas, porém... toda a oleosidade começa a aparecer'. Ela reitera isto em seguida: 'Eu estava bem até aquele ponto - até as pessoas começarem a olhar para mim... e eu me pergunto: perdi minha cabeça ? Eu odeio esta sensação.' Sally tem uma opinião semelhante: 'Eu nunca deixei os garotos me verem desse jeito. Não é justo.' A 'auto'-expressão completa que ambas declaram alcançar nas raves é posta em xeque pela importância dada ao permanecer sob uma certa luz. Como Sally coloca, 'você não é você mesma numa rave, ou é?'

Sugeri alguns modos em que o eu é trabalhado, administrado e mesmo produzido em um contexto rave. Isso problematiza qualquer leitura apressada que considere tais eus como 'livres'. Jean e Sally deixam clara a importância de reconhecer e 'conhecer' os diferentes obstáculos em potencial que se interpõem ao seu 'êxtase'. Descobrir a melhor maneira de combater tais distúrbios é parte essencial de práticas rave. O autoconhecimento pode ser visto como algo que se constitui aqui em termos de uma classificação simples, no qual a experiência é apreendida através de expressões como 'excitando ou viajando' (coming up), 'extasiar-se', 'manobrar', 'perder-se' e assim por diante. Fica claro também que tal conhecimento não se revela simplesmente ao entrar em uma festa. É algo lentamente negociado. Por exemplo, o 'conhecimento' dos efeitos que certas drogas provocam pode constituir, no máximo, se é que pode ser dito assim, uma descrição de tais efeitos. Isto é sugerido em várias ocasiões, quando as mulheres manifestam uma sensação de incerteza sobre precisamente o que estão sentindo. A incerteza é dissipada apenas uma vez que elas 'sabem' o que devem esperar e sentir. Por esta razão, os efeitos das drogas - que são muitas vezes interpretados como reações fisiológicas não mediadas a determinados compostos químicos - são obviamente sentidos de acordo com suas construções discursivas. No seguinte depoimento, Sally descreve como é não saber o que vai acontecer depois de tomar um comprimido de ecstasy. Isso a assusta, e claramente se opõe ao que ela quer: satisfação. Chegar ao seu 'êxtase', mais do que aceitar tal ambigüidade e falta de certeza, só é possível depois de evocar o que Jean lhe disse para esperar:

"Comecei a me sentir um pouco enjoada e disse... 'putz, preciso me controlar'. Mas eu falava para mim mesma o que Jean havia me dito anteriormente quando nós conversamos sobre essas coisas. Ela me contou como ficou atordoada da primeira vez em que ficou ligada com um ecstasy. Então eu ficava falando pra mim mesma isso. No final, eu saí dessa e apenas aproveitei. Eu passei por isso. Mas foi assustador."

Ainda que seja obviamente importante reconhecer a ligação entre a paranóia e os efeitos fisiológicos de drogas como o "speed", também é claro que tais efeitos são ao mesmo tempo resultado de um amplo conjunto material e discursivo, o que vale para as sensações e o entendimento da dança, relações interpessoais e assim por diante. Uma coisa que é clara é a seriedade com que Jean e Sally desenvolvem um determinado 'conhecimento' sobre o que esperar de modo a atingir o 'êxtase'. No trecho a seguir, Jean está se sentindo 'mal', até perceber que isso na verdade é 'bom'.

"Pensei estar saindo fora. Sim, foi por isso. Eu não ia a uma rave fazia dois anos. Então eu fui à 'World Dance', porque estava de aniversário. Eu estava lá há apenas uma hora e meia, só porque eu entrei primeiro, e a batida não era mais a mesma...Era mais acelerada, e ao invés de entrar na rave e pensar 'siiimm', eu pensei 'merda'. Eu comecei a ficar ligada por causa do ecstasy. Era um efeito completamente diferente do Speed, sabe ? Porém eu não esperava tudo isso...e não gostei, sabe ? Saí e estava... bem fora da minha cabeça. Pensei que estava me perdendo, saindo do controle. Mas agora eu sei que era apenas um ecstasy dos bons. Quero dizer, me assustou. Eu não conhecia a sensação e aquilo me assustou."

Portanto, os efeitos das drogas estão sujeitos a diferentes modos de conhecimento. Aqui, Jean descreve um caso em particular de como os efeitos das drogas são experimentados através da nossa capacidade de conhecê-los e classificá-los:

"Eu tomei o resto antes da gente entrar, como eu sempre havia feito, mas eu deveria saber que este era muito forte - mais forte que todos que já tomei antes, sabe. E eu saí fora. Veja, você pode sair fora com Speed. Quando eu entrei lá dentro, eu pensei, porém, você sabe, esse speed não está fazendo efeito. Porque eu não tinha aquela confiança que o speed dá. Eu pensei, não está funcionando, o que é isso? Foi então que eu e a Mel tomamos um ecstasy cada uma. Tomei meu ecstasy pensando não estar viajando. Mas eu estava viajando com oito comprimidos de speed e um de ecstasy. Mel estava curtindo uma viagem muito boa porque ela tinha tomado só quatro comprimidos de Speed. Aí eu comecei a dizer 'deixa eu ficar com a sua metade do ecstasy. Me dá metade do seu ecstasy', esse tipo de coisa. Aí eu tomei a metade também. Foi então que percebi, você sabe, não era que eu não estivesse viajando. Aquilo é muito forte - e eu estava muito fora de mim".

