Comunidade em Abstrato: Um Dilema Político e Ético? *

Michele Wilson


Em cada lado do espectro pol�tico, hoje n�s vemos uma temerosa desintegra��o social e um chamado para o ressurgimento da comunidade. (Giddens 1994: 124)

Em uma era em que as pessoas t�m mais capacidade � atrav�s da comunica��o auxiliada tecnologicamente � de estar interconectadas atrav�s do espa�o e do tempo do que em qualquer outro ponto da hist�ria, um indiv�duo p�s-moderno na sociedade ocidental contempor�nea est� se sentindo paradoxalmente cada vez mais isolado e est� buscando novos modos de entender e experimentar um harmonia social significativa1. A nostalgia contribui para essa busca. A representa��o da mem�ria das comunidades estilo anos 1950, momento em que a ordem moral, social e p�blica �floresceu�, contrasta com a das formas sociais presentes, retratadas como ca�ticas, moralmente empobrecidas e narcisistas. Contudo, e ao menos na teoria, h� tamb�m um desejo de formular modos mais enriquecedores de nos conhecermos atrav�s de �rela��es� que escapam das dificuldades das antigas e restritivas formas de comunidade.

Muitos est�o olhando para uma forma de �estar juntos� que vista como portadora de valor e, mesmo, necess�ria. Ao voltarmo-nos para a tecnologia, deparamo-nos com a possibilidade das comunidades virtuais serem uma solu��o potencial [de nossos problemas]. As comunidades virtuais � ou comunidades experimentadas atrav�s da media��o tecnol�gica da Internet, que possivelmente ser�o ampliadas no futuro pelas tecnologias de realidade virtual � s�o representadas por alguns como uma forma de comunidade p�s-moderna. Pintam essas comunidades virtuais como sua resposta te�rica � procura por uma experi�ncia menos excludente ou repressiva de comunidade. Talvez se prove que venha esse a ser o caso. Mas outros te�ricos est�o inquietos quanto a se a f� no potencial �nico, �liberat�rio� e interconectivo do virtual fornecer� uma vis�o adequada das futuras comunidades. Com isso n�o se quer afirmar que as celebra��es de tal forma de comunidade a prop�e como a �nica forma a ser praticada ou experimentada, j� que, em algum grau, as formas �mais antigas� continuar�o a existir. Como as rela��es entre formas novas e antigas s�o modeladas � algo que requer maior elabora��o e aten��o cr�tica.

Em vista da confian�a que a sociedade tem na tecnologia como forma de resolver seus problemas, tanto o ceticismo quanto um exame maior em rela��o �s alega��es que cercam as comunidades virtuais fazem-se necess�rios. Parece plaus�vel que a �nsia por comunidade, evidente na p�s-modernidade, � na verdade parcialmente motivada pela experi�ncia e as atribula��es resultantes de se ser um �indiv�duo� dentro de uma sociedade organizada e auxiliada tecnologicamente2. Como tal, � interessante notar que existem semelhan�as entre as dire��es tomadas pelas teorias da comunidade formuladas dentro e fora do �mbito tecnol�gico. Se alguns v�em a solu��o como tecnol�gica e outros, embora igualmente preocupados com a quest�o da significa��o da comunidade, evitam o t�pico da tecnologia completamente, para ambos o mesmo tipo de quest�o precisa ser feita: a saber, se, ao encarar as dificuldades apresentadas pelas antigas conceitua��es de comunidade, os te�ricos n�o est�o levando a complexa no��o de comunidade a um entendimento superficial e unidimensional da intera��o humana. O que eu quero sugerir � que, atrav�s da retirada da comunidade de uma arena pol�tica e social corporificada � seja para alojar-se dentro de uma abstra��o filos�fica ou para tornar-se uma intera��o incorp�rea e tecnologicamente sustentada, pode bem ser que se esteja tornando impotente e irrealiz�vel nossa preocupa��o �tica ou pol�tica com o Outro. Nesse caso, a �comunidade� � produzida como um ideal, ao inv�s de uma realidade, sen�o algo que termina completamente abandonado.




Tecnologias da Individua��o

Investiga-se neste texto as implica��es �ticas e pol�ticas da ascens�o das culturas desencarnadas. Fazer isso requer distinguir as aplica��es das tecnologias de comunica��o e informa��o nas �reas de administra��o, vigil�ncia e comunica��es. Existe, � claro, justaposi��o significativa entre estas �reas. Pelo bem da simplicidade, eu me referirei a dois �tipos� de tecnologia de inform�tica: as tecnologias de sistema ou bancos de dados usados por setores p�blicos e privados, e a Internet3.

