Feedback e Cibernética: Reimaginando o Corpo
na Era do Ciborg*


David Thomas


Palavras possuem força aterradora
(Colin Cherry, 1980: 68)

O "ciborg", ou "organismo cibernético", representa uma visão radical do que significa ser um humano no mundo ocidental no fim do século XX. Embora a palavra tenha uma origem oficial datada de 1964, quando foi concebida para descrever uma união especial de organismo humano e sistema de máquina, pela última década tem ganho uma certa notoriedade tanto na cultura de filmes populares quanto em círculos acadêmicos especializados. Filmes como Blade Runner (1982), a trilogia Alien, a série O Exterminador do Futuro (Terminator - 1984, 1991), a série Robocop (1987, 1990) e o clássico cult britânico Hardware (1990) apresentam uma visão do ciborg que vai do modelo da pura máquina militar ao modelo do humano, esculpido geneticamente. Trata-se de modelos e simulações geralmente designados para funcionar em mundo hostis, distópicos e futuristas, governados por vários tipos de atividades corporativas ou militares/industriais renegadas, ou pelas conseqüências dessas atividades. De resto modelos de protociborgs benignos podem ser encontrados sob forma de esboço, ainda que menos imaginária mas não menos militarizada, nas revisões da idéia masculinidade exploradas no contexto da mudança de ênfase do programa espacial americano que figura no teste de piloto para astronauta apresentada no best-seller - e no filme nele baseado - de Tom Wolfe, The Right Stuff (1979). Por outro lado, modelos de ciborgs alternativos têm sido explorados numa veia mais especulativa, e de um ponto de vista acadêmico mais fechado, ainda que de uma ótica de oposição, na meditação seminal de Donna Haraway, "A ciborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century".

O sucesso dos filmes de ciborg e a influência do manifesto de Haraway sobre o tema sugerem que esta palavra tem funcionado de algum modo através do anos 80 como uma palavra-chave, no sentido de Raymond William. Isto é, "palavras significantemente limitadoras em certas atividades e suas interpretações" (Williams, 1983:15)1. Existem, porém, várias outras palavras que pavimentaram o caminho para falarmos no "ciborg" e seu modo "híbrido" específico de reimaginar o corpo humano sob o signo da máquina. Dentre essas palavras, algumas das quais existiram durante décadas, outras por vários séculos, incluem-se "autômato", "automação" e "automático", "andróide" e "robô"; outras, como "biônico", apareceram por volta da mesma época em que o termo "ciborg" foi concebido.

Mais tarde, apresentaram-nos uma outra palavra, ciberespaço, também conhecida como "realidade virtual", que já começara a circular nos discursos populares e acadêmicos sobre o futuro do corpo humano, freqüentemente na companhia da palavra "ciborg" ou suas imagens. Seja com o disfarce de "ciberespaço", uma palavra inicialmente concebida por William Gibson em seu premiado romance de ficção cientifica, Neuromancer (1984), ou sob a forma de "realidade virtual", a idéia de um novo modo digital computadorizado articulando e, sem dúvida, reimaginando o corpo humano tem sido explorado em romances, incluindo o Count Zero (1986) e Mona Lisa Overdrive (1988), ambos do próprio Gibson; filmes (como Brainstorm [1983] e The Lawnmover Man [1992]); bem como numa grande quantidade de textos acadêmicos e populares2.

Por isso, não é difícil de imaginar que palavras como "autômato", "automação", "automático", "robô", "biônico", "ciborg" e "ciberespaço" podem constituir um ajuntamento williamsiano de palavras-chave, na medida em que elas formem um "conjunto de… palavras e referências inter-relacionadas" (1983: 22), que trama os novos limiares em transmutação da história do corpo humano. Com o aparecimento de cada nova palavra, um novo limiar é atravessado na percepção e construção social do corpo humano, nas concepções do orgânico e do inorgânico, do corpo e da tecnologia, do humano e do não-humano; e, sem dúvida, das máquinas elas mesmas, na medida em que essas também possam "ser consideradas como órgãos da espécie humana" (Canguilhem, 1992:55).

Há dois caminhos principais para explorar os limiares mais recentes do ciborg e da realidade virtual que surgem na história da interface corpo/máquina. O primeiro é através da palavra cibernética. Embora não fosse uma palavra nova quando foi introduzida em 1947, "cibernética" foi considerado um neologismo que melhor descrevia uma nova ciência interdisciplinar de controle e de comunicação. A reconceituação pode, nesse caso, ser determinada através das razões dadas pela escolha desta palavra em particular, os significados atribuídos a ela e, finalmente, seus poderes evocativos como uma ferramenta analógica.

