O Prazer da Interface

Claudia Springer


A tecnologia nas horas de sexo significa o futuro (J.G. Ballard)

A Cultura Popular tem abraçado a idéia de sexualidade artificial. Na cultura pop a fusão humana com tecnologia computacional é freqüentemente representada em termos positivos, como criadora de um híbrido computador-humano que apresenta inteligência altamente desenvolvida e foge das imperfeições do corpo humano. Contudo, enquanto deprecia o imperfeito corpo humano, a cultura popular simultaneamente usa a linguagem e a imagem associada ao corpo e a funções corporais para representar sua visão da perfeição humana e tecnológica. As tecnologias de computação ocupam, assim, uma contraditória posição discursiva, representando ao mesmo tempo fuga do corpo físico e uma realização do desejo erótico. Para citar o autor de ficção científica J. G. Ballard novamente,

Eu acredito que o sexo orgânico, corpo contra corpo, pele contra pele, não será mais possível por muito tempo... O que nós estamos conseguindo é toda uma nova ordem de fantasias sexuais, envolvendo uma diferente ordem de experiências, como acidentes de carros, como viagens em aviões a jato, toda a superfície de novas tecnologias, arquitetura, desenho de interiores, comunicações, transporte, merchandising. Estas coisas estão começando a entrar em nossas vidas e mudando o desenho interior de nossas fantasias sexuais.

A cultura popular freqüentemente intensifica corporeidade em sua representação de ciborgue. Um sistema majoritariamente eletrônico é representado como seu outro: um corpo humano musculoso com partes robóticas que salientam seu aspecto físico e sua sexualidade. Em outras palavras, muitos textos contemporâneos representam um futuro onde os corpos humanos estão à margem de se tornarem obsoletos mas, no entanto, a sexualidade prevalece.

O sexo não é uma novidade para a ciência e a tecnologia, como pesquisadoras feministas tem deixado claro em suas análises dos discursos científicos. Um exemplo de sexo em uma descrição de tecnologia pode ser encontrada em uma edição de 1968 do jornal Tecnology and Culture, onde o autor Lee Hart é citado por escrever que "máquinas podem muito bem ter fantasias eróticas quando a máquina 'percebe' a saliência de um botão de dial bem girado". Impelindo e inflando, as máquinas industriais tem desde muito evocado imagens sexuais para observadores humanos, mas Hart sugere que as máquinas em si são motivadas por desejo sexual e fantasias eróticas. O sexo, ao que parece, monopoliza os pensamentos não apenas de estudiosos humanos do campo da tecnologia, mas também das máquinas que eles estudam.

Os discursos acerca dos computadores são produtos de suas culturas e estão cheios de pressuposições culturais sobre gênero e sexualidade. Uma revista sobre computador, International Spectrum, subintitulada The Businessperson's Computer Magazine, tem na capa de sua edição de novembro/dezembro de 1989 uma propaganda do hardware Sequoia, que mostra uma fita métrica marcada em intervalos, não de polegadas mas de números de usuários do hardware, acompanhada pela pergunta: "Seu Pick pode medir mais que isso?" (Pick é um sistema operacional de escritório.) Sua associação do hardware com o comprimento do pênis supõe um consumidor masculino e torna explícita a conjunção de sexualidade e tecnologia que permeia os discursos sobre computação.

Parece haver uma irresistível compulsão a associar computadores e o mundo computadorizado com sexualidade. Jack Rochest e John Gantz, por exemplo, começam seu livro The Naked Computer com uma introdução intitulada "The Making Call", no qual eles informam ao leitor, "Você está amando. Você apenas não sabe disso ainda... Mas você pode muito bem se juntar à orgia, sucumbir aos prazeres da era da informação. Além do mais, um computador já mudou sua vida." A revista Future Sex examina como a tecnologia pode facilitar a sexualidade e expõe brinquedos sexuais high-tech em fotografias, desenhos, ensaios, e contos. Um discurso sexy também envolve a tecnologia computadorizada no jornal ciberpunk Mondo 2000. Sua lista de editores inclui um posto para uma Dominatrix (Domineditrix), e a edição número um apresenta um "micro chic: inteligência artificial para vestir", com uma modelo posando provocantemente, vestindo circuitos eletrônicos que foram montados em seu tórax. A edição número 5 incluía fotografias de mulheres nuas com sofisticados aparelhos eletrônicos amarrados a suas virilhas, seios e nádegas. Elas são descritas no texto de apoio como bacantes (mulheres que participavam de ritos dionisíacos), e um poema impresso ao lado inclui as seguintes e atraentes linhas:

Suspirando, gemendo, em seus joelhos
pantera, Negra, venha para mim
sangue e leite juntos alimentam o prazer

carmim, pulsando, me faça girar
mistério carnal, refeição pagã
Dionísio grita sempre que damos prazer.

O Cibersexo tornou-se um engenho mercadológico, passando uma aura de novidade para produtos na verdade convencionais. Por exemplo, o CD intitulado Cyborgasm promete "a mais selvagem experiência erótica de sua vida" na sua capa, mas o conteúdo falha na justificativa do título. Dezesseis trechos gravados em "áudio 3-D" oferecem monólogos e diálogos envolvendo uma variedade de encontros sexuais e fantasias. Susie Bright, por exemplo, fala a parte de uma masoquista presa em uma jaula. Como diz asperamente Chris Hudak em sua resenha, "não há nada remotamente 'ciber' em nada disso. É um CD foda. Literalmente". Hudak especula que os autores do CD Cyborgasm e outros que tiram proveito da mesma linha "atiram a palavra 'ciber' em algum lugar por aí, e ficam esperando que o retorno seja todo em direção às casas bancárias". Acompanhando a caminhada em direção ao banco, estão os criadores do livro "The Joy of Cibersex: An Underground Guide to Eletronic Erotica", publicado em 1993. Os autores do livro descrevem software erótico e o estado da arte desta tecnologia, entrevistando pessoas que trabalham na indústria do sexo de computador, e fornecendo um programa erótico em um disquete.

Para o usuário de computador, o software de sexo tem estado por aí por anos e continua a vender bem. Há uma grande seleção de disquetes à venda mostrando fotos provocativas de modelos nuas ("Dê uma boa olhada em Cindy em suas 5 poses mais quentes"). Filmes eróticos foram transferidos de vídeo para CD-ROM. CD-ROMs interativos e disquetes dão aos usuários a chance de escolher suas emoções. Por exemplo, uma propaganda de um CD-ROM anunciava seu produto assim: "Junte-se a voluptuosa guarda enquanto ela espiona as pessoas de um hotel em frente a uma praia luxuriosa. Você ficará louco com o que vai acontecer a partir desta mistura. E quando o supervisor pegá-la, você decide a 'punição'". Um programa chamado Whorehouse tem os jogadores lutando para se tornarem o "Rei Gigolô": "comece a jogar deixando sua esposa de lado". Normalmente, Mike Saenz, o criador dos programas interativos MacPlaymates e Virtual Valerie, não podia sustentar a alta demanda por seus produtos.

