Plenitude a Alienação
O Sujeito da Realidade Virtual


Simon Cooper


Apesar da tecnologia da realidade virtual não estar desenvolvida a ponto de, como acreditam alguns comentaristas, marcar um novo adágio na evolução humana, a afirmação quanto ao florescimento de seu potencial não diminuiu. Este capítulo examina algumas dessas declarações, em particular a sugestão de que o indivíduo se capacita através da habitação do espaço da RV. Eu argumento que a RV não constitui, como inúmeros dos seus proponentes acreditam uma quebra radical com os presentes modos de existir.

Particularmente, o desânimo que cerca a RV pode ser observado antecipadamente a muitas das ideologias que servem de base ao capitalismo tardio. Ao afirmar isso, eu examino a sugestão de Robert Markley, onde "o ciberespaço já marcou a competição de valores a respeito de realidade e subjetividade, por esforços políticos precedentes para adaptar e resistir a certas construções da realidade''. Em particular, RV parece ser o médium ideal para articulação de fantasias e ansiedades do sujeito pós-moderno - especialmente o desejo de maestria através do qual a pessoa se torna absoluto ponto de referência para, e criador de, suas próprias experiências. Como a tecnologia da RV promove esse tipo de eulógica é meu foco principal.

O que é particularmente interessante a respeito da literatura na RV é o meio pelas quais muitos comentaristas enfatizam o acrescido potencial para imaginação e criatividade que a RV permite ao indivíduo. A RV é observada em contraste com as tecnologias que anteriormente dominavam a formação social moderna, como o filme, o radio, a televisão, todos os quais seguiram o modelo de um número relativamente pequeno de difusores e uma multidão de receptores passivos. Ela permite ao indivíduo se tornar ativo uma vez mais, e a recuperar aspectos da criatividade, imaginação e interação as quais não eram possíveis nas formas sociais e tecnológicas anteriores. Mark Poster, por exemplo, defende que a RV tem o potencial de "permitir ao participante adentrar mundos imaginários com convincente verossimilhança, liberando imenso potencial para fantasia, descobertas pessoais e construção interior''. Eu gostaria de sugerir que a RV apenas é capaz de capacitar o indivíduo se seu discernimento é lido de modo interno para o mundo externo aos seus parâmetros. Implícito neste argumento está o reconhecimento da importância da preservação das presentes formas de envolvimento universal, modalidades de compromisso as quais sustentam a vida humana e geram atividade criativa, mais do que a limita. Tal reconhecimento permanece desconhecido para muitos que escrevem sobre a RV.

Diferente da aparente passividade engendrada pelas antigas formas de tecnologia a RV permite ao indivíduo se tornar "ativo" através da interação com a tecnologia propriamente. De qualquer forma, nós precisamos reconhecer que nem todas as formas de atividade são as mesmas. No exame de noções de atividade subjetiva proposta pela RV, vale manter em mente a crítica de Martin Heidegger à moderna tecnologia. Heidegger lamenta a insignificante atividade que marca freqüentemente a era tecnológica, afirmando: "Tudo é funcional. Isto é exatamente o que é tão estranho, que tudo é funcional e essa funcionalidade nos dirige mais e mais para promoção dessa funcionalidade''. Como Heidegger, nós precisamos distinguir entre atividade e mera funcionalidade. Muitos proponentes da RV afirmam que ela vai nos "libertar" ao permitir que criemos nossos próprios ambientes. Mas irá a RV livrar-nos das desgraças do presente, come afirma seus defensores, ou irá a atividade tomar o lugar juntamente com a RV provocar em nós mais do que nunca as formas de atividades insignificantes que Heidegger descreveu? A típica declaração sobre a RV é que ela constituirá uma "revelação" que irá nos guiar para uma "liberação da imaginação". Mas nós precisamos perguntar por que o sujeito virtual será mais criativo que se predecessor. Quais são as condições que proverão esse alegado aprimoramento da atividade criativa? A condição fundamental para a RV é o isolamento do mundo que a cerca. O hardware da RV - capacete, luvas e macacão - é desenhado para isolar o usuário completamente da interferência externa. Esse isolamento levou comentaristas a desenvolver duas trajetórias contraditórias para a subjetividade virtual. A primeira e mais comum, é o conceito ingênuo do sujeito virtual que imagina que podemos simplesmente entrar na RV e nos manter imutáveis diante da tecnologia que constrói o mundo virtual. Essa versão considera o sujeito virtual autônomo como um sujeito cujas capacidades criativas apenas são limitadas pela imaginação. Ela tende a contar com a romântica idéia do sujeito criativo, e ignora as mudanças que o sujeito virtual experimenta através do uso da tecnologia de RV. A segunda trajetória é mais sofisticada e argumenta que a RV pode romper os limites do corpóreo e da identidade, e possa assim permitir que transcendamos estruturas capitalistas e patriarcais de dominação. Argumenta- se que as condições da RV podem guiar para a criação de subjetividade ciborgue, permitindo uma resistência mais efetiva aos modelos hegemônicos da presente formação social. Ambas essas trajetórias serão tratadas a seu tempo.

