A Internet e as Novas Comunidades

Gordon Graham


A Internet é apenas uma espécie de meio de dissolução da sociedade como nós a conhecemos, ou porta traços de formas sociais totalmente novas? Aqueles que adotam a perspectiva pessimista estão sujeitos a uma objeção importante: por que responsabilizar a internet pela fragmentação social? Embora intensifique uma anarquia moral, a culpa não é dela, mas da sociedade e cultura de onde ela surgiu. Embora não seja absurdo dizer que a internet enseje melhores oportunidades ao individualismo radical, o individualismo, por si só, é produto de mudanças sociais muito mais profundas e antigas que qualquer coisa que a internet tenha logrado realizar: [é isso que defenderei neste trabalho].


Indivíduos, comunidades e grupos de interesse

Replicando assim aos neo-ludittas, tocamos num assunto que tem sido tema principal da filosofia política e sociológica por várias décadas. Os sociólogos têm recolhido evidências do declínio e desintegração das organizações sociais e do amplo crescimento da alienação política, principalmente nos Estados Unidos (onde, afinal, a Internet começou e é mais utilizada). As evidências são muito grandes para serem mostradas, e ainda menos para ser resenhado, mas nós talvez possamos apontar proveitosamente para algumas de suas conclusões mais importantes. Uma delas é o declínio da unidade familiar tradicional. O advento de um controle de natalidade efetivo, o relativamente dramático aumento dos divórcios, o conseqüente aumento das famílias "de um pai só" e dos solteiros donos-de-casa são mudanças inter-relacionadas, que têm intensificado umas às outras ao ponto de, em algumas cidades americanas, a família tradicional (dois pais administrando a única casa de seus filhos) seja a pequena minoria. Segundo, envolvendo essa mudança, houve uma grande queda no número de pessoas engajadas em associações voluntárias: uma queda entre 25% e 50% desde a metade do século. Terceiro, essa tendência é exacerbada por altos graus de educação e prosperidade, que têm levado a uma maior mobilidade de trabalho e ao rompimento da família e de outros laços sociais por causa da dispersão geográfica. Tanto no nascimento quanto na fase adulta, na maturação e em esperanças, os indivíduos estão cada vez mais livres dos laços familiares e comuns nos quais antes estavam presos.

Esse fato válido para os Estados Unidos tem sido encontrado também na Europa Ocidental e, como o resto do mundo no século XX tem seguido os Estados Unidos em tantas coisas, podemos esperar que, mesmo onde a fragmentação ainda é pequena, ela será maior no futuro. A substituição dos grupos sociais por agentes individuais tem um lado mais alarmante que o do mero colapso das organizações voluntárias. Os estudiosos do enorme aumento da incidência de assassinatos múltiplos tem pouco a pouco se voltado contra as explicações psicológicas, passando a concordar com as explicações mais sociológicas. Como coloca Elliot Leyton: "se os assassinos são apenas insanos, por que é tão raro que eles demonstrem sintomas identificáveis clinicamente... [e] que os psiquiatras concordam que são característicos de doença mental". Parece mais provável, embora difícil de mostrar, que nesse tipo de fenômeno estejamos vendo evidências de uma profunda mudança social, uma troca radical do foco da vida cotidiana da comunidade para indivíduo, com o conseqüente aumento de pessoas solitárias radicalmente alienadas - uma teoria que vários estudos a fundo de casos particulares têm oferecido algo em que apoiar-se.

Qual é a causa fundamental da fragmentação? Uma explicação relativamente banal é a invenção e a rápida difusão da televisão, pelo fato de ter se tornado o passatempo mais comum da maioria das pessoas nos países desenvolvidos de hoje - isto é, uma atividade privada e não-social (alguns a chamariam mesmo de anti-social). Embora dificilmente possamos nos apoiar nesse argumento como explicação primária, parece plausível afirmar que a popularidade da televisão é tanto o sintoma quanto a causa do declínio das atividades comunitárias mais cotidianas. Além disso, se isso é tudo o que existe para ser dito, nós não teríamos evidenciado mais que uma mudança nos gostos e nas atividades de lazer. De fato, existe um perigo bem mais visível nas tendências sociais em curso. Robert D. Puttnam observou, por exemplo, que enquanto o número total de jogadores de boliche nos Estados Unidos cresceu 10% no período entre 1980 e 1993, a Liga de Boliche diminuiu em 40%. Nisso ele notou um "estranho desaparecimento do capital social nos Estados Unidos", como subintitulou seu ensaio sobre este tema. Qualquer que seja a veracidade dessa afirmação, o fato em si, porém, concorda com a explicação mais simples e superficial: tratar-se-ía de uma mudança de moda.

Apesar disso, parece que há mais do que simples modismo em ação. Em um estudo bastante confiável de Robert Bellah e outros, "Habits of the Heart", o fenômeno da desintegração comunitária (nos Estados Unidos) foi, de certo modo, confirmada quando Bellah e seus colaboradores verificaram um fortes declínio nas redes sociais - igrejas, clubes, empresas, etc. - que antigamente permitiam que seus participantes trabalhassem juntos com objetivos compartilhados. Partindo daí, eles sugeriram a hipótese de que há uma conexão entre esse declínio e a extinção de atitudes morais e religiosas. Na minha terminologia, eles postularam que há hoje um crescimento subterrâneo da anarquia moral que, pelo enfraquecendo o significado da participação comunitária, a desgastou. Se a evidência empírica disponível pode sustentar tal hipótese é uma questão muito difícil, em parte porque levanta a questão ainda mais ampla - e de muito maior espectro temporal - a respeito da secularização da sociedade: dessa mudança radical das concepções de vida religiosas para as não-religiosas, alem da de seu valor, que os teóricos sociais têm afirmado detectarem pelo menos desde a época de Friedrich Engels, por volta de 1840. Contudo, o simples fato de que tal sustentação pode, assim, ser desenvolvida com alguma credibilidade conecta as investigações da sociologia contemporânea com um dos temas dominantes da recente filosofia política e, a partir disso, com os tópicos deste livro: trata-se do debate entre liberalismo e comunitarismo.