Os Bancos de dados s�o usados por institui��es visando acumular, combinar e criar informa��o sobre todas as facetas da vida (incluindo a vidas privada das pessoas). Estes sistemas operam desde loca��es diversas, descentralizadas, muitas vezes com inten��es ou orienta��es diferentes. Os sistemas de bancos de dados est�o se tornando cada vez mais interconectados e sofisticados, assumindo a forma de um sistema de informa��o global, capaz de an�lise infinita, profiling (cria��o de perfis de usu�rios) e combina��es de informa��o. Isto tem conseq��ncias para a subjetividade dos atores sociais atrav�s da cria��o de um pan�ptico tecnologizado4. O indiv�duo ocidental cada vez mais experimenta sua vida como algo monitorado pela tecnologia: � pego por uma c�mera veloz; capturado em v�deo enquanto faz compras; monitorado para ser mais eficiente no trabalho por t�cnicas de vigil�ncia tecnol�gica; e gravado fazendo um empr�stimo que �, ent�o, ligado a outras transa��es financeiras e pr�ticas de compra, para ser inserido nas estat�sticas demogr�ficas. Estes s�o apenas alguns exemplos de vigil�ncia contempor�nea. A vigil�ncia cont�nua, embora muitas vezes imposs�vel de se verificar, e tem implica��es, como Foucault (1977) nota em Vigiar e Punir, no fomento das pr�ticas de normaliza��o. O poder da norma refere-se ao processo pelo qual um sujeito se auto-imp�e ou interioriza normas e comportamentos particulares, para se adequar a uma compreens�o auto-percebida (mas constru�da socialmente) de normalidade. Este processo � acentuado pela percep��o pelo pr�prio sujeito da profundidade e natureza pervasiva de sua visibilidade. Os Bancos de dados projetam seu olhar atrav�s do espa�o disciplinar, permitindo uma vigil�ncia mais difusa e mais pervasiva de cada sujeito do que era poss�vel anteriormente. O sujeito sob vigil�ncia � universalizado, reduzindo-se a um arquivo entre tantos, mas tamb�m individualizado, ao passar a ser pessoalmente identific�vel, prisioneiro de um espa�o-tempo visualidade de maneira constante pelos bancos de dados. Arquivos podem ser recuperados em qualquer momento, com um simples comando digitado em um terminal de computador. Isso tem o potencial de �compartimentalizar� o indiv�duo, separando-o dos outros, atrav�s das qualidades anal�ticas do olhar.

Os Bancos de dados s�o percebidos como um modo de ajudar o vigilante. Dado que esse geralmente �, de algum modo, uma institui��o, visualizar aqueles que est�o fora (ou trabalhando dentro) de seu sistema � algo que geralmente invoca as imagens do Grande Irm�o de Orwell � sen�o a de seus muitos �pequenos irm�os�. A tecnologia se� orientada no sentido de oferecer controle, atrav�s do ac�mulo e da an�lise de informa��o. Dentro do campo informacional, a informa��o em si converte-se em uma entidade, pass�vel de ser movimentada, manipulada e transformada sem liga��o com seu objeto de refer�ncia.

A Internet tamb�m permite que a informa��o seja movimentada, manipulada e transformada, pondo em quest�o a autoria e autenticidade do material original. Em contraste com os bancos de dados dos sistemas de informa��o, a Internet todavia tende a ser mostrada como uma tecnologia libertadora. As informa��es que oferece s�o acess�veis para muitos usu�rios e ela � interativa em sua forma de funcioamento. A Internet permite a amplia��o de muitas atividades cotidianas. Ela � utilizada na coleta de informa��es, na discuss�o de t�picos sociais e acad�micos, na dissemina��o de olhares na e realiza��o de transa��es comerciais. Como os bancos de dados, a Internet n�o � limitada por fronteiras e � cada vez mais acess�vel em uma escala global5. � um sistema de comunica��o diverso, descentralizado, com input ilimitado � qualquer um que est� conectado a rede pode participar do sistema, resultando em desenvolvimento aparentemente descontrolado e imprevis�vel. Algumas institui��es v�m isso como potencialmente amea�ador, levando-as a expor na m�dia suas atividades �ileg�timas� ou socialmente destrutivas, tanto quando as tentativas feitas por pol�ticos de lidar com este assunto atrav�s de discuss�es sobre censura e regras6. No entanto, essas institui��es tamb�m buscam um maior envolvimento com a tecnologia, desenhando novos modos atrav�s dos quais os usu�rios podem fornecer informa��es, sem saber, sobre si mesmos e o que fazem, contribuindo assim para sua pr�pria vigil�ncia. Howard Rheingold constr�i o cen�rio conceb�vel para aqueles que s�o pobres de informa��o, ou t�m acesso limitado � tecnologia: a Internet lhes � oferecida gratuitamente em troca da desist�ncia de partes de sua privacidade pessoal ou o controle sobre suas informa��es privadas (Rheingold 1993: 293-4). Construtos tecnol�gicos como mecanismos de busca (search engines) artificiais, est�o aumentando tanto em habilidade quanto em n�mero e podem muito bem ser capazes de criar perfis e registros das atividades individuais e seu comportamento dentro das comunidades virtuais. Neste caso, a Internet tamb�m opera como um banco de dados.