Valerie Virtual, um dos CD-ROMs campeões de venda, revela o que está implícito em todo software erótico: tecnologia, sexo não físico, é o verdadeiro locus da sexualidade computadorizada. Virtual Valerie: Director's Cut convida o jogador para entrar no apartamento cheio de histórias de Valerie, ir até o terceiro andar pelo elevador, e explorar seu apartamento antes de finalmente terminar no sofá para se divertir com Valerie. Muita atenção é voltada para os apetrechos no apartamento: com um click do mouse as portas do elevador abrem e fecham com assobio sensual, o telefone de Valerie disca vários números, seus trajes íntimos são esvoaçantes, seu chuveiro goteja e espirra água, sua geladeira abre, o triturador de lixo funciona, e sua central de entretenimento mostra versões de jogos em CD-ROM, entre outros efeitos. Um jogador conta que ele e seus amigos "tem mais diversão ampliando o microondas do que despindo Valerie". Mesmo as pinturas nas paredes de Valerie ganham vida: uma mostra King Kong envolto por aviões barulhentos contra o céu de Nova Iorque, e outro mostra carros caindo de viadutos, dentro de túneis com cabos de destruição e em seguida caindo para outro viaduto e assim por diante. Em cada canto do apartamento de Valerie, a tecnologia promete diversão e excitação. Não surpreendentemente, o sexo com Valerie acaba se tornando mecânico. Ela permanece em uma posição - de quatro - como se um vibrador a penetrasse por trás. O jogador move o mouse para trás e para frente para operar o vibrador, e um medidor registra níveis de intensidade antes de vibrar. O jogo termina. O encanto mecânico de Valerie junta-se àqueles da pia da cozinha, lava-louças, ou microondas, falsamente dormentes até a próxima vez que eles forem convocados para a brincadeira.

Mike Saenz admite em uma entrevista sobre seu programa Valerie Virtual que "os bits sexuais poderiam ser melhores". Ele explica, "o mundo de Valerie é tão detalhado que se tornou um grande projeto, e à época que eu inclui o sexo, eu estava, você pode dizer, acabado. Nós recebemos reclamações de que pessoas estão adquirindo a Síndrome de Carpal Tunnel ao tentar agradar Valerie". Talvez os bits sexuais poderiam ser melhores, mas Saenz teve sucesso ao fazer do apartamento de Valerie um playground erótico e tecnológico pós-moderno.

Visando uma experiência sexual mais completa, redes de computadores com nomes como Throbnet, Sleazenet, e After Dark tem tornado possível que pessoas se comuniquem à distância umas com as outras sobre sexo com completo anonimato. Um relato descreve a situação como segue: "Desbravada por entusiastas da computação, a troca de material sexual explícito e pessoal via computador e linhas telefônica tomou proporções internacionais nos últimos três anos. O artigo de capa da edição de Abril de 1993 de New Media, uma revista que cobre "tecnologias multimídia para usuários de computadores pessoais", é sobre "sexo digital" e fala sobre as maneiras que os computadores estão sendo usados para propósitos sexuais. O artigo fala que "dúzias de revistas especializadas em áreas de conversas adultas e troca de material gráfico tem se expandido. A maior - Event Horizons - lucrou $ 3 milhões ano passado e ostenta 64 linhas e uma clientela de 35.000 clientes internacionalmente". O editor responsável da revista Boardwatch é citado por dizer que os grupos de usuários dos sites alt.sex estão "definitivamente entre os de maior movimento na Internet". Os computadores tem seduzido muitos usuários para longe da interação romântica face-a-face. Como escreve o crítico cultural Mark Dery sobre o fenômeno que ele chama "erotismo mecânico", "A única coisa melhor que fazer amor como uma máquina, ao que parece, é fazer amor com uma máquina".

O discurso da cultura pop sobre computadores revela uma nova manifestação das simultâneas repulsa e fascínio com o corpo humano que existe ao longo da tradição cultural do Ocidente. A ambivalência com relação ao corpo é tradicionalmente mostrada em textos pornográficos, onde a construção do desejo depende de um elemento de aversão. Aquilo que foi proibido pela censura, por exemplo, freqüentemente se torna altamente desejável. Foi apenas no século dezenove, entretanto, que a pornografia foi introduzida como um conceito e uma palavra, mesmo que sua etimologia remeta ao termo grego pornographos, "escrita sobre prostitutas". Walter Kendrick argumenta em seu livro The Secret Museum que o significante "pornografia" nunca teve um significado específico, mas constitui uma estrutura ideológica mutável que foi imposta em uma variedade de textos desde sua criação. Durante o final do século vinte a representação sexual cruzou fronteiras que separavam previamente o orgânico do tecnológico. Este fenômeno é apenas parte da nova permeabilidade da fronteira que separa máquinas de organismos. Como escreve Donna Haraway, "As máquinas do final do século vinte têm tornado radicalmente ambígua a diferença entre natural e artificial, mente e corpo, auto-desenvolvimento e concepção externa, e muitas outras distinções usadas para se referir a organismo e máquinas. Nossas máquinas estão perturbadoramente vivas, e nós mesmo estamos assustadoramente inertes.

As imagens sexuais da tecnologia não são novidade; textos modernistas do começo do século vinte freqüentemente erotizavam a tecnologia. O filme Metropolis é um clássico exemplo da fascinação do começo do século XX com a tecnologia. Combina celebração da eficiência tecnológica com medo em relação ao seu poder destrutivo para com a humanidade, à medida em que foge do controle. O filme expressa essas duas possibilidade em termos sexuais: um robô moldado como uma mulher representa simultaneamente a sedução e a poderosa ameaça da tecnologia. O robô se distingui pela sua evidente sexualidade, porque isso é a sua maneira sedutora que aciona a confusa revolta dos trabalhadores. Como argumenta Andreas Huyssen em seu ensaio The Vamp and The Machine, textos modernistas tendem a igualar máquinas com mulheres, deslocando e projetando medos de supremacia tecnológica para medos patriarcais da sexualidade feminina. Huyssen escreve que a tecnologia não esteve sempre ligada à sexualidade feminina; ambas associaram-se após o início do século dezenove, quando as máquinas passaram a ser percebidas como ameaçadoras entidades capazes de vasta, incontrolável destruição. Na literatura do século vinte a vida humana freqüentemente parece ser vulnerável ao potencial de destruição massiva das máquinas. Mais cedo, no século dezoito, antes da Revolução Industrial instalar maquinário nos locais de trabalho em grande escala, a mecanização oferecia meramente uma diversão na forma do autômato mecânico, desenhado para parecer homem tão freqüentemente como fêmea, que atingiu grande popularidade nas cidades européias onde foram exibidos.