O debate entre o liberalismo e o comunitarismo diz respeito não a informações empíricas sobre modelos de mudança social, mas às idéias fundamentalmente filosóficas que permeiam certas concepções rivais da vida social. O debate não se resume em uma única questão, mas em uma rede interconectada delas. Algumas (mas não todos) delas têm a ver com a relação entre indivíduo e comunidade. Embora nesse debate o termo "comunidade" tenha feito a devida aparição, a maioria das versões do que é conhecido como "comunitarismo", de fato, não faz uso do termo "comunidade". É verdade que o liberalismo, na maioria de suas variações, pode ser descrito como doutrina social que, de fato, coloca o indivíduo em foco. É é verdade, também, que existe um importante confronto filosófico possível de ser traçado entre indivíduo e comunidade. Apesar disso, o comunitarismo não é bem caracterizado quando o descrevemos apenas como a doutrina que dá um destaque central para a comunidade. De fato, existe apoio para a polêmica afirmação de que o comunitarismo não é uma doutrina social positiva, mas apenas a negação do individualismo liberal. Além disso, o liberalismo difere em vários pontos, em meu ver, de acordo com diferentes visões do que é o comunitarismo. Existem ainda boas razões para postularar que o ponto central entre essas duas posições filosóficas, ao menos do jeito que elas têm sido elaboradas na filosofia política moderna, não é a prioridade conferida à comunidade e ou ao indivíduo, mas a relativa prioridade conferida ao que é "certo" e ao que é o "bem" - ou seja, aos vários princípios de organização social e aos valores da vida humana.

Tratam-se de problemas para os quais retornaremos em breve, mas antes vale a pena observarmos que, fora da filosofia - no mundo das idéias e dos negócios - a palavra "comunidade" se tornou um lugar-comum, uma palavra que agora é usada, ou abusada, de tal modo que tende perder seu sentido. Como resultado, ocorre que ela tem perdido muita da precisão que possuía, passando a conservar do seu significado somente um sonora conotação positiva. Parece possível agora, se o uso comum servir de indicação, pertencer de uma só vez à comunidade local, à comunidade gay, à comunidade científica, dos negócios, rural ou até mesmo internacional. Parece que nós não podemos mais deixar de ser membros de uma comunidade ou outra; mas se é assim, isso somente mostra que a filiação a uma comunidade nada mais significa efetivamente.

Qual é a conexão existente entre essas utilizações vagas do termo no vocabulário popular, e as questões filosóficas que o envolvem na linguagem dos comunitaristas ? E que conexão existe entre o debate filosófico, as descobertas dos sociólogos e as preocupações dos fazedores de políticas sociais? Só podemos responder a essas questões se, primeiro, clarearmos o campo nebuloso da terminologia. Isso requer que estabeleçamos uma definição mais precisa para a idéia de comunidade, não descobrindo qual é a sua "definição real", mas conferindo-lhe um sentido capaz de resultar em algo útil e intelectualmente substancioso.

Podemos começar essa tarefa reparando um contexto em que é limitado, mas relativamente preciso o uso do termo. Isso aparece na expressão "comunidade religiosa". Para aqueles que estão usando a descrição de maneira cuidadosa, a comunidade religiosa não é apenas uma organização religiosa - não é uma congregação, um confessionário ou uma paróquia, por exemplo. Trata-se de um corpo organizado de acordo com uma série de regras altamente específicas de convivência e de atividades sociais e no qual os indivíduos são aceitos depois de uma iniciação. Os exemplos mais evidentes disso encontram-se nos conventos e monastérios, e ainda que haja outras comunidades religiosas, são esses que usarei de exemplo. O que justamente destaca um convento ou monastério como comunidade é algo a ser considerado mais adiante, mas deve estar claro que, embora nós os definamos assim, podemos contrastá-los com a maneira corrente de definir as comunidades: nem a comunidade gay, nem a dos negócios, muito menos a internacional, é ou poderia ser, nesse quadro, uma comunidade.

Nas primeiras duas instâncias (ao meu ver a terceira é muito grandiosa para fazer sentido) o que está sendo concebido como uma unidade é realmente um grupo de interesses - um conjunto de indivíduos que estão "amarrados" não por algum princípio constitucional, mas pelo fato primordial de terem interesses em comum. É o que Bellah e seus co-autores chamam de "enclave", um termo que eles opõem à comunidade, e que eu usarei aqui. Devemos notar que a expressão "grupo de interesse" é ambígua: ele pode significar um grupo de indivíduos que estão interessados nas mesmas coisas, ou um grupo de indivíduos cujos interesses materiais, econômicos ou outros coincidam. No primeiro caso, colecionadores de selo e de trens em miniatura são grupos de interesse; no segundo, o são fazendeiros e corretores da bolsa de valores.

Esses sentidos da expressão "grupos de interesse" não são excludentes, é claro. Pessoas que apreciam certas coisas podem, também, achar que essas são de seu interesse - seja para acarretar benefício ou prejuízo. Onde isso ocorre temos o que, seguindo Bellah, chamarei de "enclave". A vantagem desse termo semi-técnico é que ele nos dá um nome para a contiguidade dos significados conceitualmente distintos de interesses, ao mesmo tempo que nos fornece um contraste com a terceira concepção: a de comunidade propriamente dita. Os três conceitos - grupo de interesse, enclave e comunidade - são todos distinguíveis. Lembrar disso é importante, porque no uso comum da expressão "comunidade" freqüentemente se originam confusões. Pessoalmente, marcaria a diferença entre os dois conceitos de interesse que, juntos, formam um enclave fazendo uma distinção entre "um grupo de interesse subjetivo" e "um grupo de interesse objetivo". Um grupo de interesse subjetivo é um grupo em que os membros parecem estar interessados nas mesmas coisas. Um grupo de interesse objetivo é um em que os integrantes são, de fato, vantajosamente ou adversamente afetados pelas mesmas coisas.

Destarte, um enclave é um conjunto de pessoas formando um grupo de interesses nessas duas definições. Ou seja, diríamos, definidos por sentimentos por circunstâncias. Qual é a diferença entre um enclave e uma comunidade ? Existe pelo menos um aspecto que podemos isolar que falta ao enclave, mas está presente na comunidade, se tomarmos a idéia de comunidade religiosa como nosso referencial. Um convento, por exemplo, é composto de pessoas interessadas nas mesmas coisas - a devoção de Deus e o cuidado aos enfermos, diríamos. Também é verdade que, objetivamente, as mesmas coisas tendem a afetá-los - política de saúde do governo ou a lei sobre liberdade de culto, por exemplo. Mas mesmo a combinação de ambos os interesses, subjetivos e objetivos, é insuficiente para constituir os membros da comunidade, pois é claro que uma enfermeira religiosamente inclinada num hospital secular também seria uma membro de ambos os grupos, mas não, ex hypothesi, uma membro da comunidade em questão.