Marcando deste modo as semelhan�as entre a Internet � em termos n�o apenas de seu potencial, mas tamb�m de sua atual capacidade � e os bancos de dados, sugere-se que a aplica��o � tecnologia de termos como �controladora� e �liberat�ria� � arbitr�ria. Obviamente, a tecnologia em si n�o � controladora ou liberat�ria; os usos culturais e sociais a que ela serve � que podem s�-lo. Quando a Internet opera como um banco de dados interconectado, ela tem um potencial para criar modos pan�pticos de rela��es de reconhecimento tanto quanto o tem para melhorar nosso sentimento de liberdade e mobilidade. A Internet conecta e desconecta indiv�duos ao mesmo tempo. Na condi��o de paradoxo da �conectividade�, da participa��o com outros em um espa�o virtual, essa tecnologia desconecta o indiv�duo das intera��es corp�reas que o cercam. Apesar de n�o poder individualizar atrav�s de opera��es de vigil�ncia no mesmo grau atualmente permitido pelos bancos de dados, a intera��o atrav�s da internet todavia aumenta a natureza solit�ria da participa��o individual como uma atividade ao mesmo tempo singular e universalizada.




Igualdade, fraternidade e liberdade em uma comunidade virtual?

As comunidades virtuais s�o formadas e funcionam dentro do ciberespa�o � o espa�o que existe dentro das conex�es e redes de tecnologias de comunica��o. Um n�mero crescente de escritores as apresentam como formas novas e excitantes de comunidade, que liberam o indiv�duo das amarras sociais da identidade corporificada e das restri��es de espa�o encarnadas geograficamente; que nos eq�alizam atrav�s da remo��o das estruturas hier�rquicas corporificadas; e que promovem uma sensa��o de conex�o (ou fraternidade) entre os participantes interatuantes. Assim, as comunidades virtuais s�o retratadas como a ep�tome de uma forma de comunidade p�s-moderna, dentro das quais a multiplicidade do eu � refor�ada e suas diferen�as proliferam sem as inibi��es oriundas estruturas sociais exteriores.

As comunidades virtuais existem dentro das listas de discuss�o, dos grupos de debate, dos MUDs, MOOs e outras redes interativas. A intera��o � conduzida predominantemente por meios textuais. As descri��es, a��es e locais de reuni�o s�o todas comunicadas textualmente, produzidas por um teclado. Isso certamente ir� mudar com o tempo, considerando a crescente sofistica��o da tecnologia de realidade virtual e as cont�nuas melhorias nas tecnologias gr�ficas e de v�deo (como as de v�deo-confer�ncia). No entanto, embora a informa��o visual esteja limitada a descri��es baseadas em texto, a informa��o sensorial esteja em grande parte exclu�da da intera��o, o �participante� ou membro da comunidade � capaz de mostrar a si mesmo em qualquer formato, forma ou g�nero que deseje. Os participantes de comunidades virtuais podem escapar de suas pr�prias identidades corporificadas e, de acordo com isso, de quaisquer iniq�idades e atitudes sociais ligadas �s v�rias formas de nossa encarna��o. Ra�a, g�nero ou defeito f�sico s�o indiscern�veis na Internet. As bases para fazer descrimina��o incorporada s�o removidas, facilitando a participa��o e dando a cada participante um igual status dentro da rede de comunica��o.