A experiência é fortemente classificada levando em consideração situações como a 'viagem', o 'repé' e assim por diante. Estas mulheres também identificaram qual tipo de viagem e em qual estágio em uma viagem a outra está. Elas também identificaram quais tipos específicos de música, drogas, multidões, lugares, e assim por diante, 'funcionam' para elas. Consequentemente, essas mulheres criaram um conjunto de regras sobre essas questões. Isso inclui aquelas relacionadas ao manejo e ao cálculo dos riscos com o consumo de drogas:

JEAN: "Nunca tome um ecstasy inteiro. Meu primeiro ecstasy foi um inteiro e foi um dos pequenos (dove). Então eu diria nunca tome um ecstasy inteiro."

SALLY: "Não..."

JEAN: "Eu tomaria um inteiro em quatro pedaços, creio."

Drogas, como 'estágios' de experimentação, tipos de pessoa, música e cidades, aparecem rigidamente classificados. Distinções são feitas entre e-ravers e speed-ravers; homens brancos e negros; 'gostosões' e 'feiosos'; ravers alegres e pesadões'; Dover (cidade do speed) e Londres (cidade do ecstasy).

Um aspecto mais profundo do autogerenciamento dessas mulheres em relação ao uso de drogas torna-se claro nas suas descrições de como seu tempo (suas semanas) é organizado de modo a disponibilizar um período apropriado ao seu 'repé'. O gerenciamento do 'repé' é mais claramente manifesto nas suas negociações entre ir nas raves e cuidar dos filhos. Ambas as entrevistadas organizam o cuidado com as crianças prevendo e ressaltando a importância de não ter seus filhos por perto durante o 'repé'.

JEAN: "Certamente, eu jamais ficaria drogada perto deles: isso não! Para começar, eu não poderia ter meu filho perto num 'repé'. Eu não o deixaria por perto porque ele pergunta... 'mãe posso ter isso, posso ter aquilo', e eu perderia a paciência. Eu não poderia deixar isso ocorrer."

SALLY: "É, isso não é justo com eles."

JEAN: "Não, porque eles são muito jovens agora... Eu não gostaria que eles me vissem dessa maneira."

Todas essas questões indicam que, para elas, mais do que dispor de tempo e espaço necessariamente mais livres e menos controlados, as práticas rave - pelo menos em parte - referem-se a controle e gerenciamento. Para reiterar: colocar essas questões não é negar os prazeres que elas ganham em raves. Na verdade, a quantidade de esforço dessas mulheres, em termos de tempo e dinheiro, evidencia o quão importante a rave é para elas.

Saber - possuir algum conhecimento prévio - para fazer a rave 'funcionar' desafia qualquer declaração simplista de que a rave é, de alguma forma, desconectada de seu contexto cultural mais amplo; que a festa é independente, autônoma e se encerra em si mesma. Exemplo: Jean e Sally entendem a 'postura dos negros' como uma força perturbadora, deixando muito claro como o 'mundo' rave mantém e reforça as categorias do 'mundo' cultural mais amplo. Assim ocorre também quando elas expressam seus medos de serem rotuladas de 'vagabundas', no caso de falarem demais com um homem em particular.

Conhecimento é, portanto, algo central nos depoimentos de Jean e Sally. Os medos dessas mulheres são mostrados como muito ligados à impressão de não 'saberem'; de não estarem familiarizadas com o que está acontecendo:

"Tudo foi apavorante, porque foi minha primeira vez em uma rave e eu estava com o Nick, que já estivera numa. A turma sabia o que esperar. Eu não suportava nem a entrada". (Jean)

"Como eu não fui a raves por dois anos, entrei na boate e a música tinha realmente "levantado" rápido demais, eu não sabia o que fazer. Minha primeira rave em dois anos eu não aproveitei." (Jean)

Discutindo a 'atitude' inadequada de companheiros de rave, Jean fala sobre Sally (que começou a ir em raves mais tarde):

"Vendo isso tudo agora e de uma só vez, a primeira, ela não 'sabia das coisas'. Ela não sacava a coisa toda, porque não sabia o que esperar, mas eu tentava dizer o que acontecia."