Creio que esse é o ingrediente que está faltando nos enclaves. Membros da comunidade propriamente dita estão sujeitos a uma Lei, e esta determina quais são os seus interesses objetivos e quais deveriam ser os seus interesses subjetivos. Ambas determinações são logradas, em parte, pelo conteúdo da própria lei e, em outra parte, por um ofício cuja autoridade deriva da autoridade da lei, um cargo de reconhecida superioridade - o Abade no monastério e a Madre Superior no convento. Para simplificar a terminologia, diria apenas que os membros de tal comunidade são essencialmente e não somente eventualmente inter-relacionados, ou, para dizer a mesma coisa em outra linguagem, que suas identidades comuns como comunidade são definidas pela sua obediência a uma autoridade mutualmente reconhecida.

Suponha agora que nós tenhamos aceitado essas três características - interesse objetivo, interesse subjetivo e autoridade definidora, juntas, formam uma comunidade propriamente dita. O que mais, além de uma comunidade religiosa, pode ser descrito como uma comunidade? É evidente que a maioria das coisas que são chamadas de comunidades na linguagem informal de hoje inclui uma ou mais de três características. Por exemplo, a comunidade gay é um grupo de interesse subjetivo, mas não apresenta autoridade definida. Além disso, interessante é vermos que a "comunidade" gay também não é um grupo de interesse objetivo, porque seus membros não são todos beneficiários ou vítimas das mesmas coisas. Em contraste, a comunidade dos negócios é um grupo de interesse objetivo. Possivelmente, embora não necessariamente, é também uma comunidade subjetiva - isso depende de como caracterizamos "interesse subjetivo". Aqueles que fabricam armas e os que fabricam manteiga estão interessados nas mesmas coisas? Seja o que for que digamos sobre isso, é claro que, embora submisso (como qualquer outra coisa) às leis em geral, o mundo do comércio e da indústria é sujeito a uma autoridade não-definidora: qualquer um que administre um negócio, para qualquer fim e por qualquer meio, se interessa por negócios.

Exemplificaríamos melhor uma comunidade propriamente dita além das paredes do monastério referindo-nos à comunidade política, sempre que ela se aplique a uma jurisdição legal única e identificável e a um estado soberano. Os cidadãos de um estado político formam um grupo de interesse, e é essa a razão por que nós podemos dizer que existe um "interesse nacional". Além do mais, podemos dizer que eles estão sujeitos a uma autoridade definidora - a lei. Isto é, existem leis acessíveis e procedimentos pelos quais o membro da comunidade política é reconhecido, admitido, expulso ou rejeitado. A polis não é um grupo de interesse subjetivo, embora, e interessantemente, coloque um limite ao papel exercido pela autoridade definidora. O Parlamento pode determinar quem é cidadão britânico, mas, por outro lado, uma comunidade religiosa não pode determinar em que verdade os britânicos devem se interessar, no que eles devem acreditar ou até mesmo se eles são avarentos ou generosos no seu trato com os outros. Embora possam legitimamente tomar medidas para evitar uma subversão, o Parlamento não pode nem exigir que os cidadãos acreditem na continuação da existência da Grã-Bretanha como entidade política. Aqueles que procuram a dissolução do estado pela sua total integração à União Européia, por exemplo, são autorizados a agirem para esse fim, sob a condição que façam isso legalmente.

Os melhores candidatos à condição de comunidade não-religiosa são, em meu ponto de vista, as sociedades tribais sem governos, como as sociedades do Leste da África, estudadas por Evans-Pritchard e outros antropólogos no início do século XX. De maneira importante, eles forneceram modelos reveladores para os anarquistas (no sentido político) que também são comunitaristas - o teórico político Michael Taylor, em seu livro Community, Anarchy and Liberty, seria um bom exemplo. Essas sociedades pequenas e nômades são reconhecidas pelas suas características altamente integradoras, e pelo grau de controle que exercem sobre os seus membros. Isso vale não apenas para a conduta, podemos assim dizer, mas também para o caráter. O interessante, porém, é que pertencer a uma sociedade como essas não é um problema de definição legal ou constitucional, porque nelas existe pouco espaço para a lei e quase nada equivalente a uma constituição. Os membros se baseiam na adoção e aceitação, geralmente por nascimento, das práticas, costumes e crenças da tribo.

Tanta integração pode ser atrativa para as mentes ocidentais, precisamente por causa do seu forte contraste com a nossa fragmentação e alienação. Porém, isso pode ser romanceado: existe um outro lado, que consiste na ausência quase total do que nós chamamos de individualismo. A integração assim existente pode ser vista como contrária às, liberdades comuns e relativamente simples. De fato, embora o exemplo dessas sociedades não seja o que primeiro venha à mente quando o termo é usado, elas podem ser descritas como "totalitárias". Os membros que as formam, como membros de uma comunidade religiosa, levam uma determinação essencial de interesses subjetivos e objetivos, e, assim, elas são muito desfavoráveis à existência de "almas livres".

Outro ponto crucial para se observar em relação à filiação a essas sociedades é que, (em contraste com as comunidades religiosas), ela não é voluntária: o indivíduo nasce nela. Encontra-se nesse ponto a justificativa para sua classificação como "totalitárias". A rejeição do totalitarismo político pode ser caracterizado, de forma muito simples, como a rejeição de qualquer suposição que a filiação à sociedade, por acidente de nascimento, possa determinar os interesses subjetivos dos que se encontram sujeitos a uma polis particular. Expor desse jeito tal objeção revela a conexão entre o anti-totalitarismo e a oposição a um partido, a uma causa moral ou a qualquer vinculação entre o Estado e a Igreja. Numa sociedade livre, as leis a que estamos justificadamente submetidos não podem exigir que tenhamos os hábitos ou convicções de um católico, de um marxista ou de um nazista. Isso também revela, enfim, a conexão entre a análise do conceito de comunidade e os debates contemporâneos sobre o individualismo liberal.