O segundo caminho para explorar a reconceituação do corpo humano é traçar a história subseqüente da cibernética e, em particular, seus impactos sobre como pesquisadores reimaginaram a interface humano/máquina no princípio dos anos 60, quando a palavra "ciborg" foi cunhada. A partir daí, pode-se traçar as reverberações do impacto inicial da cibernética como palavra e disciplina "universal" (Bowker, 1993), chegando até a metade final dos anos 80 e os ciborgs de oposição socialista-feministas de Haraway. Finalmente, também há a questão da tecnologia da realidade virtual ou ciberespaço, que precisamos tratar, ainda que brevemente, na medida em que representa o lugar em potencial e, como tal, a promessa mais recente e talvez a interface mais essencial do ciborg, do ponto de vista de formas mais novas e mais desenvolvidas dos seus sistemas interativos essenciais.3

 



Identidade em Modelo: Norbert Wiener, Cibernética e o Autômato do Século XX

Norbert Wiener, uma figura fundadora da ciência da cibernética, fornece um útil panorama das diferentes fases do desenvolvimento dos automata. Sua periodização é de interesse por causa do foco sobre as mudanças na força motivacional e a maneira em que essas mudanças estão relacionadas a uma história paralela do corpo. No seu manifesto clássico de 1948 sobre uma nova ciência de cibernética, Cybernetics: or Control e Communication in the Animal and the Machine¸ Wiener apresentava a história dos automata, dividida em quatro estágios: primeiro, uma era mítica dos Golens; depois, a era dos relógios (séculos XVII e XVIII); em seguida, a era do vapor, originador do mecanismo governamental propriamente dito (fim do século XVIII e século XIX); e, finalmente, a era da comunicação e controle, uma era marcada por uma mudança da engenharia do poder para a engenharia da comunicação; em outras palavras, da "economia da energia" para uma economia enraizada na "reprodução acurada de um sinal" (Wiener, 1948a:51, 50).

Wiener percebeu, por outro lado, que estes estágios geraram quatro modelos do corpo humano: o corpo maleável, mágico, figura de argila; o corpo funcional, como um mecanismo de relógio; o corpo como uma "máquina de esquentar glorificada, queimadora de algum combustível, além dos glicídios dos músculos"; e, mais recentemente, o corpo como um sistema eletrônico (Wiener, 1948a:51). A periodização em duas etapas de Wiener é significativa porque revela um alerta, dado por um dos principais fundadores da cibernética, para as importantes fases disciplinares ocorridas na história maquinária do corpo ocidental. Também é significativa porque chama a atenção para as fases paralelas na reimaginação das funções do corpo como elemento fundamental em uma cultura maquinística.

Enquanto o século XIX se caracterizava por um corpo engenheirado, considerado como "uma ramificação do poder engenheirante", um modelo cujas influências se estenderam bem fundo no século XX, Wiener argumentou (1948b:15) que "nós estamos agora nos apercebendo que o corpo está muito longe de ser um sistema conservador, e que o poder disponível a ele é muito menos limitado do que foi formalmente acreditado". No lugar do modelo do século XIX, ele sugeriu que

nós estamos começando a ver que importantes elementos como os neurônios - as unidades dos complexos nervosos dos nossos corpos - fazem muito de seu trabalho sob as mesmas condições que os tubos de vácuo, que seus poderes relativamente pequenos são alimentados de fora pela circulação do corpo e que o medidor que é mais essencial para descrever suas funções não é o de um tipo de energia (1948b:15)

Em lugar disso, a cibernética propôs que o corpo humano fosse concebido como uma rede de comunicações cujo sucesso operacional está baseado na "reprodução acurada de um sinal" (1948b:15).