Liberdade eufórica revisada

Neste [texto], tentei demonstrar como o que é freqüentemente visto como um momento de 'liberdade' e 'auto-expressão' é muito mais complexo do que aquilo que normalmente é percebido por comentadores acadêmicos a respeito das raves. Indiquei como, para Jean e Sally, seu momento de 'liberdade' é na verdade cuidadosamente gerenciado, regulado e monitorado. Longe de ser sobre 'desprendimento' e 'dissolução' do eu, este momento é claramente sobre a produção de um eu extasiado específico. Remete a um trabalho rigoroso com o eu, mais do que a um relaxamento da autoconsciência. Para estas mulheres, seu momento de auto-expressão legítima não consiste em mostrar uma essência desnuda (como o termo auto-expressão sugere), mas em projetar uma imagem bastante específica sobre si mesmas. Certamente, ambas concordam que nas raves você não vê as pessoas como elas 'realmente' são. Por um lado, então, o 'êxtase' ou estado 'limite' é experienciado como um momento em que cada um simplesmente 'deixa-se levar' e como meio de voltar-se a uma espécie de estado mais 'natural'. Por outro lado, é visto como um momento de não ser indivíduo; um momento onde o indivíduo é 'escondido' por drogas, luz negra e pela 'irrealidade' geral do evento.

Também apresentei as classificações rígidas que marcam e informam a produção dos estados subjetivos pós-procura de Jean e Sally e que está na base da experiência destas mulheres. Reiterando, não é minha intenção diminuir ou menosprezar os prazeres das práticas de rave: a sensação real de esvaziamento íntimo parece compensar a intensidade dos prazeres muitas vezes incomparáveis que elas podem produzir, ou a importância central que podem ter na vida de alguém. Pelo contrário, sugeriria que as interpretações destas experiências e prazeres sejam desalojadas da linguagem do 'natural' e do essencial que freqüentemente emolduram-nas e que sejam realocadas enquanto manifestações específicas e pertencentes ao contexto tecnológico/químico/físico mais amplo que constitui a rave.

Tradução de Bruno Galera e Carlos Bencke

* "Peak practices: the production and regulation of ecstatic bodies" In John Wood (org.): The virtual embodied. Londres: Routledge, 1998, p. 168-177. Maria Pini é PhD pelo Goldsmith College (Universidade de Londres).

NOTAS

1. Pini, M., 'Women and the early British Rave scene', in McRobbie, A.(ed.), Back to Reality? Social Experience and Cultural Studies, Manchester, Manchester University Press, 1997.

2. O extremo oposto deste argumento se encontra mais nas antigas coberturas 'apavoradas' da imprensa sobre o rave e que enfatizavam o poder desta em idiotizar e hipnotizar a juventude.

3. Rietveld, H., 'Living in a Dream', in Redhead, S., op. cit.

4. Sutcliffe, R., 'Rave and Techno-Shamanism', palestra dada no Goldsmiths College, Universidade de Londres, novembro de 1996.

5. Ver McRobbie, A., 'Shut up and dance: Changing modes of femininity', in Postmodernism and Popular Culture, Routledge, Londres, 1994.

6. Hesmondhalgh, D., 'The cultura politics of dance music', in Soundings (5), primavera de 1997.

7. Bey, H., Z.A.T. Zona Autônoma Temporária: Anarquismo Ontológico, Terrorismo Poético, Brooklyn, NY, Autonomedia, [1985], 1991 [Trad. bras.: São Paulo, Conrad, 2001].

8. Sutcliffe, R., 'Rave and Techno-Shamanism', palestra dada no Goldsmiths College, Universidade de Londres, novembro de 1996.

9. Palestra de Hakkim Bey (Peter Lambourn Wilson) para estudantes do MA Design Futures e do MA Creative Curating na Goldsmiths College, Universidade de Londres, 24 de fevereiro de 1997.

10. Steve Redhead, op. cit.

11. Rietveld, H., in Redhead, S., op. cit.

12. Jordan, T., 'Collective bodies: raving and the politics of Gilles Deleuze and Felix Guattari', in Body and Society (1), março de 1995.

13. Thornton, S., Club Cultures: Music, Media and Subcultural Capital, Cambridge, Polity Press, 1995, p. 21.

14. Haraway, D., Simians, Cyborgs and Women, Londres, Free Association Books, 1991.

15. Redhead S., op. cit.

16. Rietveld, H., in Redhead, S., op. cit.

17. Meu próprio trabalho etnográfico mostra, por exemplo, como, em diversos casos, a obtenção de um estado de 'liberdade' por parte de ravers jovens e brancos depende da ausência do que eles chamam de 'atitude negra'. Tese de PhD, Goldsmiths College, 1997.

18. Um termo comumente usado na discussão do trabalho de Bakhtin.

19. Reynolds, Simon, Blissed Out: The raptures of rock, Londres, Serpent's Tail, 1990.

20. Pini, M., op. cit.

21. Foucault, M., 'Technologies of the Self', in Martin, L.H., Gutman, H., and Hutton, R.H. (eds), Technologies of the Self. Seminário com Michel Foucault, Londres, Tavistock, 1988.

22. Ver Pini, M., 'Other traces: a cultural study of clubbing and new modes of femininity', tese de PhD, Goldsmiths College, 1997.



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