RV como uma utopia substituta

De acordo com muitos dos apoiadores da RV, a criatividade é restrita pelas formas presentes de materialidade. Limitações físicas e sociais restringem a liberdade do sujeito.

Como conseqüência é desejável livrar-se dessas limitações tão cedo quanto possível. A mais óbvia manifestação da plena contaminação do corpo que é completamente alijado pelo descaso maniqueísta ou radicalmente reconstruído de modo que seu campo sensório e perceptivo pode ser regulado. Terence McKenna providencia um típico exemplo dessa utopia baseado na dicotomia do material e do espiritual. Para McKenna, RV é meramente o primeiro passo na "liberação da vida da crisálida da matéria, onde informação pode descolar a si mesma da matéria fonte, e então olhada de trás em um molde fora da modalidade de ser, porque chega a uma dimensão mais elevada''. A capacidade de isolar o usuário de todas as formas de envolvimento se torna então a aparente virtude da RV. Pela primeira vez na história o sujeito é liberto de todos os constrangimentos materiais e lhe são dadas novas possibilidade de liberdade. O sujeito virtual se torna mais poderoso que seu predecessor. Vichael Heim falou das profundas implicações de colocar à parte limitações que "as últimas experiências de RV são uma experiência filosófica provavelmente uma experiência do sublime e do terrível... o ponto final de um mundo virtual é dissolver as limitações do mundo ancorado de modo que nós possamos lastrear - não para fazer a tração desinteressada e sem ponto mas para então podermos explorar essa ancoragem em locais totalmente novos''. Em um momento eu farei exames das implicações de simplesmente levantar a âncora mas é um valor que aponta como a possibilidade de escape simulado do mundo ancorado conduziu à construção da RV como um espaço de utopia substituta. As fantasias utópicas que servem de base para a RV representam um desejo de escapar das condições e problemas do mundo presente mais do que uma tentativa de alterá-las. Aqueles que idealizam os potenciais utópicos da RV tendem a ter um conceito "escasso" do cenário pré-virtual. O mundo é um local de problemas ambientais e sociais, de doença e sofrimento, de restrições físicas em suma, um mundo de limitações opressivas. A RV é valorizada por ser um possibilidade redentora.