Liberalismo versus Comunitarismo

A literatura acerca do debate liberalismo x comunitarismo é vasta. Para aqueles não familiarizados com ela, uma introdução completa seria muito longa para ser contemplada no presente contexto. Por outro lado, para os familiarizados com o debate, mergulhar detalhadamente nessa literatura seria atravessar novamente terreno já bem explorado. Proponho, logo, simplesmente destacar dois temas centrais que vêm sendo discutidos nessa linha. Eles podem nos levar diretamente aos assuntos acerca da Internet.

Versões modernas da filosofia política liberal tendem a seguir o trabalho de John Rawls cujo livro, A Theory of Justice, praticamente estruturou toda a agenda de filosofia política por duas décadas. Aqui, no entanto, um aspecto diferente de seu trabalho é relevante. Rawls deseja formular os princípios que embasam uma sociedade livre e justa, ao menos como eles se exemplificam nas democracias ocidentais. Sua estratégia é imaginar um conjunto de condições (chamada de "posição original") sob as quais agentes possuidores de interesses próprios e racionais ainda estão livres de alianças e de interesses particulares ( no sentido de engajamento). A tarefa é determinar quais os princípios de organização social que os indivíduos nessa situação sustentariam. Na base dessa estratégia, ele elabora dois princípios: um governando a liberdade de ação, e outro governando a distribuição de bens e benefícios. Uma grande parte dos interesses do próprio Rawl fica na busca das implicações desses dois princípios, e muitos outros o seguiram nisso. Contudo, a maior parte da atenção crítica se centrou na estratégia argumentativa fundamental por trás dessas implicações. Em particular, os críticos agrupados e rotulados como "comunitaristas" reclamaram que os sujeitos em atitude de deliberação descritos na "posição original" são uma ficção incoerente, já que, despidos de todas as alianças sociais e de interesses pessoais, indivíduos desse tipo careceriam de base para fazer qualquer deliberação. Esqueça que você é uma mulher, um descendente de escravos, um judeu ou um católico, e você esquecerá quem você é. Indivíduos, essa crítica defende, são "radicalmente situados". Quer dizer, a nossa identidade como agentes existe em um mundo de idéias e valores que não são de nossa livre escolha: eles se originam do lugar onde nascemos.

Alasdair MacIntyre coloca o argumento com especial clareza em After Virtue, um livro não menos influente no presente debate do que o Theory of Justice, de Rawls.

"Do ponto de vista do individualismo, eu sou o que eu escolho ser. Eu posso sempre, se quiser, pôr em questão o que é tido como meras características sociais de minha existência... [Todavia] a história da minha vida é sempre apoiada na história das comunidades nas quais desenvolvi minha identidade. Eu nasço com um passado; e tentar me separar deste passado, em um modo individualista, é deformar minhas relações no presente. A posse de uma identidade histórica e de uma identidade social coincidem... O que eu sou, logo, é fundamentalmente o que eu herdo: um passado específico, que está presente em algum grau no meu presente. Faço parte de uma história e é isso, eu goste ou não, eu reconheça ou não, que sustenta uma tradição." (MacIntyre, 1981: 205-206)

O mundo no qual indivíduos estão radicalmente situados é a sociedade à qual eles inevitavelmente, e não por escolha própria, pertencem. [Como tal], essa sociedade deve ter os elementos de uma comunidade: ela não pode consistir em uma mera confluência dos interesses subjetivos que os indivíduos, qua indivíduos, possam ter, porque não há fundamento mais profundo no qual estes interesses poderiam ser enraizados. A sociedade deve, antes de tudo, prover as bases que constituem tais interesses. Interessamo-nos pelas coisas nas quais aprendemos a nos interessar, e a necessidade de tal aprendizado implica um mundo além de nossos próprios impulsos e desejos. Tomando um exemplo simples, mas claro: eu posso ter preferências individuais sobre bolos ou vinhos, mas eles devem limitar-se às coisas que descubro na padaria e no mercado de vinhos. Jamais posso recriar tais preferências, como tais, de novo. Tomando outro ainda mais significativo: tenho que decidir o que eu penso e o que devo dizer sobre isso ou aquilo, mas eu não tenho o poder para constituir a linguagem em que me expresso. A linguagem é uma linguagem natural, a minha linguagem natural: aprendendo-a, eu aprendo não apenas os meios de me expressar, mas padrões e critérios que determinam que coisas merecem ser ditas.

Se isso é verdade, se indivíduos são realmente "radicalmente situados" na sociedade, e não radicalmente autônomos, como o mecanismo da "posição original" parece exigir, então um segundo importante aspecto do projeto de Rawls deve também ser rejeitado. Trata-se do privilégio conferido ao "certo" sobre o "bem". Rawls acredita que uma sociedade livre e justa requer que os cidadãos, por um lado, distingam claramente as crenças e valores que julgam centrais em relação a seus conceitos de uma vida valiosa e que vale a pena viver, em uma mão (o bem) e, por outro, as regras e princípios de uma coordenação social que esperam que todos os membros de sua sociedade obedeçam (o certo). Tamb´me defende que os princípios de direito social devem ser priorizados em relação ao bem neste sentido: os princípios pelos quais uma sociedade livre é estruturada e regulada devem ser neutros a respeito de (possíveis) conceitos de bem que os cidadãos aceitam. Os princípios de uma sociedade justa não podem privilegiar nenhuma concepção de bem sobre qualquer outra.

Essa doutrina de neutralidade política (que já tocamos) é uma versão mais abstrata e ambiciosa de uma crença mais antiga na separação de igreja e estado; uma versão da demanda liberal tradicional que moralidade e lei não devem ser confundidas, mas mantidas separadas. Em todas as versões, mas especialmente na moderna mais abstrata, esse é um outro aspecto do liberalismo do qual críticos comunitaristas discordam. O fundamento para tanto é simplesmente uma aplicação adicional da objeção por eles feita ao individualismo radical e pode ser expressa de várias maneiras. Conceitos de bem embasam e moldam escolhas e preferências individuais. Visando recomendar ou requerer uma escolha ou uma preferência com respeito à organização e regulação social, precisamos apelar a certos valores subjacentes. Mas estes valores devem ser parte do conceito individual de bem, que, na realidade, é constituído pela comunidade à qual pertencem. No que mais tais valores podem se embasar? Se é assim, porém, a idéia de que os indivíduos na "posição original" poderiam ser divorciados de tais concepções é incoerente, e a exigência de que indivíduos em sociedades reais devem adotar uma atitude de neutralidade com respeito a eles é niilista. Quer dizer, a referida neutralidade não forneceria valores com fundamento independente da sociedade, mas sim desprovido de qualquer fundamento. Contrariamente, a crítica comunitarista pode ser vista basicamente como a partir do entendimento de que a autoridade da lei depende de uma moralidade compartilhada. Requerer que seja neutra com respeito a qualquer moralidade é apenas desprovê-la de qualquer autoridade. Em que base isso poderia ser recomendado?