Os ciborgues, entretanto, pertencem à era da informação, quando, como escreve K. C. D'Alessandro, "grandes e imponentes máquinas vêm sendo substituídas pelos labirintos de circuitos do microchip, pela curva minimalista do desenho aerodinâmico" .De fato, máquinas têm sido substituídas por sistemas, e os circuitos microeletrônicos dos computadores guardam pouca semelhança com os imponentes pistons e as atormentadoras engrenagens que caracterizam o maquinário industrial. D'Alessandro pergunta, "O que é sensual, erótico, ou excitante sobre tecnologia eletrônica?" Ela responde sugerindo que a Cibernética torna possível a emoção de controlar a informação e, para os executivos que possuem a tecnologia, controlar os grupos de consumidores.

Um brilhante exemplo de nova tecnologia fornecendo poder investido de sexualidade é encontrado na novela de William Gibson, Virtual Light, a qual formula uma conexão entre o uso de tecnologia eletrônica por propósitos eróticos e seu uso por propósitos econômicos. Na novela um mensageiro está viajando com dois óculos de "luz virtual"; um par, dele próprio, dá uma experiência sexual virtual, e o outro par, que ele vai entregar, revela um plano secreto para reconstruir São Francisco. A carga erótica oferecida pelo primeiro par está implicitamente ligada à excitação em ver no segundo par como alguém poderia gerar grandes lucros em propriedades na nova cidade. Como um personagem diz a outro que não "consegue isso", "Você nunca conseguirá. Mas as pessoas que sabem onde comprar, as pessoas que vêem onde as fundações das torres são lançadas, elas irão, Rydell. Elas vão agarrar tudo aquilo".

A informação de que os óculos de luz virtual revelando o desenho da nova cidade foram roubados leva a uma incansável caçada pelo ladrão e a um rastro de violência e assassinato. O mensageiro é o primeiro a ser morto, não apenas porque ele perdeu os óculos mas também porque ele transgrediu ao pô-los e olhar os planos para a nova cidade. Ironicamente, são os óculos que enxergam o patrimônio real, não os eróticos, que são tabu. Poder econômico tem sido investido com a excitação proibida que tradicionalmente se associa ao sexo.

O anonimato previamente discutido oferecido pela tecnologia eletrônica promete cada vez mais excitação erótica. O sexo via computador e outros encontros virtuais permitem aos usuários expressar suas fantasias sexuais sem revelar seus nomes, rostos, ou qualquer outra informação característica. A personalidade de uma pessoa online pode ter pouca ou nenhuma semelhança com a mesma, fisicamente, tornando-se possível expressar fantasias envolvendo todo tipo de transformações pessoais. O gênero torna-se fluido: homens podem interagir como mulheres ou vice-versa, e o desejo pode ser solto dentro do campo eletrônico tendo a confortável segurança de uma identidade anônima.

A imagem do ciborgue na cultura popular também sugere que a tecnologia eletrônica é erótica porque torna possível fugir ao mesmo tempo dos limites do corpo e das fronteiras que separam matéria orgânica de inorgânica. Os robôs representam a ovação e o medo evocados pela capacidade das máquinas da era industrial em funcionar independentemente dos humanos, mas os ciborgues incorporam ao invés de excluir esses seres, e em o fazendo, suprimem as distinções que até então separavam a humanidade da tecnologia. Fronteiras transgredidas, na verdade, definem o ciborgue. Quando os humanos interagem com a tecnologia computadorizada na cultura popular, o processo envolve transformação do eu em algo inteiramente novo, combinando tecnologia com identidade humana. Ainda que a subjetividade humana não seja totalmente perdida no processo, é alterada significantemente. Como Scott Bukatman nota, "O que está em questão na ficção científica não é mais a fusão de seres e a imortalidade da alma, mas a fusão do ser e da tecnologia eletrônica em uma nova subjetividade, amarrada por pesados cabos".

Mais que representar a fusão humana com inventos eletrônicos como apavorante, a cultura popular freqüentemente representa isso como uma experiência prazerosa. O prazer da interface, em termos Lacanianos, resulta da oferta do computador nos levar para um Imaginário micro-eletrônico onde nossos corpos são destruídos e nossas consciências são integradas dentro da matrix. A palavra matrix, na verdade, é originária do Latim mater (significando mãe e ventre), e a primeira de suas várias definições no Dicionário Webster's Collegiate (10ª ed.) é "algo dentro ou de onde outra coisa se origina, desenvolve ou toma forma". Na cultura pop, os computadores nos sugerem a emoção de uma fuga metafórica para dentro da segurança confortável do útero de nossa mãe, que, como Freud explicou, representa nosso primeiro lar. Segundo Freud, quando nós temos uma estranha (unheimlich) resposta a algo, nós estamos sentindo a mesma atração e medo evocados pelo útero, onde nós experimentamos nossos primeiros momentos de vida ao mesmo tempo que nossa falta de sensibilidade nos parece a morte. Freud afirmou que nós somos constituídos por um desejo de morte assim como por um princípio de prazer, e a imagem do ciborgue na cultura pop efetivamente funde os dois desejos.

Os conflitantes desejos por auto-afirmação e auto-aniquilação figuram centralmente na trama dos episódios "Borg" da série de televisão Jornada nas Estrelas: A Nova Geração. Os Borg são alienígenas que penetram nos corpos de seus membros com tecnologia e substituem suas identidades individuais com uma consciência de grupo. No episódio de duas partes "O Melhor de Dois Mundos", os Borg capturam o Capitão Picard, transformando-o em um deles próprios, ao tomar conta de sua mente e fundir seu corpo com componentes tecnológicos. Eles pretendem usar seu conhecimento para derrotar a espaçonave Enterprise e absorver toda a humanidade. Enquanto Picard está na nave Borg, os membros da tripulação da Enterprise ponderam sua situação: ele transformou num Borg, tendo sua identidade destruída, ou ainda é ele mesmo, embora em estado alterado? O almirante da frota estrelar declara Picard morto e promove o Comandante Riker a capitão da Enterprise. Quando os membros da tripulação da Enterprise recapturam Picard e o levam de volta para sua nave, eles descobrem que Picard transformou-se num Borg chamado Locutus, tendo seu rosto e seu corpo penetrados por aparelhos. Ele lhes diz que resistir é fútil. Num último esforço para salvar a espécie humana dos Borg, o tenente-comandante Data, um andróide, estabelece uma "ligação neuronal" com Picard/Locutus e, por extensão, com o resto dos Borg. Data planta um comando nas consciências eletrônicas dos Borg que os põe para dormir, uma maneira que eles adotam para regeneração. Em resposta, a nave Borg se auto-destrói e Picard volta a ser ele mesmo.

A trama secundária do episódio envolve um conflito entre duas formas de vida: individualismo ambicioso versus auto-sacrifício de lealdade a um grupo. A autoridade do Comandante Riker é desafiada por uma novata, a Comandante Shelby, uma mulher ambiciosa que desconsidera suas ordens e anuncia o desejo de obter a posição de Riker como o segundo no comando da Enterprise. Ela acusa Riker de dirigi-la com muita cautela e de ficar no seu caminho. A Riker foi oferecido o comando de sua própria nave, porém através do episódio de duas partes, ele fica dividido entre a sua ambição e sua lealdade à Enterprise. Quando é forçado a tomar o comando da Enterprise, depois da abdução de Picard pelo Borg, inicialmente resiste em assumir o controle e sofre pela culpa de ter usurpado a autoridade de Picard. Finalmente ele se compõe de modo a inspirar sua equipe e conseguir uma estratégia para derrotar o Borg e salvar a humanidade. No final, entretanto, depois de Picard ter reassumido o comando, Riker ainda não havia anunciado se iria deixar a Enterprise para comandar sua própria nave ou se permaneceria a bordo como subordinado de Picard.