Enquanto a consciência ecológica de Benedikt é notável sua construção utópica da RV é representativa de um sonho cibernético: a purgação do "ruído'' em todas as suas formas. Nós precisamos explorar os bloqueios que estão por trás dos desejos de libertar os espaço social das "coisas''. Quais formas de relacionamento irão ser promovidas pelo mundo virtual? Quais modos de subjetividade irão emergir quando nos comunicarmos sem uma presença tangível dos outros e nossa identidade contar primariamente com nossa habilidade de rapidamente nos reinventarmos? O efeito de viver em um mundo de "pura'' informação precisa ser examinado cuidadosamente. Os aspectos utópicos prometidos pelo desenvolvimento da RV facilmente adicionam-se ao mais odioso aspecto da interação pós- moderna: incluindo o desenvolvimento de uma forma de egoísmo tecnológico, ironicamente proposto como um passo adiante na formação de uma nova comunidade igualitária. Por exemplo, Jaron Lanier indica que a experiência da RV é radicalmente privada, onde as marcas de identidade como raça, classe ou sexo se tornam todas invenções. Você pode ser o que ou quem bem entender. A Realidade Virtual é a última ausência de distinções de classe ou raça ou suposta variedade de todas as formas. Contudo, esse rasura da identidade vem acompanhada do custo de desvalorização das ricas experiências subjetivas que resultam das propriedades dessas categorias. A resolução de instabilidades sociais deve sair dessas experiências subjetivas, não através do seu contorno por meio de uma mediação tecnológica da identidade constituída em um nível mais abstrato.

Frederic Jameson apontou que a construção de um mundo privado é uma característica definitiva da abstração da sociedade pós-moderna, onde a privatização do espaço permite o banimento de um pelo outro tanto quando abandonar a apreciação das condições materiais que estão por trás da vida social. É fácil perceber o apelo da RV em seu nível básico. O cenário auto-referente que cria, cumpre o desejo de transcender a fragmentação da esfera social contemporânea. O espaço virtual é construído como um domínio onde todas as formas de experiência subjetiva são ofertadas com a possibilidade de serem novamente encantadas como o sujeito adaptado as suas próprias relações com um novo cenário. Como tal, a RV é claramente uma extensão do processo que Jameson descreve. Ela oferece os meios de curar fragmentações individuais e sociais. De qualquer forma, como nós veremos, a virtual integração de experiências toma uma forma específica, que é mais problemática do que seus defensores reconhecem.

A construção da RV como um espaço redentor, utópico conduz inevitavelmente à criação de uma hierarquia entre sujeitos e cenários virtuais e não-virtuais. O enquadramento reducionista do mundo físico como um limite necessariamente guia para o desejo de transcendê-lo. Como uma hierarquia, talvez isso seja melhor sucintamente capturado na trilogia cyberpunk de William Gibson, onde os personagens que habitam o ciberespaço são privilegiados em relação àqueles que ainda vivem no mundo real de caos e pobreza, que são aqueles que ainda habitam a ''prisão da carne'', Outros defensores da RV ecoam a sensibilidade encontrada no trabalho de Gibson e constroem uma hierarquia similar. Por exemplo, Nicole Stenger escreve com típico abandono: E se a passagem a um novo nível de humanidade atualmente significar a abolição do natural? Ou ainda uma parte dele? Ainda, quais são os efeitos da desvalorização dos antigos modelos de relacionamento humano com o mundo? Se enfatizarmos o trabalho de Gibson por um momento, nós podemos ver que é precisamente o senso de desencanto com o mundo material e finito que cria em seus personagens o desesperado desejo de habitar o ciberespaço. Os personagens de Gibson experimentam o ciberespaço não tanto como um local de criatividade ilimitada, mas como algo semelhante ao vício em drogas. A comparação entre drogas e a RV abunda (apenas pense nos últimos Timothy Leary), mas Gibson é merecedor de citação da relação entre anfetaminas e o ciberespaço.

Dois pontos são extraídos da comparação. O primeiro é que o ciberespaço é viciante especialmente quando se torna o único veículo possível para transcender. O segundo envolve como a experiência do ciberespaço é descrita: o sujeito se relaciona e distancia ao mesmo tempo. Esses adjetivos formam um motivo recorrente no discurso da RV, e sugerem o caminho pelo qual o sujeito interage com a RV.