Apresentei essa disputa de uma maneira que pode ser vista como favorável à crítica comunitarista. Ainda assim, existem correções a serem feitas em favor de Rawls. Algumas delas feitas por ele mesmo em trabalhos posteriores. Considerar isso, entretanto, necessitaria nos fazer entrar em detalhes que precisamos evitar se quisermos manter esta discussão em uma extensão controlável e não perder de vista a preocupação principal - as implicações do assunto para a Internet. Destacando esses dois assuntos - a relação do indivíduo com a comunidade e a relativa prioridade do certo ou do bem - desejamos apenas iluminar o tema deste texto.

[Noutro lugar] apresentei razões para pensar que a Internet tem um potencial para gerar anarquia moral e argumentei que devemos ter pouca esperança de poder contestar esta tendência através dos tradicionais conceitos de policiamento. Devemos, agora, retomam estes dois aspectos em termos que a filosofia política contemporânea tornou familiar, e relacionar ambos à análise da comunidade e às postulações feitas pelos sociólogos que nos ocuparam na primeira parte deste texto.

Suponhamos que é realmente fato que, para usar um conjunto de valores coerentes e estáveis capaz de permitir a formação de preferências e a feitura de escolhas, o indivíduo precisa estar radicalmente situado em alguma forma de comunidade constituinte. Deixem-nos ir adiante e admitir que a mera confluência de interesses, subjetivos e objetivos, é insuficiente para este propósito. O problema com a internet deve então ser que, permitindo apenas os últimos (a formação de um enclave), e não os primeiros (comunidades propriamente ditas), ela não pode fornecer uma base adequada para vida moral. Além disso, conforme os indivíduos são levados mais e mais a formar relações na internet, o mundo em que estão entrando é realmente o de uma anarquia moral. Este não é um mundo que um policiamento normalizador poderia conter, porque, para que tal policiamento fosse efetivo em um nível profundo, a regulação social deveria ser construída com base na premissa de que o direito pode ter prioridade sobre o bem, e isso, alegam os comunitaristas, é uma doutrina igualmente furada.

Convém ter claro que uma doutrina pode ser falsa ou mesmo incoerente e, mesmo assim, a crença que gera pode ter conseqüências sociais importantes. Pelo fato (se existe) de que a concepção de indivíduo deliberador autônomo, liberto das cargas das normas sociais e convenções comuns, é conceitualmente confusa, e de que a tentativa de assegurar a prioridade do direito sobre o bem não é melhor que perseguir uma quimera, não se segue que essas idéias não podem ser ou não são seguidas no mundo não-filosófico da política e da moralidade. Acontece apenas que elas não podem ser seguidas com total sucesso. De fato, o individualismo radical, como doutrina normativa, está vivo e bem. Os sociólogos descobriram que suas características surgiram em parte precisamente dessa busca inconseqüente. Embora seja verdadeiro (suponhamos) que as influencias sociais e econômicas externas trabalhem para minar as redes e instituições sociais, também é verdade que a ordem para seguir os próprios desejos e valores, para conseguir o que você quer da vida, é um ideal que tem informado uma grande parte do processo educacional do mundo Ocidental neste século, conforme ele emana, poderia ser argumentado, das idéias muito influentes dos educadores americanos John Dewey e G. Stanley Hall. Em resumo, a idéia moral de "auto-realização", mesmo se filosoficamente incoerente, deve mesmo assim ter sido um tipo de ácido social que corrói as bases das verdadeiras comunidades.

De qualquer forma, resta uma acusação contra o individualismo e contra sua expressão política, o liberalismo democrático. Deixo de perguntar aqui por qual seria sua fundamentação. Basta-nos afirmar que essa crítica ao individualismo liberal é uma linha de pensamento com recursos teóricos consideráveis e muitos expoentes proeminentes. Adotando-a como suporte para futuras análises, ela permite-nos retornar à nossa questão central: é verdade que o advento da internet exacerba esse ideal corrosivo do individualismo, se ele existir ? Ou a Internet tem características que podem melhorar e talvez mesmo remediá-lo?


O potencial das "comunidades" eletrônicas

Uma maneira de enfrentar o assunto é perguntando: a Internet engendra verdadeiras comunidades ? Para responder a essa pergunta, um passo essencial é, obviamente, descrever as coisas que podem nos prover exemplos plausíveis a respeito. Entretanto, para fazer isso, precisamos saber o que estamos procurando, e para saber o que estamos procurando, uma pequena encenação é necessária.

A reivindicação de que a internet é uma forma de anarquia moral, devemos lembrar, agora se tornou mais precisa: a acusação é que ela intensifica a natureza destrutiva do individualismo radical. Considerando isso verdade, isso implica, como vimos, que as sementes do individualismo se encontram no todo mais amplo da sociedade. Embora inadequado teoricamente, individualismo liberal é uma doutrina altamente influente, que moldou muitos aspectos da vida nas sociedades contemporâneas ocidentais, tanto que, pode-se dizer, tornou-se ele um ideal moral bastante disseminado. Se a Internet nos liberta das incumbências que nos impõe as sociedades às quais pertencemos, talvez ela também nos permita escapar das influências maléficas desse mesmo ideal. Transcender por meio dela os limites do individualismo seria redescobrir a possibilidade de comunidade. Nossa tarafa é descrever em linhas gerais os meios pelos quais isso poderia ser feito e perguntar se devemos esperar que qualquer um desses meios possa se realizar de maneira razoável a partir do que conhecemos da Internet.