A indecisão de Riker revela o apelo da interdependência; ele sabe que qualquer um, inclusive Picard, espera que ele assuma o novo posto, mas reluta em abandonar seu confortável nicho na hierarquia da Enterprise. Ele entende que comandar uma nave traz riscos, um fato que se torna claro quando o Borg aniquila a nave que fora oferecida a Riker. Uma alternativa segura seria permanecer sobre a benevolente liderança de Picard.

As duas tramas do episódio encenam conflitos similares entre autonomia e dependência. O dilema de Riker é espelhado pelo relacionamento de Picard, e toda a humanidade, em relação aos Borg. Existe uma inegável atração para com o trabalho fluente que existe em um grupo interconectado, seja na tripulação da Enterprise ou na dos Borg. A vida em grupo é sedutora, mesmo que - ou talvez porque - implique uma perda de individualismo. A transformação de Picard em um Borg, absolve-o de toda a responsabilidade, ele se torna um emissário Borg sem uma vontade própria independente. Existe segurança nesse status dependente assim como existe conforto no labirinto uterino da nave Borg, onde os Borg se encaixam no corpo maternal da nave para se sustentar. Quando Picard/Locutus inesperadamente faz contato com Data e pronuncia as palavras "Sleep Data", se torna aparente que uma pequena parte da consciência de Picard permanece submersa no Locutus e que sua lealdade está com a Enterprise. Finalmente ele escolhe autoridade baseada num modelo patriarcal a bordo da Enterprise ao invés de uma submissão à sociedade em forma de colméia matriarcal dos Borg, mas o episódio todavia apresentou o apelo sedutor da interface tecnológica.

Os episódios subsequentes aumentam o sentimento de que a abdução de Picard pelos Borg foi um tipo de sedução. Picard resiste em falar sobre sua experiência como Borg, como se ele estivesse envergonhado de uma transgressão sexual. Seu encontro com os Borg foi claramente mais que uma confrontação com alienígenas do espaço. Isso perturbou Picard profundamente e deixou um duradouro senso de atração combinado com repulsa.

A cultura popular geralmente representa um colapso das fronteiras entre o humano e a tecnologia como um ato sexual. Associando uma perda mortífera de identidade à sexualidade, a imagem do ciborgue na cultura pop se baseia em uma longa tradição do uso da perda do eu como uma metáfora para o orgasmo. É sabido que amor e morte estão inextrincavelmente ligados na tradição cultural do Ocidente, como Denis de Rougemont mostra em seu livro Love in the Western World. A identificação de morte com amor tem sido acompanhada na literatura pelas idéias de sexualidade sem corpo, duas almas unidas representam a forma mais pura de romance. De Rougemont considera a lenda de Tristão e Isolda como o mito romântico paradigmático da cultura ocidental desde o século XII até o século XIX. O amor entre Tristão e Isolda é constantemente atravessado por obstáculos e a lenda termina com suas mortes trágicas. De Rougemont mostra que a paixão deles depende de obstáculos, seria extinta se fosse domesticada pelo casamento. Além disso, explica De Rougemont, a idéia de amor passional imortalizado na lenda e acolhido pela cultura ocidental desde então é um desejo velado pela morte, o maior e mais irrevogável obstáculo. Conforme de Rougemont escreve: "Do desejo até a morte, via paixão - essa tem sido a estrada tomada pelo romantismo europeu, e nós estamos todos pegando essa estrada na medida em que aceitamos - inconscientemente, é claro - todo um conjunto de maneiras e costumes para o qual os símbolos foram concebidos em um misticismo cortesão."

O elo entre morte e erotismo é também o tema do livro de Rudolph Binion, Love beyond Death. Binion argumenta que antes do século XIX existia um interesse no "amor espiritual além da morte", mas que a alta cultura do século XIX deslocou a fascinação difundida com "amor carnal além da morte". Numerosos exemplos da literatura e das artes visuais do século XIX ligam sexo e morte. "A morte", escreve Binion, "é um afrodisíaco picante". O desejo necrófilo às vezes está escondido sobre a superfície, mas em outros é aberto e inconfundível. De acordo com Binion, depois de 1914 o tema da morte erótica gradativamente deixou a alta cultura e foi entusiasticamente tomado pela cultura popular, onde continua florescendo em filmes, ficção, música e nas histórias em quadrinhos.

A imagem do ciborgue na cultura popular que associa a interface entre homem e computador com prazer sexual é portanto parte de uma longa tradição da morte erótica nas artes. Ao invés de nos descrever como seres que perdem suas consciências e experimentam os prazeres corporais, a imagem do ciborgue na cultura popular geralmente nos convida a experimentar a sexualidade pela perda de nossos corpos e pela assunção como pura consciência. Um dos muitos exemplos é dado pela história em quadrinhos Ciberpunk. Topo, o protagonista da história, entra mentalmente no "Campo de Jogo", uma alucinação consensual onde toda a informação do mundo existe na forma de abstração tridimensional (chamada "ciberespaço" nos romances ciberpunk de William Gibson) e diz: "é a coisa mais linda do universo se eu pudesse deixar meu corpo para trás e apenas viver aqui. Se eu pudesse ser pura consciência eu poderia ser feliz". Enquanto está no Campo de Jogo, conhece Neon Rose, uma mulher-planta com uma rosa como cabeça e duas gavinhas partidas como braços (e, como Topo, presente apenas na imaginação). Até mesmo seu nome inscreve o colapso do limite entre uma planta de vida orgânica e um construto tecnológico. Topo a coloca em um torneio de vontades, representado por seus corpos entrelaçados, enquanto ele narra: "Aqui, você é o quê você quer. Tempo e espaço estão sobre o nosso comando. Sem limites, exceto o quão bom é o seu software. Sem restrições." O desejo falado de Topo - deixar seu corpo e se tornar pura consciência, o que, de fato, foi o quê ele fez - é negado pelas imagens: seu corpo - sua carne - enrolado em torno de outro corpo.