Enquanto o romance de Gibson é uma tradução ficcional, é importante notar que a composição narcotizante do ciberespaço fez entender de modo competente o inevitável resultado da mediação entre o virtual e o não-virtual. A RV tende a operar não tanto como uma capacitadora do ambiente criativo, mas como um espaço aditivo do desejo. Se a construção do espaço virtual como uma área de plenitude apenas ocorre através da remoção do sujeito dos problemas do mundo real ao invés de os solucionar, qual é o sujeito para mediar o mundo virtual e o mundo de fora? O dilema é apresentado ainda mais agudamente se (espero demonstrar) a afirmação por capacitação criativa na RV é largamente exagerada e deixada em premissas contraditórias em si. A suposição de que a RV é um local de elevada autonomia também facilmente direciona ao desencanto fora do ambiente virtual.

Markley anota que, "enquanto o sujeito é capacitado no ciberespaço para marcar, para criar, para desenhar seu desejo produtivo, quando ele caminha para fora da Realidade Virtual, ele está sem acesso imediato à criatividade que define sua existência e experimenta seu desejo como uma profunda ausência'' Contudo, a resposta não deve ser habitar a RV tanto quanto possível. Ao encontro da liberdade que resulta da habitação da RV vem um enorme custo - um empobrecimento do cenário cultural que permite um alto grau de riqueza, amplitude e mais heterogênea realização das possibilidades humanas em suas expressões manuais, somáticas e intelectuais. Mas é a desvalorização de tais cenários que orienta para a promoção da RV como um espaço utópico. O mundo que existe antes da RV não pode ser visto como um obstáculo histórico a ser abandonado como bagagem inútil Ao contrário, serve como repositório para profundas necessidades humanas e atualmente fornece a base da qual emerge a criatividade. Antes que isso possa ser mostrado, é necessário examinar mais detidamente o tipo de sujeito que opera no ambiente virtual.

O sujeito virtual

É de alguma forma errôneo afirmar que muitos dos defensores da RV simplesmente querem abandonar o corpo. A RV inclui algumas formas de materialização.

Mas essa reconstrução ultimamente permite a RV ser o local onde a corporalidade é negada. Obviamente, alguns defensores da RV argumentam que não precisamos deixar o corpo de todo. Jaron Lanier argumenta que o corpo é uma continuidade, e vai adiante para dizer que os órgãos sensórios são centrais na nossa identidade e definem todo nosso modo de ser. Toda a noção de ultrapassar os sentidos é como arremessar longe o tesouro atual. É por que a RV fornece algumas formas de experiências incorpóreas. É que ela é estimada frente às antigas formas de interação tecnológica. Porque o ciberespaço incorpóreo é capaz de simular melhor a condição de subjetividade que ocorre no mundo real sem as limitações da materialização. Em acréscimo, o aspecto empobrecedor da RV reside precisamente na forma de experiência incorpórea; vôos criativos de fantasia não mais têm lugar meramente na mente, mas são sentidos da mesma forma. Deixando de lado os problemas inerentes a uma crua oposição do corpo e da mente, esses argumentos falham em reconhecer que sensações corpóreas são geradas na RV e tomam um diferente registro. O duplo desejo de escapar do corpo e manter o tesouro marca o local onde é possível examinar a constituição do sujeito virtual e criticar a hipótese do argumento básico para o acréscimo de atividade e criatividade feito messe interesse. A primeira dessas hipóteses diz respeito ao sujeito incorpóreo. Eu quero comparar brevemente os sentidos materializados que residem dentro e fora da RV. Materialização é um processo complexo que dá suporte à nossa relação com o mundo. A reconstituição do corpo vai resultar em uma transformação da experiência subjetiva. Para ilustrar isso, irei brevemente observar o trabalho de Maurice Merleau-Ponty para mostrar como o corpo vivo produz o entendimento de nós mesmos e nosso mundo, e como esse sentido de um corpo vivo é radicalmente reconstituído pela tecnologia da RV.