Algumas pessoas não hesitam em chamar os grupos da Internet de "comunidades". De acordo com Stacy Horn, autora de Cyberville, um "salão eletrônico" como Echo - o grupo virtual que ela montou - pode ser descrito como uma "comunidade virtual" (o termo combinado "salão virtual" é o que ela prefere). Vale a pena especular porque ela diz isso e o que isso significa. Aplicando nossas análises anteriores do conceito de comunidade, podemos rapidamente concordar que o salão virtual contempla os dois primeiros critérios apresentados. Trata-se de um grupo de interesse subjetivo: isso quer dizer, pessoas que conversam e estão interessadas nas mesmas coisas. É também plausível considerá-lo como um grupo de interesses objetivos: aqueles que o freqüentam têm interesses materiais em comum - a invenção de softwares mais amigáveis, a provisão de mais linhas telefônicas para e da América, por exemplo, apesar de compartilharem essas idéias como surfistas de internet, e não como membros deste ou daquele grupo em particular. Mesmo pegos juntos, entretanto, esses elementos não são suficientes para fazer do salão eletrônico uma comunidade: pode ser um enclave, mas ainda precisa do que eu chamo de autoridade constitutiva para ser uma comunidade.

Conforme nos mostra o exemplo das pequenas comunidades nômades, essa não é necessáriamnete ser uma autoridade - uma pessoa ou um cargo identificáveis. Na Internet, basta para tanto que um grupo possua regras de admissão e exclusão aplicáveis por consenso e normas especiais de comportamento que determinem interesses compartilhados em ambos os sentidos, o objetivo e o subjetivo. Será que isso é verdadeiro para o grupo de Horn ? Mas isso não importa. Onde quer que haja, pode-se dizer que um grupo de Internet tem os elementos básicos de uma comunidade. Pertencemos voluntariamente a qualquer de tais grupos, mas não meramente em virtude de nossos interesses serem apenas subjetivos ou materiais. Pertencemos a eles, no caso, porque aceitamos e aderimos à normas e padrões (e nisso somos requisitados por outros), os quais definem e constituem a participação, mantendo-nos (porque aceitos como) membros apenas enquanto isso for verdade. Para falar claramente, mas numa linguagem que soa estranho, não há razão, a princípio, para que uma comunidade de internet não deva ter a mesma estrutura de ordem de freiras.

Pode parecer estranho esse paralelo, mas é mais claro do que pode parecer a princípio, no sentido de que é mais claro a respeito da questão geral do individualismo. O salão eletrônico não é exclusivamente um meio de interação feminino, mas seu caráter eletrônico, diz a criadora, tem importantes vantagens a esse respeito. O papel, o lugar e o status da mulher na sociedade contemporânea, mesmo nas orientais, muitas feministas argumentam, não são individuais per se. Mulheres não são vistas somente, ou mesmo primariamente, como pessoas, mas como mulheres. Deixo de lado aqui o exame desta postulação: foi feita por muitos escritores, de muitas disciplinas e experiências, mas sua importância para os presentes propósitos não implica sua veracidade. Suponhamos que o caso seja verdade. Nesta hipótese, a comunicação eletrônica tem uma vantagem para mulheres.

Online, as únicas diferenças de sexo são as expressas por palavras. Você não pode ver ninguém. Não há perfume, suor. Nada leve, nada duro. Somos despidos de tudo, menos das palavras. E se tiram tudo de nós, deixando apenas as palavras, onde ficam as diferenças entre homens e mulheres?(Horn, p. 81)

Aqueles que por aí se engajam em conversas, contando com que não usem nomes que claramente os identifiquem como mulheres, evitam as reações clichês que seus pensamentos e opiniões provocariam, se o fato de serem do sexo feminino fosse conhecido pelos receptores (masculinos ou femininos, acrescentemos). Ao contrário, as pessoas tendem a ser menos inibidas também. Em resumo, a comunicação eletrônica pode representar uma forma de interação indiferente ao gênero dos participantes, algo impossível no contato face a face. Um argumento similar pode ser feito a respeito da raça. A Internet é, ou pode ser, "cega à cor", e isso pode igualmente promover uma maior liberdade de expressão e trocas entre pessoas de diferentes origens étnicas.

A relativa "cegueira" da internet é um aspecto que pode ser aplicado com igual propósito à outros grupos - os deficientes físicos, os idosos, etc. Mesmo sendo natural pensar na comunicação eletrônica como mais limitada que o contato face a face, sua falha em mostrar certas características pode, na verdade, fazê-la mais livre e frutífera. Destarte, o que essas possibilidades mostram é que há outro lado no ataque de MacIntyre ao individualismo. "Eu nasço com um passado", ele diz, "e tentar me separar desse passada de um modo individualista é deformar minhas relações presentes". Sem dúvida isso é verdade em muitos casos, mas também é verdade que ser capaz de se separar do meu passado pode ocasionalmente me permitir sobrepor valores e influências que também deformam minhas relações: tudo depende do que é, no caso, o passado. Os afro-americanos ou as mulheres, por exemplo, podem ser mais beneficiados que prejudicados descartando os legados deixados a eles pelas suas comunidades de origem.

Esse argumento, combinado com a sugestão de que grupos de internet podem realizar as três condições requeridas para a existência de uma certa comunidade, fornece uma base para a idéia de que ela pode mesmo ensejar o surgimento de novas comunidades e, dependendo de como tais comunidades se desenvolverem na prática, podemos encontrar aqui maior suporte para a sugestão de que, longe de nos iniciar numa era de total anarquia moral, a internet promete prover os meios pelos quais a anarquia moral de um mundo já negativamente afetado por um individualismo radical pode ser superado. Contudo, devemos relativizar essa especulação lembrando que, embora elimine fatores de distorção, a internet inevitavelmente introduz outros até maiores. Queremos saber não se comunidades de certo tipo são possíveis na Internet, mas se estas podem substituir adequadamente (algumas) daquelas com as quais já estamos familiarizados. Uma relação que se circunscreve à comunicação eletrônica é capaz de criar os tipos de relação entre seres humanos que comunidades comuns são capazes? A resposta a essa questão se endereça ao tipo de troca que é possível neste meio de comunicação.