A palavra carne é amplamente usada para se referir ao corpo humano em textos ciberpunk. Carne carrega tipicamente uma conotação negativa no ciberpunk, além da sua associação convencional ao [na cultura norte-americana] pênis. É um insulto ser chamado carne nesses textos e ser carne, é ser vulnerável. Contudo, apesar de sua aversão pela carne, Ciberpunk representa visualmente o corpo de Topo depois de ele ter abandonado-o para flutuar na topografia variante do Campo de Jogo. Seu corpo, entretanto, só parece estar dentro do Campo de Jogo devido a uma ilusão, e ele é capaz de transformar sua aparência da maneira que deseja. Quando vê Neon Rose se aproximar, se transforma em partes mecânicas da forma de seu próprio corpo humano, só que de maneira mais notável. Ele perdeu sua carne e se tornou metal. Somente seu rosto permanece inalterado e é protegido por um capacete. O novo e poderoso corpo de Topo, um produto de sua fantasia, inscreve os significantes convencionais da masculinidade; ele é anguloso com ombros e peito largos e, mais importante, ele é firme. Não é acidentalmente que ele adota esta aparência para agradar Neon Rose, que é retratada numa moda feminina clichê, como uma planta fibrosa que lança suas gavinhas como laços, tentando envolvê-lo. No caso, o leitor ainda não está certo do gênero de Neon Rose, Ciberpunk a mostra como uma mulher depois de Topo tê-la derrotado em sua luta de brincadeira.

Esse exemplo de Ciberpunk ilustra que, mesmo que a cultura popular explore entusiasticamente o rompimento das fronteiras entre humanos e computadores, os limites entre os gêneros são tratados com menos flexibilidade nos mesmos textos. Os corpos ciber, de fato, tendem a parecer masculinos ou femininos em um nível exagerado. Encontramos músculos peitorais gigantes e inflados nos homens e enormes peitos nas mulheres, ou no caso de Neon Rose, imagens de flores clichê, tentando representar a consciência feminina desgovernada no computador matriz.

Apesar disso, identidades sexuais não são inteiramente rígidas nos textos ciberpunk; existem textos que experimentam a instabilidade sexual. Na trilogia de George Alec Effinger (When Gravity Fails, A Fire in the Sun e The Exile Kiss), por exemplo, mudanças de sexo cirúrgicas não são incomuns. A namorada de Marid Audran, o protagonista, é um transexual chamado Yasmin e um dos amigos de Marid foi uma mulher. Em Hardwired, de Jon Williams os corpos podem ser enganadores também. No exemplo mencionado no último capítulo, um velho rico e corrupto teve sua personalidade transferida para o corpo de uma bela mulher inocente.

Apesar do fato das pessoas alterarem suas identidades sexuais nestes exemplos, os textos não reestruturam radicalmente as relações entre os sexos. Homens e mulheres, sendo suas identidades sexuais naturais ou cirurgicamente criadas, se referem uns aos outros de maneira patriarcal, com a posição de autoridade dos homens sobre as mulheres. De fato, na trilogia de Effinger, os transexuais que escolheram tornar-se mulheres trabalham tipicamente como prostitutas na decadente Budayeen. O sistema social dominado pelo homem não mudou, mesmo que as pessoas tenham mais liberdade para situar-se onde elas escolheram dentro da ordem estabelecida.

A imagem do ciborgue até agora não realizou amplamente o ideal de um ser sem gêneros teorizado por Donna Haraway. Haraway reverencia o ciborgue como um conceito potencialmente liberatório, porque fornece uma metáfora para a obsolescência dos gêneros. Quando os gêneros deixam de ser um tópico, ela explica, as mulheres podem ser liberadas de sua falta de igualdade sob o patriarcado e essa se torna possível. Apesar de Haraway não propor literalmente a substituição dos corpos identificados via gêneros por ciborgues, ela julga o ciborgue um conceito útil para ilustrar a possibilidade de um arranjo social igualitário. Haraway revisou alguns pontos em seu "Manifesto" especialmente suas afirmações superficiais sobre como a tecnologia já se tornou parte inseparável da vida humana. Ela diz numa entrevista com Andrew Ross e Constance Penley que sua frase original "somos todos ciborgues" é problemática, porque suprime as diferenças entre o trabalho realizado por mulheres privilegiadas nos países do primeiro mundo e descarta as mulheres das nações do terceiro mundo que trabalham em fábricas, produzindo componentes microeletrônicos. Em retrospecto, ela diz que deveria ser "muito mais cuidadosa para apontar que aquelas são posições subjetivas para pessoas de certas regiões do sistema transnacional de produção que não retratam facilmente a situação de outras pessoas no sistema." Contudo, o "Manifesto" de Haraway ainda permanece como uma visão única do futuro tecnológico e dos desenvolvimentos sociais.

Além de especular sobre o futuro, o ensaio de Haraway analisa a ficção científica feminista de Joanna Russ, Samuel Delany, John Varley, Octavia Butler e Vonda McIntyre que trazem uma alternativa para as fantasias masculinas tradicionalmente encenadas no gênero. A ficção científica feminista trabalha com categorias instáveis, diferente da rigidez associada aos futuros convencionais da ficção científica que conservam, ou mesmo reforçam, os estereótipos de gêneros do presente. A estudiosa do cinema Janet Bergstrom aponta que gêneros exagerados dominam a ficção científica por que "onde o fato básico da identidade humana é suspeito e sujeito a transformações em seu oposto, a representação de identidades sexuais carrega um significado potencialmente elevado, porque pode ser usado como uma marca primária de diferença em um mundo de outro modo além de nossas normas."

Potencializando as diferenças de gêneros, a imagem do ciborgue na cultura popular não se deixa apreender por cientistas como Hans Moravec que nos conta que não haverá gêneros nos computadores móveis que irão conservar as funções mentais humanas em software, uma vez que o corpo humano terá se tornado obsoleto, exceto talvez "por alguma razão teatral. Eu espero que hajam peças, que serão apenas outro tipo de simulação, e peças podem incluir partes oriundas do costume." Por outro lado, de acordo com Jean-François Lyotard, o mais complexo e transcendente pensamento se torna possível pela força do desejo e, em conseqüência, "máquinas pensantes terão que ser nutridas não somente por radiação, mas também por irremediáveis diferenças de gêneros.

Jean Baudrillard toma uma posição similar quando escreve que a inabilidade de sentir prazer faz a inteligência artificial incapaz de replicar a inteligência humana. Entretanto, diferente de Lyotard, Baudrillard não insiste que as diferenças de gêneros sejam indispensáveis. Ao invés, ele vê o colapso dos claros limites entre homens e máquinas como parte de um mesmo movimento pós-moderno em direção à incerteza que caracteriza o colapso das diferenças entre os gêneros. Baudrillard se apropria (alguns dizem se apropria erroneamente) de uma idéia científica para anunciar que "a ciência antecipou essa situação-pânico de incerteza, fazendo disso um princípio." De fato, a incerteza é a característica central do pós-modernismo e a essência do ciborgue. Mesmo que a maioria dos ciborgues na cultura popular exibam diferenças definidas de gênero, é visível que o patriarcado continua sustentando diferenças de gênero, apesar da sua falta de vontade em abrir mão de outras categorias sacrossantas anteriores.

Apesar da imagem do ciborgue na cultura popular geralmente exagerar diferenças convencionais de gênero, ela nem sempre se conforma totalmente às representações sexuais convencionais.