De acordo com Merleau-Ponty, nosso senso de materialização para o sentido de nós mesmos e constituição do mundo. O corpo vivo fornece o ponto de horizonte e perspectiva que estabelece relações entre mim, outros objetos e outros sujeitos possíveis. Importante para o sentido do corpo vivo é a experiência da mobilidade do corpo. Nem o sujeito nem o mundo podem simplesmente ser posicionados, mas ambos são em lugar de simultaneamente gerados pelo senso de envolvimento corporal com o mundo externo.

Como pode o sentido de um corpo vivo ser recriado na RV? A despeito da contínua segurança de comentaristas numa crença em que materialização e mobilidade podem ser efetivamente simuladas em um ambiente virtual, há diversas diferenças importantes entre a construção de um corpo virtual e a forma de subjetividade incorpórea descrita por Merleau-Ponty. Primeiro, há um pequeno sentido de limite entre o corpo do sujeito virtual e o ambiente. O sujeito pode ( eventualmente o faz) voar e, embora alguém possa agarrar um objeto e experimentar a simulação de resistência em parte cesse objetos, o sujeito pode também caminhar através de parades e para dentro de gravuras, e habitar grandes e pequenos espaços. lsso é visto como uma vantagem, como aponta Rushkoff: a RV providencia acesso a locais que o corpo humano não pode ir, garantindo novas perspectivas a antigos problemas. Talvez, mas isso também altera profundamente o sujeito que opera nessas condições. A forma reconfigurada de materialização não providencia a localização do corpo do sujeito no espaço. Parece haver pouca perspectiva de que o assunto passa adquirir um sentido de imagem corporal - essencial de acordo com Merleau-Ponty para a geração simultânea de sujeito e ambiente. Esse é também o case em Neuromancer, de Gibson (que influenciou tantos desenvolvedores da RV), onde o sujeito virtual encontra um distante descolamento da perspectiva incorpórea. Scott Bukatman aponta que em nenhum momento do romance o sujeito virtual ganha um sentido de situação corpórea o leitor de Neuromancer é deixado na escuridão observando a forma do corpo - o sujeito do ciberespaço nunca examina a si mesmo.

A forma reconstituída da materialização necessária altera o modo de operação subjetiva na RV. Sem um senso definível de perspectiva, os limites entre o eu e o mundo são irrecuperavelmente borrados. O sujeito virtual não encontra resistências, o corpo parece não muito relacionado com o mundo como um receptor passivo no qual a sensação de mediação tecnológica choca. Cathryn Vasseleu notou como o sentido táctil é rearranjado na RV. Sensações táteis não são mais interiorizadas, mas registradas em superfícies externas.

Na RV algumas dimensões do táctil são enfatizadas, outras marginalizadas, sendo observadas como resposta passiva da faculdade do toque. A manifestação da materialização desenha um diferente sentido de si e do mundo. O efeito dessa reconstrução orienta para aquilo que Paul Virilio chamou de dispersão constitutiva, onde desmoronam os limites da percepção em um sistema aberto no qual ninguém pode encontrar um limite objetivo, perceptível. O sujeito virtual se torna um sujeito protético, cujo corpo não mais é localizável no tempo e espaço, com tudo submerge em um campo de sensações externas.

Hayles escreve que a experiência da RV a fim de que quando o corpo tecnologicamente avançado une-se a uma respecta sensória repetida com o simulacro que vive na RAM, é impossível localizar uma fonte original de experiência e sensação. Dito isso, que tipo de atividade se pode ter na RV? Certamente os sujeitos de Gibson são sujeitos protéticos, receptores passivos das sensações que os atravessam. O efeito protético descrito por Gibbon permanece verdadeiro na maioria das formas de mobilidade na RV. David Holmes aponta em outro lugar deste volume que cenas comuns usadas pelo realismo da RV são formas simuladas de transportar corpos como os vôos simulados, as viagers de carro e até mesmo caminhar em uma esteira.