A liberta��o referida tamb�m pode ser conquistada em rela��o �s amarras do espa�o geogr�fico, na medida em que o lugar f�sico do �corpo� do participante � transcendido, atrav�s da amplia��o da intera��o dentro do ciberespa�o, comprimido em uma m�dia capaz de f�cil transversalidade. Assim, as comunidades virtuais tamb�m podem ser vistas como um meio de supera��o do isolamento inerente � vida contempor�nea, onde as pessoas n�o conhecem seus vizinhos f�sicos, n�o se envolvem nas decis�es de sua cidade e, muitas vezes, trabalham em casa. Trata-se de uma �solu��o� que ignora a natureza fisicamente isolada da participa��o: apenas a mente � colocada em intera��o m�tua. Vale notar que os participantes em comunidades virtuais muitas vezes sentem necess�rio refor�ar/complementar suas rela��es desencarnadas simulando, em um n�vel ritual, os contatos mais carnais ou sensoriais. Por exemplo, os participantes do WELL � uma comunidade virtual na Internet � fazem piqueniques reais e promovem encontros sociais regulares, procurando desenvolver uma compreens�o mais completa de cada um em tais encontros.

A percep��o de anonimato nos � apresentada como mais uma vantagem pelos proponentes da comunidade virtual. Liberados do olhar normativo das institui��es e da sociedade, a identidade n�o pode ser verificada, ligada ao usu�rio de carne e osso. O comportamento n�o pode ser restringido por normas e valores do �espa�o real�7. O grau de anonimato realmente conseguido todavia � question�vel, e ter� de enfrentar prova��es � medida que os provedores de informa��o e os interesses comerciais criarem meios mais efetivos de acumula��o de informa��o sobre os usu�rios de redes. Al�m disso, a confus�o dentro de algumas comunidades � resultante da identifica��o do anonimato com aus�ncia de responsabilidade � levou-as a requerer que seus participantes indiquem algum tipo de identifica��o est�vel. No WELL, por exemplo, os participantes s�o obrigados a vincular todas as suas formas de apresenta��o com uma mesma identidade de usu�rio, permitindo-se assim que suas identidades sejam verificadas (Rheingold, 1993). A necessidade de um tipo de ordem dentro da intera��o levou algumas comunidades a sacrificar os aspectos libert�rios do anonimato em favor da responsabilidade. O registro e o arquivamento das intera��es tamb�m criam �tra�os hist�ricos� do protagonista, diminuindo sua capacidade em interagir sem identifica��o, devido � memoriza��o de seu comportamento passado das frases que pronunciou.

Existem guias normativas dentro dessas comunidades e a vigil�ncia � apesar de modificado � nelas se aplica. Marc Smith escreve que, como nas comunidades do �espa�o real�, as comunidades virtuais precisam invocar e manter o compromisso de seus membros; monitorar e sancionar comportamento; e levar adiante a produ��o e distribui��o de recursos essenciais (HREF 1). Existem regras espec�ficas ligadas a cada comunidade, com as quais os participantes devem concordar, para manter seus direitos participativos. Muitas dessas regras s�o criadas ou pelos pr�prios participantes ou, mais freq�entemente, pela(s) pessoa(s) que criaram o espa�o comunit�rio. Por exemplo, em grupos de confer�ncia, o �hospedeiro� tem o controle sobre os t�picos discutidos e o comportamento permitido aos participantes da confer�ncia, a ponto de certos t�picos e usu�rios poderem ser banidos, se necess�rio8.

A quest�o da �tica, ou uma no��o de bem comum, dentro das comunidades virtuais em si (ou mesmo dentro da no��o de comunidades virtuais) est� relacionado com a exist�ncia desse tipo de guias normativas que mencionei. Te�ricos comunitaristas como Sandel, Taylor e MacIntyre se preocuparam em pensar a import�ncia de uma certa no��o de bem comum para comunidades do �espa�o real�. Eles examinam a encarna��o das �ticas e das normas nas institui��es nas pr�ticas de tais comunidades.

Nessa �tica, seria o caso de se pensar se n�o � algo semelhante � obten��o de uma ilumina��o espiritual que � vendida comercialmente com o uso de tecnologias da informa��o. A recente campanha publicit�ria de televis�o da IBM, �Solu��es para um Mundo PequenoTM� (Solutions for a Small Planet.), revela uma tentativa de ligar suas tecnologias ao ethos que guia os atuais movimentos de espiritualidade New Age. Duas mensagens s�o mostradas atrav�s destes an�ncios � uma usando freiras e outra, monges, ambos t�o excitados pelas capacidades do computador que este interrompe, sen�o toma o lugar de suas contempla��es espirituais. Primeiro, os an�ncios sugerem a poss�vel realiza��o de uma experi�ncia espiritual, j� que a contempla��o religiosa significa ou � mesmo substitu�da pelo uso de tecnologia. Segundo, o pr�prio termo �mundo pequeno� sugere consigo as possibilidades de interconectividade e acessibilidade universais. Com esta tecnologia, o espectador pode rapidamente inferir, � f�cil se conectar com todo o mundo, ao inv�s de ficar perdido em um ocenao de isolamento e aliena��o: uma varia��o do clich� �que mundo pequeno�, que se costuma usar quando se encontra algu�m familiar em um local improv�vel. O comercial enfatiza a transversalidade e a compress�o do espa�o em um conceito ou experi�ncia mais manej�vel socialmente. Esp�cie similar de sugest�o sustenta a �nfase comunit�ria dada �s tecnologias da interatividade. Usando estas tecnologias, sugere-se, o global pode se tornar t�o manej�vel e familiar como sua comunidade local (a comunidade que voc�, nostalgicamente, perdeu).