Visto que a maioria das imagens sexuais tem sido produzida para a contemplação masculina e tem privilegiado os encontros heterossexuais, a imagem do ciborgue, vista como um todo, implica uma gama muita mais vasta de sexualidades. A interface erótica é, no fim, puramente mental e não-física; teoricamente permite um livre uso da imaginação. Assim, nem toda imagem do ciborgue adere estritamente as fantasias estandardizadas celebradas em Playboy. Nem postula o computador como feminino, a exemplo do filme Metropolis que associa a tecnologia à sexualidade feminina e representa os homens como vulneráveis a ambas. Ao invés disso, os computadores na imagem do ciborgue da cultura popular representam várias formas de liberação sexual para ambos os gêneros.

Em alguns exemplos fazer contato com um computador matriz é considerado solitário, mas é, também, representado como um ato sexual, uma fantasia masturbatória, expressa em termos da entrada em alguma coisa, ainda que falte a presença de outro corpo ou mente humanos. Na história em quadrinhos Interface, a experiência da interface de uma mulher chamada Linda Williams (curiosamente, e talvez não coincidentemente, o nome de uma estudiosa do cinema que escreveu sobre filmes pornográficos) é retratada como masturbação, assim associada ao processo de pensar. Williams é vista de cima, deitada indolente em sua cama, dizendo: "Eu relaxo meu corpo. Minha mente começa a acariciar as freqüências ao meu redor. Lá é melhor. Eu sou uma com o super-espectro agora. Estou ligada com o mundo". No último quadrinho ela é vista duplicada, seu segundo ser se elevando nu da cama, com a cabeça para trás e os braços estendidos numa pose sexual.

A viagem mental de Linda Williams pelo computador matriz à procura de arquivos valiosos é representada mostrando seu corpo nu mergulhando através de oceanos de circuitos eletrônicos e uma mistura de manchetes de jornais. Apesar da masturbação feminina ser uma amostra da pornografia convencional para o espectador masculino, a interface/masturbação de Williams se desvia da norma; seu corpo é fantasmagoricamente branco e está em constante movimento enquanto ela se lança através da matriz envolta numa neblina úmida. Em dois quadrinhos seu corpo é simplesmente um borrão indistinto. Sua atividade corporal a distingue do objeto passivo convencional da pornografia e sua masturbação não é um prelúdio para o sexo heterossexual. Mais tarde naquela noite, depois de ter retornado da matriz (suspirando: "vir da interface me faz sentir tonta") e de estar mais uma vez completamente vestida, ela rejeita os avanços sexuais de um personagem masculino. Ela lhe diz: "Preciso de algum tempo para mim, agora". Quando tenta persuadi-la, ela responde: "Não esta noite. Sei que você espera que eu durma com você, que faça com que você queira ficar. Mas eu não faço esse tipo de coisa. Veja, estou atraída por você. Então talvez você tenha sorte algum dia. Agora, porém estou com a cabeça cheia. Há tantas coisas em que pensar". Williams toma o controle de sua própria sexualidade, que personifica a condição ciborgue representada na cultura popular, sendo puramente cerebral e ao mesmo tempo sexual. Quando ela diz que quer ficar sozinha porque existem muitas coisas em que pensar, o leitor pode inferir que seus pensamentos privados serão expressos sexualmente, assim como, quando ela entrou mentalmente no computador matriz.

Nos discursos sobre os ciborgues prevalece o sexo imaginário, o sexo sem contato físico com outro ser humano, embora o sexo corporal não esteja totalmente ausente. A ênfase na sexualidade cerebral sugere que, embora a dor seja algo carnal, o sexo não o é. As condições históricas, econômicas e culturais têm facilitado o isolamento humano e a evolução no sentido do sexo cerebral. O capitalismo sempre separou as pessoas entre si, através de sua ríspida ideologia individualista. Sua forma de união primordial e sancionada, a família nuclear, tradicionalmente decretava que cada pessoa, em geral a mulher, abrisse mão de sua individualidade para apoiar no campo privado os empreendimentos públicos da outra. As relações sociais sob o capitalismo se caracterizam pela competição às suspeições que lhe são correlatadas. No capitalismo tardio essas relações são mediadas não só pelo dinheiro mas também pelos meios de comunicação e suas simulações. Mais do que nos comunicar, nós especulamos spectate .

Em Virtual Light de William Gibson, ver televisão literalmente se torna sagrado, um culto religioso formado em torno de um pastor, segundo o qual o próprio Deus se manifesta através da Televisão. Os integrantes do culto ficam em casa e assistem à televisão com grande reverência. "O quê ele vêem mais são, sobretudo, esses filmes antigos, procurando imaginar que, vendo o bastante durante o tempo necessário, o espírito de certo modo pode penetrar neles".

As tecnologias computacionais oferecem maiores oportunidade de diálogo através de serviços online e da Internet do que fazia a televisão. Talvez isso possa ser visto como uma forma de restabelecer o tipo de contato humano perdido durante a era da televisão. Dificilmente nos surpreenderemos em constatar que, é em uma época em que o vírus da AIDS dissemina uma paranóia acerca dos contatos entre as pessoas, que as interações devam ocorrer através da comunicação computadorizada, com os participantes distanciados e incapazes de tocar um no outro.

Dizer que as pessoas se comunicam através de seus computadores não significa que a comunicação continua inalterada em relação à era anterior ao computador. Jean Baudrillard, por exemplo, defende que o termo comunicação é impreciso. Ele escreve que em sua interface "jamais se visa o outro, o interlocutor sexual ou cognitivo, porque cruzar a tela evoca atravessar o espelho. A tela é vista como ponto da interface. A máquina (a tela interativa) transforma o processo de comunicação, a relação entre as pessoas, num processo de comutação, isto é, nela o outro é virtualmente o mesmo - a alteridade é subrepticiamente confiscada pela máquina."

Embora o computador nos convide a por de lado nossas identidades e nos entregar a uma unidade imaginária, ela também como um espelho, relembra que estamos presentes, mostrando as palavras que escrevemos no monitor para nós mesmos. Baudrillard argumenta que é essa experiência privada e intensa que suspende a possibilidade de fazer uma verdadeira interação com o outro e converte as comunicações computadorizadas numa espécie de autocomunicação que pode contar elementos de caráter autoerótico.

Exemplificando a comunhão sexual solitária com a tecnologia, William Gibson emprega o termo instalado (jack in) para descrever o momento em que o cowboy, sentado em um console, aciona o comando para ser transportado mentalmente através do ciberespaço. (Inicialmente ele pretendia intitular sua primeira novela de Instalado [Jacked In], mas o editor se recusou, sob o pretexto de que soava de modo muito semelhante a Desligado [Jacked Off]). A trilogia do autor - Neuromancer, Count Zero e Mona Lisa Overdrive - evoca um futuro distópico, onde indivíduos isolados entram e saem de suas próprias vidas e, muitas vezes, se refugiam na fantasia. De maneira muito pouco diferente das fantasias produzidas em massa pela televisão de hoje, o "simstim" (as estimulações simuladas) alimentam diretamente a mente das pessoas com narrativas de entretenimento. Assim, o ciberespaço é visto também como um espaço mental, ainda que sentido como um espaço tridimensional pelos que nele adentram. "Ciberespaço: uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões de operadores legítimos em cada nação, mas também pelas crianças a quem se está ensinando os conceitos matemáticos... Trata-se de uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos de cada computador existente no sistema humano. Complexidade impensável são as linhas de luz que percorrem o não-espaço da mente, os conjuntos e constelações de informações que, como as luzes da cidade, piscam no horizonte..."