Mais do que capacitar o sujeito, a rasura de um campo constitutivo previamente vivido transforma o sujeito vítima naquilo que Virilio chamou de inércia da velocidade. Para Virilio, o progresso tecnológico promove infinita aceleração, como o sujeito que passa de uma percepção livre do movimento para a tirania do movimento. De forma que a RV cria uma forma muito amável de atividade protética onde a simulação de movimento guia para os efeitos de inércia veloz. O sujeito da RV tende a se tornar, parafraseando Baudrillard, uma mera tela de assimilação de dados. A afirmação do aumento de liberdade na RV torna- se suspeita porque, como Virilio aponta, o campo da liberdade recua com velocidade. E a liberdade precisa de um campo. Quando não houver mais campo, nossas vidas vão ser um terminal, uma máquina com porta que se abrem e fecham. A simulação da materialização cria um sentido largamente distinto do eu e do mundo, que permite a ilusão de autonomia para tornar-se mais concreto. Ainda que essa autonomia venha por um custo. A experiência subjetiva passa agora a ser emoldurada por um professo tecnológico de uma maneira nunca antes imaginada.

RV e criatividade

Muito do discurso a respeito da RV assume que o sujeito vai simplesmente ser capaz de adentrar a RV e ser livre para trabalhar e divertir-se sem sofrer mudanças. A vantagem percebida na RV reside em sua habilidade de simular o mundo real sem nenhuma de suas limitações deixando o sujeito livre para criar. Esse tipo de afirmação ignora os aspectos transformadores que tem a tecnologia sobre o sujeito que adentra seu mundo virtual. Se, como tenho debatido, as condições criadoras do ambiente virtual possibilitam radical alteração do modo de subjetividade que opera aqui, a noção de criatividade do sujeito precisa ser reconsiderada. Quem somos nós para falar de criatividade quando a tecnologia da RV trabalha para reconstruir as experiências fenomenológicas que determinam a subjetividade? Em lugar de habitar um espaço livre da imaginação uma breve olhada na tecnologia de RV revela um modo de subjetividade determinada pela tecnologia na qual opera. O sujeito virtual é, nesse sentido, dito por um caminho não imaginado. Excluído do ambiente material que originalmente fabrica o desejo pela criatividade, pode-se argumentar que qualquer noção de criatividade na RV opera em um registro completamente diferente.

Se nós entendermos a atividade criativa, no sentido mais amplo, derivada de um desejo de transcendência, é possível argumentar que esse tipo de atividade é restrito na RV porque as forças que produzem esse desejo de criar são, por definição, alienadas. Liberto das restrições materiais, do caos, ruído e esforço, a criatividade dentro da RV pode ser caracterizada como criatividade sem trabalho. Eu pretendo mostrar que o processo criativo está atado ao relacionamento do sujeito com o mundo material. Fechado, ou filtrado, os menos desejáveis aspectos do mundo real podem muito bem guiar para um empobrecimento da prática da criatividade.

Em contraste com aqueles que vêem o mundo anterior à RV como limitante isso pode sugerir que atividades significativas derivam do último envolvimento com o mundo.