Esta mensagem de maneabilidade e familiaridade parece ser manuseada de modo acr�tico por todos os entusiastas de comunidades virtuais. Eles v�em a boa vida como algo alcan��vel atrav�s das oportunidades dadas a identidades flex�veis e desencarnadas, livres em rela��o ao tempo e espa�o geogr�ficos, e n�o mais dependentes de outros �significativos�. Resulta da� que o que � significativo para eles s�o as formas de participa��o. A �nfase na multiplicidade e na escolha ressalta os procedimentos, celebra a habilidade em escolher identidades e lugares, mas n�o explica a natureza da boa vida em si mesma.

No entanto, as comunidades virtuais tamb�m devem ser compreendidas como m�ltiplas e diferenciadas, tornando imposs�vel delinear aqui as qualidades ou entendimentos de todas elas com objetivo de generaliza��o. Qualquer an�lise da comunidade virtual precisa proceder em dois n�veis diferentes, apesar de ligados em �ltima inst�ncia: precisamos fazer uma an�lise das potencialidades da tecnologia que permitem �s comunidades virtuais existirem em sua forma presente; e uma an�lise da forma espec�fica de cada comunidade virtual. A primeira ajuda a identificar as capacidades e meios de todas as comunidades dentro do espa�o virtual, permitindo certas generaliza��es; j� a segunda se concentra na especificidade de cada comunidade virtual, com suas normas e regras particulares.

[Penso que] o que � promovido como parte da boa vida, via a tecnologia, � a �nfase na capacidade de escolha. Dentro de uma comunidade virtual, os indiv�duos s�o capazes de escolher o n�vel ou grau de intera��o social. As pessoas podem escolher quando participar, podem escolher seus graus e padr�es de envolvimento com outros � enquanto aqueles com quem eles querem se envolver concordarem9. Casamentos acontecem, relacionamentos �sexuais� s�o constru�dos e rela��es hier�rquicas e administrativas s�o criadas. Como nota Sherry Turkle: �As mulheres e os homens contam que as salas e labirintos de MUDs s�o mais seguros que as ruas das cidades, que sexo virtual � mais seguro que sexo em qualquer lugar, que as amizades em MUDs s�o mais intensas que as amizades reais, e que quando as coisas n�o d�o certo voc� sempre pode ir embora� (1995: 244, �nfase minha). Os relacionamentos podem ser quebrados em qualquer ponto pela simples retirada do personagem/identidade, deixando-nos pensativos a respeito do n�vel e profundidade dos compromissos ou investimentos feitos nestes relacionamentos.

Os indiv�duos tamb�m podem escolher ter v�rios personagens dentro de uma comunidade, ou pertencer a v�rias comunidades, ao mesmo tempo. Destarte, as pessoas continuamente �passeiam� de um personagem a outro, assim como passeiam entre v�rias comunidades. Isso j� levou alguns observadores a retratar as atividades de �constru��o de personagem� como an�logas �s de �passear�, conforme a descreve a teoria p�s-moderna, com sua �nfase nas id�ias de multiplicidade e de navega��o nas superf�cies (Turkle 1995: 44-5). Por�m, isso n�o � diferente da multiplicidade de participa��es, pap�is sociais e identidades que os indiv�duos mostram na sociedade moderna, apesar do ritmo de transi��o entre elas, neste caso, n�o ser t�o instant�neo como no ciberespa�o. Tal instantaneidade acelera as habilidades gerativas necess�rias para se assimilar rapidamente as �roupas� de cada personagem e pode mesmo afetar a experi�ncia e os meios de se relacionar com o mundo de cada pessoa. Podemos comparar estes passeios e com �zapear� na televis�o: ambos est�o em busca permanente de est�mulos mais gratificantes. Jonathan Crary nota que, �de maneira fundamental, est�o nos inculcando como �natural� a id�ia de que devemos mudar nossa aten��o rapidamente de uma coisa a outra� (1995: 66).