Ligar-se no ciberespaço evoca metaforicamente um encontro heterossexual entre um usuário masculino e um corpo feminino, porque, como noto Nicola Nixon, o ciberespaço pode ser visto como algo feminino. Os cowboys que se inclinam sobre seus consoles na trilogia de Gibson penetram o ciberespaço, lá encontram obstáculos que ameaçam sua masculinidade. "Os cowboys cibernéticos podem se ligar, mas estão sempre em perigo de sofrer ICE (medidas eletrônicas contra intrusos), um tipo de metáfora da membrana himenal matá-los, se eles não conseguem contorná-los através do emprego de equipamentos de pirataria extremamente sofisticados, que contrabandearam a fim de penetrar nos sistemas de informação de organizações como a T-A (Tessier-Ashpool)".

O ciberespaço também é feminilizado pelas figuras misteriosas e fantasmagóricas que se materializam nele. Nixon escreve que essas figuras de outro mundo são basicamente femininas, citando como exemplo 3Jane, Slide, Angie Mitchell e Mamãe Brigitte, uma inteligência artificial feminina que funciona como vudu. Além disso, certas mulheres possuem acesso mental direto ao ciberespaço, dispensando o equipamento requerido pelos cowboys. Segundo Nixon, representando ao mesmo tempo o quê é fascinante e criador a respeito da própria matrix e os meios de acessar seus segredos, o feminino é efetivamente o software, a fantasia (e o mundo) que existe além do hardware das atuais realizações tecnológicas tornadas possíveis pelo chip de silício". Nixon chega ao ponto de defender que a trilogia gibsoniana institui o ciberespaço como um terreno inicialmente masculino que se torna feminino, uma transformação que ocorre em Neuromancer e reaparece em novelas posteriores como When it Change. Todavia, escreve, os cowboys cibernéticos do escritor entram no ciberespaço com a determinação energética de reconquistá-lo, de modo que esse espaço pode ser visto como um terreno contestado, onde os gêneros tradicionais combatem pela supremacia: jovens rápidos e petulantes contra mulheres amorfas mas com poderes misteriosos.

Irônico sobre esses jovens que se jogam dentro dessa matriz metaforicamente feminina é que, não obstante as imagens sexuais, eles são todos passivos e permanecem imóveis. Trata-se de uma fantasia sexual de conquista da era eletrônica, quando a televisão e os computadores logram cada vez mais confinar as pessoas em suas casas ou em suas mesas de trabalho: a mobilidade humana se mostra em declínio.

A ficção ciberpunk transforma explicitamente a passividade induzida pela tecnologia eletrônica em energia esforçada. Em Neuromancer, Case é um cowboy de interface que, quando se senta em sua mesa de trabalho, "percorre todo o mundo da matrix computacional". Gibson torna a inatividade corporal que resulta das operações puramente cerebrais feitas nessas mesas em sensação de movimento intoxicante. Case "as operou em estado de alta adrenalina quase que permanente, um subproduto da juventude e sua capacitação, instalado em um console ciberespacial a ele adaptado que projetou sua consciência descorporificada nessa alucinação consensual que era a matrix. Sendo ladrão, trabalharia para outros, ladrões mais ricos, empregadores que forneciam o exótico software requerido para atravessar as paredes brilhantes dos sistemas corporativos, abrir as janelas para acessar os campos ricos de informações".

Suas exuberantes incursões pelo espectro do ciberespaço chegam ao fim quando ele trai seus empregadores e esses respondem causando danos a seu sistema nervoso com uma "microtoxina russa do tempo da guerra". Gibson escreve que para Case, "que havia vivido a exultação incorporal do ciberespaço, aquilo foi como a expulsão do paraíso. Nos bares que freqüentava como cowboy de respeito, o legal era ter um certo desprezo relaxado para com a carne. O corpo era carne. Case se sentia agora como alguém que tinha se tornado prisioneiro de sua própria carne."

Lendo as passagens em que case voa excitado pelo ciberespaço, depois de se recuperar dos danos causados a seus nervos, é fácil esquecer que seu corpo permanece absolutamente imóvel:

"Havia movimento forte e intenso através de paredes de verde esmeralda, jade leitoso, a sensação de velocidade para além de tudo o que ele conhecera antes do ciberespaço... Quebrara-se a barreira de gelo da Tessier-Ashpool. Havia sido arrancada da proteção que dava o programa chinês. Reinava uma sensação preocupante de fluidez consistente, sentida de modo semelhante ao que se sente com as pontas alongadas e cortantes de um espelho quebrado: - Cristo! Disse espantado Cass, enquanto Kuang, depois de balançar, caía sobre os campos sem horizonte da Tessier-Ashpool, uma paisagem urbana feita toda de neon, tão complexa que feria os olhos, uma jóia brilhante tão afiada quanto uma navalha".

Fenômeno similar ocorre na novela de Walter Jon Williams, Hardwired, na qual a atividade corporal é substituída pelo movimento de um veículo. Os usuários da tecnologia eletrônica perambulam livremente até encontrarem seus veículos (tanques no solo ou aviões supersônicos no ar). Passam então a correr a velocidades incríveis, sem ter de usar suas mãos para operar os controles. O cowboy é visto como um "jovem tanque" e "aviador à jato", que liga os bornes de seus veículos diretamente nas cinco tomadas implantadas em sua cabeça.

Williams escreve o seguinte: "novamente ele vive na interface, a face-olhar, com sua mente ampliada correndo como elétrons através dos circuitos para dentro do coração metálico e cristalino da máquina". O cowboy virtualmente se torna máquina; sua mente vive cada solavanco na mesma medida de sua velocidade. Embora seu corpo permaneça imóvel "seus músculos são estimulados por eletrodos a manter seu sangue correndo. Antigamente, antes da técnica se desenvolver e quando os soldados tiravam seus elmos da Terra e os vestiam para a longa noite de diamante, seus braços e pernas muitas vezes gangrenavam". Agora, porém, "seu corpo pode ser posto para dormir, enquanto ele corre por aí afora, vivência coisas muito mais importantes do que as com que estava habituado".

Enfatizando a velocidade de seus vôos cerebrais, os romances mascaram a inércia corporal de Case e Cowboy. Conforme assinala o crítico cultural Andrew Ross, na ficção ciberpunk os corpos masculinos ampliados tecnologicamente tendem a ser frugais, magros e tempestivos, sujeitos a muitas alterações, possibilitadas por "redes de apoio, implantes corporais, a ciberótica, circuitos bioplásticos, drogas plásticas, amplificadores nervosos, membros e órgãos prostéticos, redes de memória, tomadas de interface neuronal e por aí afora". Argumenta Ross que esses corpos ciborgues e mutantes representam um significativo deslocamento em relação "à fortaleza dos corpos nus de físicos como o de Rambo/Scwarzenegger" e sinalizam o enfraquecimento do mito masculino da onipotência.