Stacy Horns fala dos membros de seu salão virtual em termos de compartilhamento de pensamentos e sentimentos. Ocorre, porém, que eles o fazem, em sentido genérico, apenas se pensamentos e sentimentos forem totalmente comunicáveis por meio de palavras, porque é por meio das palavras que as relações da internet são conduzidas. No entanto, parece evidente que não é assim. Nosso repertório expressivo contém gestos, caretas, olhares, e assim vai. Comunicamos por esses meios não menos do que pelas palavras, e geralmente damos a isso muita importância. Além disso, a princípio, o que nós "dizemos" dessa maneira não pode ser posto em palavras. Meu ódio, admiração ou desgosto podem ser comunicados por um olhar ou um gesto, e é genuinamente comunicação. Através dessa forma, você percebe, e não meramente adivinha, meu estado de espírito e sentimentos. Contudo não se trata de uma forma de comunicação que admita realização lingüística. É claro, às vezes é possível encontrar palavras que convêm exatamente com o que estou pensando, e os mais articulados dentre nós são capazes de fazer isso quase prontamente. Felizmente, porém, falta de articulação não é um obstáculo absoluto para a comunicação. Se fosse, a expressão humana seria muito mais limitada do que é; e é essa forma desarticulada (ou melhor, essas formas desarticuladas) que, de fato, constróem grande parte de nossa comunicação. O sistema de email e dispositivos similares nos despem delas, tanto quanto nos libertam de impressões distorcidas. A verdade é que correio eletrônico não nos permite fazer trocas verbais: [...] de alguma maneira ele quebrou as diferenças tradicionais existentes entre escrita e fala, mas uma delas sempre permanecerá - a habilidade em dar às mesmas palavras diferentes significados é algo que reside na força comunicativa do tom e nas inflexões da voz.

Horn fala como se inteligências sem corpo, por serem menos restritas ou ocupadas realmente, são, em certo sentido, mais puras e, por isso, mais próximas da pessoa "real". Tal afirmativa representa o ápice do individualismo radical. Presente nela, eu penso, está a velha idéia cartesiana de que pessoas são essencialmente mentes e de que seus corpos são meros acessórios. Não é por acaso que grupos de internet são, às vezes, mencionados como "comunidades mentais", geralmente para chamar atenção para esse cunho mais livre e maior de sua forma de intercâmbio. De fato, porém, acho que o reverso desse tipo de cartesianismo é verdade: mentes puras são pessoas pobres. Se isso é verdade, então, comunicação exclusivamente eletrônica, trocas lingüísticas entre inteligências sem corpo, é uma forma de comunicação entre pessoas seriamente limitada. Pode fazer, na verdade faz, certas relações ocorrerem e facilita a confluência de interesses compartilhados, mas o faz de uma forma restrita, e a restrição significa que uma comunidade eletrônica de pensamentos e interesses, mesmo satisfazendo os três critérios que estipulei, é uma forma de comunidade de segundo nível.


MUDS, MOOS e GeoCities

Poderia ser dito que posicionei mal o argumento contra as possibilidades da Internet, identificando comunicação eletrônica com comunicação lingüística e ignorando o aspecto visual. Assim eu teria me comprometido com uma discussão de telecomunicações e baseado minhas conclusões nos casos do rádio e do telefone, excluindo a televisão, que, em telecomunicações, sabemos ser a predominante. A diferença entre o sistema de email e a internet, pode-se argumentar, não é menor que a diferença entre rádio e televisão: nos dois casos, o primeiro é restrito ao aspecto lingüístico enquanto o último não. Qual diferença essa importante observação faz para a discussão de nova comunidades?

Para discutir esta questão é melhor não permitir que nos voltemos demais para a questão das limitações técnicas. No presente, trocas audiovisuais via internet não são possíveis a não ser para poucos, e há razões para achar que a World Wide Web, apesar de seu título, não permitirá tal troca entre todos os que queiram assim usá-la. Mesmo assim, aqui, como em muitos pontos anteriores do argumento, é necessário lembrar-se que a internet é uma das tecnologias de mais rápido desenvolvimento que já se conheceu, e que ela está num estágio inicial de sua evolução. Basear qualquer objeção muito fortemente em especulações negativas quanto a seu desenvolvimento é cair em fundamentos argumentativos frágeis. Abordagem melhor é permitir o máximo de especulações positivas e ver, então, o que pode ser afirmado. Em qualquer caso, os sujeitos que lidam com internet ainda não precisam se aprofundar imediatamente no mundo desta especulação tecnológica. Já existem tecnologias multimídia que vão muito além do email e fornecem material para maiores reflexões sobre comunidades na Internet.

Os grupos de múltiplos usuários não são mais novidade. Os MUDS ("multi-user directional systems" ou "multi-user dungeons") e os MOOS ("multi object oriented systems") são conhecidos na literatura. Pertencer a um grupo de multi-usuários significa mais que correspondência por meios eletrônicos: engloba a conversação entre um número indefinido de pessoas despreocupadas com fuso-horário e distância geográfica, ambientes sociais ou limites políticos. Tais conversas podem ser estruturadas. No salão eletrônico de Stacy Horn, os participantes dividem-se em grupos conforme interesses - os interessados em livros, ou esportes, etc. Isso é relativamente simples, mas já possui os elementos da "arquitetura" muito mais ambiciosa e complexa do GeoCities.

O GeoCities é o nome de uma das primeiras companhias de software (agora há muitas outras) a dar a usuários individuais meios muito baratos de criarem suas próprias páginas na rede, dentro de uma plataforma de proporções internacionais. O aumento de sua popularidade é fenomenal. Em outubro de 1995 o GeoCities tinha 10.000 páginas; em agosto de 1996 100.000 e chegou a 1.000.000 em outubro de 1997. Em março de 1998 atendia a mais de 625.000.000 visitas às páginas por mês (um dado chocante, se for pensado). Dado que são mensurados apenas um sexto dos principais sites da Internet, esses dados dão idéia do colossal tamanho e crescimento do ciberespaço como um todo. Contudo, aqui, são as características distintas do GeoCities e sistemas multi-usuários similares o que nos interessa, particularmente seu desenvolvimento como "arquitetura". A palavra arquitetura usada nesse contexto pode ser uma metáfora, mas se é, é bastante abrangente. Os que entram e participam em uma GeoCity eletrônica encontram lugar em "casas", dentro de "bairros", que se localizam dentro de "cidades". Estas cidades têm a intenção de agrupar os que pensam de maneira parecida. Elas têm nomes que indicam os interesses dos grupos que as povoam. Atenas, por exemplo, é povoada por pessoas interessadas em educação, literatura e filosofia; Paris, por romance, poesia e artes; Hollywood, por filmes e televisão; CollegePark, é para universitários e estudantes; e assim vai. Os grupos que se formam não são apenas os com interesse subjetivo: Wellesley é uma "comunidade para mulheres", e Westhollywood é uma cidade para "gays, lésbicas, bissexuais e transexuais".