Pode-se perguntar se estamos nos tornando viciados sensoriais perpetuamente em busca de novas experi�ncias; ou seja, se esta busca por est�mulos constantes, mas aparentemente superficiais, est� levando � promo��o de formas de gratifica��o instant�nea, �s custas de uma investiga��o e compreens�o mais comprometidas, complexas e significativas do mundo. Em termos de intera��o dentro de uma comunidade virtual, a �nfase est� na fluidez e na escolha de associa��es em um espa�o social. A intera��o � abstra�da de particularidades mais concretas e encarnadas, tendo lugar dentro de um ambiente modelado pelos pr�prios atores. O �afrouxamento� das conex�es pode parecer libertador, mas isso leva a uma desvaloriza��o de muitos aspectos positivos e ontologicamente importantes destas mesmas conex�es. Parece, por exemplo, contradit�rio relevar os aspectos enriquecedores das comunidades virtuais, se desvalorizarmos ou ignorarmos rela��es como aquelas que existem entre pai e filho e que muitos te�ricos v�em como fundamentais para manter qualquer comunidade. Como David Holmes (1997) t�o habilmente faz a analogia, os participantes de comunidades virtuais s�o como mensagens em garrafas, flutuando aleatoriamente nos oceanos, esperando ser colhidos � uma no��o que se relaciona com o retrato p�s-moderno do eu m�ltiplo da atual sociedade (Holmes 1997: 37-8). Que n�o existem liga��es ou conex�es �entre� essas garrafas, al�m da comunica��o ao redor de certos interesses, n�o � motivo de ansiedade dentro de comunidades virtuais.

Antes pelo contr�rio, as alega��es libert�rias e p�s-modernas sobre as comunidades virtuais baseiam-se numa promo��o desse anonimato que permite a constru��o de identidades flex�veis, m�ltiplas e an�nimas e a altera��o das experi�ncias espaciais e temporais. O que se descreve em formula��es muito ut�picas � a habilidade de �brincar� com a identidade e de promover a comunica��o e a reuni�o de informa��o. Sugeriria de minha parte que a dissolu��o ou fragmenta��o do sujeito e a natureza instant�nea e transiente de suas conex�es desconectam ou abstraem o indiv�dua tanto da a��o f�sica quanto de um sentido de responsabilidade social e pessoal para com os outros. Podemos extrair um exemplo um tanto superficial do livro de Sherry Turkle, Life on the Screen (Vida na Tela). Turkle descreve um participante de uma comunidade virtual ativamente envolvido nas maquina��es pol�ticas da cibersociedade, mas tamb�m completamente ap�tico e desligado da situa��o pol�tica que o cerca em sua vida �desconectada� (ou localmente encarnada), a ponto de n�o se importar em participar de uma elei��o local para o senado (Turkle 1995: 242).

Blanchot nota um ponto semelhante, ao falar sobre as experi�ncias desencarnadas do sistema de broadcasting:

O mundo todo nos � oferecido, mas por um olhar... Por que tomar parte em uma demonstra��o de rua, se no mesmo momento, seguros e descansados, podemos estar na demonstra��o [manifesta��o] gra�as ao televisor. (1993: 240)

No entanto, experienciar realmente a participa��o em uma demonstra��o e ser cercado pela a��o, pelo barulho, pelo cheiro da multid�o, � uma experi�ncia mais complexa e envolvente da que a conseguida atrav�s de uma tela de televis�o. Embora as comunidades virtuais possam ser interativas, elas n�o requerem nem compromisso f�sico (al�m de mexer com o teclado), nem extens�o moral, pol�tica ou social al�m da rede. Daqueles que usam a Internet e comunidades virtuais, apenas uma pequena percentagem participa ativamente. O resto opera de uma posi��o voyeur�stica ou �de plat�ia�, semelhante �quela praticada ao se assistir televis�o.10

Como outros os elementos s�o filtrados pela depend�ncia �s descri��es baseadas em texto, a natureza da intera��o online � muito focada. A aten��o � colocada apenas no ato da comunica��o, conforme percebido atrav�s da interpreta��o visual do texto11. Tal coisa conduz � afirma��o de que rela��es na Internet s�o mais intensas que aquelas no espa�o real. De algum modo, essa vis�o da intera��o dentro de uma comunidade virtual poderia ser comparada � id�ia de um bar de solteiros, parece haver em ambos uma mesma singularidade de prop�sito. Acontece que tal inten��o singular n�o se equaciona bem com a experi�ncia complexa de intimidade. De qualquer modo, uma analogia bem diferente sobre intera��o com um prop�sito singular, tendo um resultado muito diferente, tamb�m pode ser feita facilmente usando-se o exemplo da demonstra��o na rua dado por Balnchot.