Embora os protagonistas da ficção ciberpunk não sejam os super-heróis musculosos que discuto noutro texto (Cap. 4), eles ainda não dão uma versão idealizada da interface eletrônica, a que se baseia na velocidade, ao invés da musculatura. Além disso, sua caracterização é tomada das convenções de gêneros tradicionais como o western, a novela de detetive e o cinema noir. Essas tradições acrescentam um sentimento de dureza e sagacidade para desviar a atenção do que realmente é o modo de vida do cowboy de console. O cowboy de console revela o estilo lacônico e o isolamento dos heróis de faroeste, além de ter de viver seu trágico paradoxo: embora ele se torne lendário, o consegue às expensas de seu valor para a comunidade. No final da história, seus serviços não são mais necessários: "ele não esperava isso, ser informado de sua obsolescência numa cama de recuperação em alguma doce cabana de um rancho de Nevada. Tudo o que ele tinha feito, a lenda que havia construído serviram apenas para pô-lo fora dos negócios".

Os ambientes ciberpunk, escuros e sombrios, e os contorcionismos de seus enredos, que em grau envolvem traição e vilania, derivam do cinismo do cinema noir. Case, Cowboy e Marid Audran na trilogia de Effinger se envolvem em seus casos, usando a tecnologia eletrônica para reunir dados, como os detetives pacienciosos daquele cinema. Diversos romances ocorrem em ambientes urbanos decadentes e contêm diálogos tolos e requentados. Case e Marid são espertalhões de rua e freqüentam bares de segunda classe. Cowboy é mais explicitamente associado às vastas planícies do Oeste, mas o romance se vale de uma convenção requentada, quando nos conta que ele tem "vinte e cinco anos, ficando velho para esse tipo de trabalho e se aproximando do tempo em que mesmo os reflexos neuronais mais pesados começam a amolecer". Quem se alia a Cowboy é Sarah, uma safada da cidade, habituada com os bares decadentes associados à parte desgastada deste tipo de gênero.

Assim a imagem do ciborgue na cultura popular se encontra engajada na fantasia enquanto satisfação de desejos; ela permite aos seres humanos inativos sentirem-se móveis e vigorosos. O GURPS - Ciberpunk high-tech low-life roleplay sourcebook, um manual de jogo ciberpunk cuidadosamente elaborado, explica o apelo do vôo cerebral através do ciberespaço da seguinte forma: "Este é o ciberespaço, o mundo de corredores de rede sérios, piratas informáticos que se ligam à rede e arriscam fritar seus cérebros como ovos, apenas para fazer aquele mítico 'bom escore' que lhes prepara para a vida. Muitos deles, é claro, não jogam para ganhar dinheiro - são viciados na correria, na sensação da adrenalina correndo em seu sistema nervoso". Quando os cowboys de console correm no espaço à velocidade da luz, eles nos fornecem sentimentos altíssimos de potência. Quando o espaço que eles atravessam é o terreno mental do ciberespaço, fornecem-nos a sensação de vivacidade crescente, de uma energia mental que nos alivia da sensação de estarmos presos mentalmente.

A derradeira fantasia subjacente aos discursos sobre o ciborgue na cultura pop, tanto quanto na ciência, é o desejo de imortalidade. Na ficção ciberpunk, nem a morte é certa. O princípio pós-moderno da incerteza é levado ao extremo. William Gibson e Rudy Rucker fizeram da imortalidade um tema central de seus livros, levantando questões sobre se a vida pode ter uma existência não-física e, em Gibson especialmente, examinando como o capitalismo poderia permitir que apenas a classe extremamente rica pudesse obter imortalidade, usando tecnologias inacessíveis às classes mais baixas. Porém a ficção ciberpunk não deixa de reconhecer os paradoxos e perigos da imortalidade. Tanto em Gibson, quanto em Rucke, os personagens que tentam se tornar imortais costumam ser envolvidos por uma aura trágica de solidão e decadência.

Em Ciberpunk, livro de quadrinhos, até mesmo Topo rejeita inicialmente a idéia de deixar seus corpo para trás e se estabelecer definitivamente no Campo de Jogo, quando lhe é dada essa oportunidade: o que ele rejeita é a imortalidade. O livro revela que a perda de seu corpo seria comparável à morte, na medida em que o convite para se juntar aos que já o fizeram provém de uma máscara mortuária, que o interpela de cima de um pedestal, chamada A Cabeça. Durante sua conversa, crânios vazios giram em seu redor, reforçando as imagens de morte.

Quando topo perde sem querer seu corpo e se torna em ciberfantasma aprisionado no Campo de Jogo, a linha entre a vida e a morte se torna mais ambígua. Existe muita especulação entre seus amigos que estão fora da matriz do computador de que se ele está vivo ou morto. Topo, lamentando sua nova identidade, diz que "enfim agora sou apenas um construto informático. Nenhum equívoco há sobre isso. Vivemos, somos formas de vida baseados em impulsos elétricos, ao invés de carvão ou outra matéria física. Somos a próxima estação."

O imaginário ciborgue gira em torno da oposição entre a criação e a destruição da vida, expressando ambivalência sobre o futuro da existência humana. A fusão com a tecnologia eletrônica representa o desejo paradoxal de preservar a vida através de sua destruição. Enquanto ser que não está vivo nem morto, o ciborgue da cultura pop se constitui por paradoxos; suas contradições são sua essência e suas visões de um futuro distinto são de fato projeções dos conflitos vividos no presente.

Envolvidas realmente nas discussões sobre o futuro ciborgue existem, na verdade, as disputas contemporâneas sobre o gênero e a sexualidade. O futuro fornece uma tela para as pessoas projetarem seus temores e fantasias. Enquanto alguns textos se prendem aos gêneros e papéis tradicionais e circunscrevem as relações sexuais, outros experimentam alternativas. Talvez seja irônico que o debate sobre o gênero e a sexualidade encontre expressão no contexto do ciborgue, uma entidade que torna a sexualidade, o gênero e a própria espécie humana anacronísticas. A proposição foulcaultiana a qual "o homem é uma invenção recente que talvez esteja chegando ao seu fim" prefigura os resultados do futuro ciborgue. Entretanto, como argumenta Foucault, é justamente numa época de crise discursiva, quando as categorias antes aceitas se tornam sujeitas à discussão, que os novos conceitos emergem. Os debates sobre os papéis sexuais e de gênero do final do século XX contribuíram para produzir o conceito de ciborgue. Dependendo da aposta de cada um no resultado, pode-se olhar para ele como algo que trará liberação ou aniquilação.




Traduzido por Francisco Rüdiger, Jair Stangler e Leonardo Felipe








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