Francisco Varela argumenta que essa proposta resoluta emerge de uma compreensiva quebra na qual geram-se micro-mundos. Micro-mundos são a constelação de forças materiais que gera um tipo particular de comportamento humano. Eles são histórica e culturalmente constituídos e contribuem para o decreto do ambiente do sujeito. Ações em parte do envolvimento do sujeito incorporando uma correnteza de recorrentes micro- mundos transitórios. Percepção e ação são ambos restritos pelo mundo e decretam o mundo. Varela dá como exemplo um homem que sai para caminhar e perde sua carteira. O mundo desse homem é construído de uma mentira particular - ele está relaxado, aproveitando as redondezas, percebendo o ambiente de uma certa maneira. Subitamente ele percebe que sua carteira sumiu. Ruptura. Um novo fator de formatação emerge. Ele lembra- se de ter deixado a carteira em uma loja. Ele acelera o passo, e dá pouca atenção para o que o cerca. Seus pensamentos estão voltados para chegar na loja sem atraso. Ele está preocupado com a possibilidade de perder dinheiro e seus documentos. Ele pode enxergar a carteira deixada na estante da loja, e se preocupa com o fato dela ainda estar lá ou não. Seu modo de agir foi modificado, em uma mudança correspondente de sua avaliação cognitiva e tonalidade emocional. Varela aponta que essa cognição emerge de uma rica complexidade física relacionada com o mundo. Além disso, a atividade criativa emergiu sem chance de encontros que fazem com que o sujeito escolha entre micro-mundos ou desenvolva novos.

A realidade não pré-existe na forma de representações a serem recobradas pela consciência. Conseqüentemente, micro-mundos não podem ser calculados previamente porque os elementos caóticos fora do sistema trabalham para produzir a ruptura da qual os micro-mundos emergem. Varela compara o processo cognitivo com uma conversa incontrolável, argumentando que a presença desse descontrole permite um momento cognitivo para vir a ser. Isto não pode tomar o lugar de um sistema fechado, entretanto, porque o coração de sua autonomia, a rapidez do agente de seleção de comportamento, é sempre perdido para o sistema cognitivo propriamente. O ruído não é a restrição da criatividade, mas o apoio. Aqui reside a crucial distinção entre o ambiente virtual e o pré- virtual. Para muitos comentaristas, a vantagem da RV é essa, diferente da realidade normal, ela cria um ambiente livre de ruído Nossa consciência pode funcionar como um filtro mas a importante diferença é que o cenário com a qual ela se relaciona não pode ser filtrado previamente. No cenário virtual a chance de operações que geram criatividade é severamente restringida pelas decisões de desenho necessárias para fazer da RV uma ilusão convincente.

Dada a descrição de Varela do processo cognitivo, e o contraste com os cenários planejados da RV, quem somos nós para afirmar que o sujeito virtual de fato se torna mais criativo? Com a fundamental separação do reino material que devine a RV, isso segue o que a habilidade de experimentar uma ruptura criativa é drasticamente reduzida. As capacidades do sensor-motor relacionadas com o mundo são largamente controladas e geradas pela tecnologia que constrói o cenário virtual. A significativa redução de ruído trabalha para reprimir mais do que expandir a decisão de criatividade.

Não podemos argumentar então que a natureza da RV erode a condição que faz a atividade criativa uma significativa experiência transformadora. O espaço da RV reduz assim mesmo da materialização que informa nossa experiência. A alienação fundamental do mundo de relações sociais e físicas convida ao sonho do puro reino da própria presença, mas quelques professo criativo com esse reine tome forma em um registre significativamente distinto. O sujeito opera na RV apenas removendo a si mesmo do processo de trabalho história e forma social. A atração da RV é a professa de renovação; o sujeito pode reinventar a si mesmo e o mundo através de infindáveis narrativas de recriação, nas quais, pela prévia remoção do mundo material, limita suas possibilidades.

De qualquer modo, como Markley aponta, essas narrativas não emergem existencialmente, mas ocorrem preferivelmente como efeitos pesadamente mediados da tecnologia que produz um novo modo de subjetividade. No momento em que a RV é vista como um catalisador da experiência subjetiva, isso afasta qualquer envolvimento com as estruturas prévias de referência geradoras do desejo de criar.