Anthony Giddens escreve: �A intimidade... n�o �, como alguns j� sugeriram, um substituto para comunidade, ou uma forma degenerada desta; � a pr�pria m�dia por qual um sentido do comunal � gerado e continuado� (1994: 127). A quest�o � se a intimidade pode ser conseguida em um espa�o p�blico como a internet, apenas com representa��o baseada em texto e imagina��o. Precisamos perguntar se �comunidade� pode ser definida suficientemente pelas maquina��es de seres aplainados e esvaziados que interagem atrav�s de texto pelo ciberespa�o12; ou se, ao remover as dificuldades e limita��es de comunidades mais tradicionais, n�s tamb�m n�o estamos tirando muitos dos fatores que �tornam� a comunidade significativa para seus participantes.




Conclus�o

As comunidades virtuais s�o celebradas como criadoras de espa�o e forma para uma nova experi�ncia de comunidade. Esta experi�ncia � mostrada como m�ltipla, libert�ria, igualit�ria e, assim, propiciadora de uma experi�ncia mais rica de uni�o. No entanto, um exame cr�tico deste entendimento revela, paradoxalmente, um �emagrecimento� da complexidade da participa��o humana ao n�vel de transa��es unidimensionais e um abandono das responsabilidades pol�ticas e sociais do �espa�o real� por parte dos usu�rios de Internet. Esta tend�ncia no sentido de uma retirada da esfera pol�tica ativa do espa�o real, ou de abandono das tentativas de realizar uma forma encarnada de comunidade, se espelha nos trabalhos de outros te�ricos contempor�neos da comunidade, como Jean-Luc Nancy.

Em seu desejo de evitar a coloca��o de tend�ncias restritivas e totalizadoras na experi�ncia ou compreens�o do que � uma comunidade, os te�ricos de orienta��o tecnol�gica e n�o-tecnol�gica a perderam de vista como possibilidade tang�vel, encarnada ou concreta, relegando-a ou � esfera da exist�ncia ontol�gica, pr�-pol�tica ou pr�-hist�rica; ou a uma exist�ncia experimental dentro dos n�dulos de um sistema de rede de computadores. Este movimento geral em dire��o � separa��o ou abstra��o da comunidade das possibilidades pol�ticas do espa�o real retira toda necessidade para a��o direta, encarnada e pol�tica. A profundidade do comprometimento com os outros dentro de uma comunidade tamb�m diminui, questionando-se a possibilidade de responsabilidade pela coletividade. Como Nancy mesmo enfatiza, uma preocupa��o com o outro � vital para qualquer experi�ncia v�lida de comunidade. No caso das comunidades virtuais, tal cuidado �tico raramente aparece.

O desenvolvimento da cultura e da tecnosocialidade virtuais no cotidiano traz consigo implica��es contradit�rias para a identidade e a comunidade. As comunidades virtuais enriquecem ou �arredondam� o uso de tecnologia ao encorajar a comunica��o e a imagina��o criativas. Crian�as crescendo usando a m�dia a ver�o como uma extens�o de seu mundo, incluindo-a em suas bases de relacionamento. Isto em si mesmo ter� conseq��ncias para os modos como elas experimentam a si mesmos e suas rela��es interpessoais. Mas devemos tomar cuidado com as alega��es que fazemos sobre, e as esperan�as que investimos nas comunidades virtuais. Dependendo de entendimentos de comunidade que funcionam paradoxalmente concentrando a aten��o sobre nossos eus, ao mesmo tempo que nos distanciam de nossas rela��es corporificadas, podemos estar acentuando a compartimentaliza��o contra a qual estamos lutando.




Traduzido por Francisco Araújo da Costa. Revisão de Caroline Andreis.




* "Community in the abstract: a political and ethical dilemma ?" Publicado originalmente em David Holmes (org.): Virtual Politics: Identity and Community in Cyberspace, London: Sage, 1997. Reproduzido com corte conforme editado em David Bell e Barbara Kennedy (orgs.): The cybercultures reader. Londres: Routledge, 2000, p. 644-657. Michelle Wilson � doutora em ci�ncia pol�tica pela Monash University e editora do Arena Magazine.