Dentro dessas cidades, cada usuário tem um "site-propriedade"; há usuários que "vivem" ao lado, outros que "vivem" mais longe. Todas essas características podem ser mostradas visualmente. Normalmente, os ícones mostram algo do espírito da cidade. Em Pentagono, por exemplo, as propriedades são tendas de estilo militar, enquanto na Floresta Encantada (um site de e para crianças) os ícones são lindas cabanas. Mudanças podem ser feitas nas propriedades, sendo descritas como "trocar a mobília" ou "mudar a casa". De resto, essas mudanças podem ser vistas, apreciadas e comentadas pelos outros membros da cidade. É a possibilidade deste tipo de atividade que faz do engajamento numa GeoCity muito mais que enviar e receber mensagens.

Como o nome Multi-User DungeonS sugere, os sites para vários usuários começaram como jogos com muitos jogadores. A vasta maioria é ainda devota, senão à jogos, ao menos à busca de atividades de lazer. Isso sem dúvida explica um pouco sua fenomenal popularidade: eles combinam as atrações da televisão, jogos de computador e interesses de recreação com interação e a habilidade de mudar o que aparece na tela. Mas a existência de sites com interesses muito mais sérios - educação, política, etc - traz consigo a possibilidade adicional de que as pessoas devam buscar algo além de lazer nesses meios. Assim torna-se mais plausível que essas GeoCities possam ser descritas como comunidades virtuais. A razão não é devida apenas à "arquitetura" da GeoCity ter uma grande variedade de propriedades e características que reproduzem as que encontramos em casas e bairros normais, e aquela, como esses, estruturam interação e troca social. É também porque relações podem ser estabelecidas e exploradas exclusivamente nesse contexto. Como apontei noutro lugar, sabe-se de casos de pessoas que se conheceram pela Internet e casaram, encontrando-se em carne e osso pela primeira vez apenas no casamento. No entanto, existem, também, casos de pessoas casando dentro da comunidade de uma GeoCity. Isso quer dizer: contato eletrônico não é o passo inicial para uma relação, pode ser todo o meio para ela. Em algumas GeoCities, campanhas políticas para "prefeito" e "xerife" tem sido feitas, e os usuários eleitos têm tido poder político, claro que à maneira da Internet. Rapidamente, verifica-se que relações pessoais e políticas têm sido estabelecidas exclusivamente dentro do contexto das comunidades da Internet. A pessoal e a política são duas importantes dimensões da interação humana , mas devemos supor que outros tipos de relação vem sendo e serão reproduzidas nesse meio puramente eletrônico. (Já é comum para certos autores falarem até de "sexo virtual" na Internet.) É isso, e não sua natureza meramente multi-usuário ou interacional que levanta a questão: são essas comunidades virtuais novos tipos de comunidades em seu próprio direito?

[Deixando para explorar noutra ocasião o conceito de "virtual"] podemos observar no momento que o termo é geralmente usado para sinalizar algo que, de um jeito ou outro, difere do normal. No caso da GeoCity, esse "algo" não é difícil de se achar. Os grupos de discussão baseados em email e afins mais simples parecem carecer de capacidade comunicativa - uma falta que a adição do visual poderia, em certo nível, remediar. Também as GeoCities carecem do poder da comunicação, o que consiste em tocar e fazer sentir. Obviamente, assim como tivemos razões para mudar do email para a Internet, e do rádio para a televisão, porque os segundos constituem uma superação tecnológica das deficiências dos primeiros, podemos supor que a tecnologia achará meios de superar as limitações das segundas. Embora não saibamos de tais coisas no presente, podemos especular que meios técnicos surgirão (provavelmente já surgiram, na verdade) que colocarão a nosso alcance, eletronicamente, o tangível, além do visual e do lingüístico. Essa é uma linha de pensamento que não possui limite argumentativo. Qualquer que seja a deficiência que identifiquemos na Internet agora ou no futuro, podemos igualmente imaginar ela sendo superada. Segue-se disso que as questões dos neo-ludditas (tecnófobos) jamais poderão enfrentar a especulação que remete apenas à inovação tecnológica. Todavia, isso não confere uma vantagem abstrata aos tecnófilos. Aqueles que propõem a idéia de que a Internet tem a capacidade de criar novas formas de comunidade precisam encarar uma dificuldade diferente: quanto mais deficiências a tecnologia da internet solucionar, mais próxima da vida normal ele se tornará e menos poderá ser considerada uma real novidade. Rapidamente, depois que todas deficiências foram solucionadas, a comunicação da internet terá se tornado comunicação e troca como nos normalmente conhecemos.

Neste ponto em especial, os tecnofilos parecem pegos em um dilema. Vantagens como as que Stacy Horn descreve em seu salão eletrônico, na verdade, dependem das limitações desse salão como forma de comunicação: os limites que permitem aos participantes disfarçarem as características pessoais - sexo, cor de pele, etc - são os atrapalhariam a liberdade de relacionamento. Quanto mais essas limitações são superadas, mais as comunidades eletrônicas se parecerão com comunidades comuns, com todas suas desvantagens - noutros termos e em resumo, as comunidades virtuais se parecerão com as cotidianas.

Trata-se de uma linha de raciocínio a qual seria preciso retornar. Entretanto, há ao menos mais uma réplica que os tecnófilos poderiam fazer nesse momento. Ela coloca a discussão em um contexto maior. A expressão "realidade virtual" é normalmente usada de modo a implicar "tão bom quanto a coisa real"; talvez, propriamente entendido, signifique é melhor que a coisa real, ao menos para certos propósitos. Se este apelo para a realidade virtual faz diferença ou não, é uma questão [em aberto], cuja mérito principal reside, no caso, em sua conexão com a discussão do tópico deste texto: a dinâmica da comunidade.




Tradução de Antenor Júnior, Bodan Chilanti e Yordanna Colombo. Revisão de Francisco Rüdiger.




* Publicado em The Internet: a philosophical inquiry. Londres: Routledge 1999, Cap. 7, p. 128-150. As referências feitas pelo autor a outros textos são todas de outros capítulos desta obra. Gordon Graham é professor da Universidade de Aberdeen (Reino Unido), onde dirige o Centro de Pesquisas em Filosofia, Tecnologia e Sociedade.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Horn, Stacy. Cyberville. Nova York: Warner Books, 1998.
MacIntyre, A. After virtue: A study in moral theory. Londres: Duckworth, 1981.
Rawls. John. A Theory of justice. Oxford: Oxford Universoty press, 1972.





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