O desejo de umn renovação da atividade criativa cresce assim que o sujeito contemporâneo sente-se distanciado das relações significantes com o mundo. Talvez seja a sedução de novos espaços para habitar que forma a atração da RV. Mas o benefício percebido da RV é derivado da suposição a qual acrescenta mais do que combate a promoção da ratificação da vida. Consistentemente no discurso da RV há uma tendência de desvalorização da atividade humana. A suposição de autonomia da liberdade do sujeito para criar vem apenas por meio da remoção do sujeito desses cenários. A alienação fundamental que a RV oferece distancia ao sujeito das muitas possibilidades de experiências as quais poderiam ser mais resistentes ao processo de modificação das relações do qual ele parcialmente tenta escapar.

RV e o sujeito ciborgue

Nem todos os comentaristas na RV subscrevem o que pode ser chamado de uma versão ingênua da subjetividade virtual - Ingênuo no sentido da maneira complexa com que nos relacionamos com o mundo. Em lugar de enfatizar a RV como um reino de plenitude Mark Poster sugere que a RV pode trabalhar para atrapalhar as antigas e mais hegemônicas condições de formação do sujeito. Ele argumenta que consertando diretamente a realidade, a prática simulada é colocada em um ponto no qual para sempre altera as condições sob as quais a identidade do eu é formada. Mais do que promover um substituto para a liberdade que vem através do distanciamento do sujeito do mundo fora da RV, Poster veria a RV como provedora de formas de experiências subjetivas as quais podem trabalhar para interromper as formas contemporãneas de dominação. Certas formas de experiências virtuais poderiam trabalhar para construir 'uma mais heterogênea semelhança ciborgue subjetiva similar àquela contemplada por Donna Haraway. Poster argumenta que a RV ajuda a criar múltiplas realidades nas quais os fragmentos do sujeito não podem mais ser formados dentro de uma moldura. A mais rígida freqüentemente hegemônica estrutura através da quais as identidades são formadas está rompida por meio das tecnologias semelhantes à RV. A correspondente multiplicação de realidades guia para novas possibilidades de liberdade.

Nós vimos do trabalho de Varela e Merleau-Ponty que subjetividade é um processo embarcado no mundo, que as experiências subjetivas são informadas pelas práticas engajadas internamente pelo sujeito. Ainda que o modo no qual a tecnologia da RV opera e pelos quais é valorizada, é precisamente por remover o sujeito das complexidades das práticas sociais que previamente consituíram a significante experiência da vida real. Esse ponto não sugere que a RV não possa contribuir para a interrupção de certos modos de da formação do sujeito. Mas o processo apenas pode guiar para a emancipação se adotado de uma maneira reflexiva que reconhece a importãncia da constituição de estruturas acontecendo do lado de fora, e antes disso, que são providos para RV. Haraway está completamente alerta para esse proclama e previne tumulto a respeito de perigosas apropriações indevidas de seu trabalho: qualquer movimento transcendental está morto. Esses movimentos holísticos, transcendentais prometem um caminho fora da história, um caminho de participação no truque de Deus. Um caminho de negação da mortalidade.

O problema com muito do discurso da RV é que ele tende a se mover precisamente na direção do transcendantalismo que é alvo do alerta de Haraway. O perigo reside no fato de que a experiência da RV se torne a estrutura dominante através da qual nós entendemos o mundo. Para desejar a renovação da criatividade e a significante atividade é uma coisa, ganhar isso negando a importãncia dos antigos caminhos do ser é totalmente outra. A mediação tecnológica da experiência subjetiva que superficialmente permite ao sujeito maior autonomia (através de mais escolhas) pode desmoronar tudo muito facilmente na subseqüente colonização da vida. As dificuldades com as definições culturais da RV significam que agora, mais do que nunca, nós precisamos preservar as práticas que resistem à reificação e que permitam um largo alcance de experiência subjetivas para se desenvolverem fora da esfera do mero "funcional''.

Plenitude and alienation; the subject of virtual reality. IN Holmes, David. (org.) Virtual politics: identity and community in cyberspace. London: Sage, 1997. Revisado por Fernanda Schneider






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