NOTAS

1. A id�ia de �comunidade� est� ressurgindo em interesse tanto entre te�ricos quanto entre a sociedade em geral. Os Estados Unidos tem podido assistir ao crescimento do auto-nomeado movimento da �Comunidade Respons�vel�, que enfatiza o modo como a comunidade sofre via o privilegiamento dos direitos e preocupa��es individuais. Tamb�m j� h� um aumento na ret�rica sobre comunidade empregada por pol�ticos como Bill Clinton e Tony Blair (ver Wilson 1995).
2. Isto n�o � um argumento a favor do determinismo tecnol�gico. Ou seja, eu n�o estou dizendo que a tecnologia sozinha produz pr�ticas subjetivas ou vis�es espec�ficas e inevit�veis. Ao inv�s disso, estou defendendo que os usos dados � tecnologia pela sociedade e pela cultura, os modos de pensamento que s�o acentuados por suas aplica��es e as pr�ticas que surgem ou aumentam atrav�s das suas potencialidades t�m conseq��ncias para a experi�ncia da subjetividade. As capacidades tecnol�gicas, que permitem pr�ticas que seriam imposs�veis de outros modos para a sociedade realizar sem sua assist�ncia, tamb�m se beneficiam, � claro, do seu potencial efeito subjetivo.
3. As telecomunica��es tamb�m poderiam ser situadas aqui e s�o importantes, porque t�m impacto pol�tico e cultural. Para mais elabora��o sobre as m�dias broadcast ver McCoy (1993) e David Holmes (1997).
4. Ver Foucault (1977) e P�ster (1990) para maior elabora��o sobre os efeitos e o potencial do pan�ptico (conforme modelado para fins de constru��o de uma pris�o por Jeremy Bentham). Poster se refere a este fen�meno como Superpanopticon. No entanto, ele n�o enfatiza o papel do olhar, ou visibilidade, na aplica��o e auto-imposi��o dos processos de normaliza��o do sujeito. Os Bancos de dados permitem uma extens�o daquela visibilidade no espa�o abstrato, produzindo um olhar mais pervasivo e intrusivo que aquele poss�vel sem a media��o tecnol�gica.
5. O ponto n�o deveria ser amarrado ao debate sobre a universalidade de acesso e participa��o na Internet, visto que seus participantes prim�rios s�o os homens brancos que falam ingl�s de pa�ses ocidentais industrializados.
6. Por exemplo, Clinton assinou o Ato de Dec�ncia nas Comunica��es, que autoriza a censura e monitoramento de material pass�vel de obje��o na Internet. A China come�ou a restringir o acesso � Internet, e Victoria, na Austr�lia, j� providenciou seus pr�prio meios de censura online. Ver van Niekerk (1996: D1).
7. Alguma dificuldade nasce ao se tentar definir qual � o termo utiliz�vel na descri��o da intera��o e experi�ncias fora do ciberespa�o. �Vida real� � problem�tico, j� que coloca uma distin��o entre experi�ncia encarnada como sendo a real, e intera��o via tecnologia como n�o sendo. Participantes em comunidades virtuais obviamente iriam contestar a �irrealidade� de suas a��es, que podem ter um papel muito �real� em suas vidas. Tamb�m peca por n�o levar em conta os aspectos constru�dos ou perceptivos de nossas intera��es na realidade do espa�o real ou encarnado. �Espa�o encarnado� indica o campo do contato face-a-face apenas, e � assim tamb�m problem�tico, al�m de ser menos manej�vel. O termo �espa�o real� � que ainda pode n�o ser de todo apropriado � � mais cab�vel.
8. Este � um passo relativamente dr�stico e geralmente requer certa consulta a outros, antes da a��o ser tomada (HREF 1:29).
9. Em alguns casos, onde o acordo m�tuo n�o foi obtido, houve uma tremenda discuss�o sobre o assunto. Um estupro virtual provocou preocupa��o e debate significativos sobre o impacto de atos de viol�ncia baseados em texto.
10. Estat�sticas mostram que 50% de todas as mensagens no WELL s�o trocadas por apenas 1% dos usu�rios (HREF 1: 96).
11. Apesar de agora os gr�ficos e sons estarem gradualmente sendo incorporados.
12. �Se os sistemas virtuais podem manter a profundidade e a complexidade necess�rias para manter estruturas sociais dur�veis capazes de ag�entar o tempo e circunst�ncias danificadoras ainda � desconhecido, ainda est� por se ver� (Stone 1992: 620).




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