Para Wiener, escrevendo no fim dos anos 40, os "novos estudos dos automata, seja em metal ou de carne, [era] um ramo da engenharia de comunicações, e suas noções básicas [eram] aquelas de mensagem, quantidade de perturbações ou 'ruído'… quantidade de infomações, técnica de codificação, e por aí em diante" (1948a: 54). Ele argumentava que, "nessa teoria, nós lidamos com automata efetivamente ligados ao mundo exterior, não meramente pelos seus fluxos de energias, seus metabolismos, mas também por um fluxo de impressões, de mensagens recebidas e das ações de mensagens saindo [do sistema em questão]"(1948a: 54). Este novo jeito de conceber os automata foi, na teoria e na prática, ligado a um novo tipo de mecanismo de feedback: o servomecanismo.4 Wiener chegou ao ponto de argüir que "a era atual é verdadeiramente a era dos servo-mecanismos, da mesma forma que o século dezenove foi a era da máquina a vapor ou o século dezoito a era do relógio" (Wiener 1948a: 55).

A diferença entre servomecanismos e as primeiras formas de automata, cujo funcionamento era similar ao dos relógios, ou mesmo dos sistemas de maquinaria automática controlados por comandos de motor a vapor, não reside na sua lógica operacional elementar (já que os autômatos anteriores eram também governados por uma lógica de feedback), mas mais nas suas habilidades em penetrar, através de uma vasta variedade de formas, no social, ao invés da indústria ou do parque industrial de uma nação.5 Ao invés de estar limitado a um mecanismo tipo relógio ou engrenagens primárias tais como engenhos a vapor, os novos servomecanismos foram desenhados para servirem a um vasto número de aplicações. Essas incluíam "termostatos, giro-bússulas automáticas para sistemas de pilotagem em naves, mísseis de auto-propulsão - especializados em rastrear seus alvos -, sistemas de controle de fogo anti-aéreo, máquinas de queimar óleo controladas automaticamente, computadores ultra-rápidos e outros do mesmo gênero" (1948a: 55). Embora Wiener tenha aceito que artefatos dessa espécie, "sem dúvida, foram utilizados muito antes da guerra, incluindo o velho controlador das máquinas a vapor", ele todavia apontou que "a grande mecanização da segunda guerra mundial os fez se darem conta de sua existência", profetizando, "que a necessidade de lidar com a energia extremamente perigosa do átomo provavelmente vai levá-los a um ponto de desenvolvimento ainda mais alto" (1948a: 55). Desse modo, o que o feedback e outras invenções como o tubo de vácuo "tornaram possíveis não [foi] o desenho esporádico de mecanismos automáticos individuais, mas uma política geral para a construção de mecanismos automáticos dos mais variados tipos." Wiener chegou ao ponto de argüir que tais desenvolvimentos, em conjunto com um "novo tratamento teórico das comunicações, que toma em suas mãos todas as possibilidades de cognição das possibilidades de comunicação entre máquina e máquina,… torna viável uma nova era de automatização" (Wiener, 1954: 153).

Como Wiener bem apontou, o novo estudo dos autômatos estava emergindo juntamente com uma nova ciência de comunicações e controle - a Cibernética: uma ciência que propôs uma visão completamente nova do corpo humano e de suas relações com o mundo orgânico e com o mundo das máquinas. Um novo conjunto de analogias estava não só estabelecendo conexões, através de uma série de correspondências formais, entre o corpo humano, concebido como um sistema nervoso, e a máquina, concebida como um organismo comunicador, mas também estava projetando os meios para a ligação automática de máquina para máquina por meio de uma mesma linguagem de comunicação.

Como de costume, Wiener nos dá uma boa representação do poder e da elegância austera do pensamento analógico subjacente á cibernética e seu novo ramo de antropomorfismo quando argumentou que:

Embora seja impossível fazer qualquer declaração universal a respeito dos automata capaz de rivalizar com as permitidas por um campo que está crescendo rapidamente, como é este da automatização, há algumas características gerais dessas máquinas tal como realmente existem que eu gostaria de enfatizar. Uma é que elas são máquinas para efetuarem alguma tarefa ou definições de tarefas, e por isso devem possuir órgãos operacionais (análogos aos braços e pernas dos seres humanos) com os quais tais tarefas podem ser efetuadas. O segundo ponto é que elas devem estar en rapport com o mundo externo por órgãos sensoriais, tais como células fotoelétricas e termômetros, que não apenas dizem a elas quais são as circunstâncias existentes, mas permitem que elas gravem as performance ou não-performance das suas próprias tarefas. Esta última função… é chamada de feedback, a propriedade de estar habilitado a ajustar as futuras condutas as performances passadas. O feedback pode ser tão simples quanto a de um simples reflexo, ou pode ser um feedback de ordem mais complexa, no qual a experiência passada é usada não apenas para regular movimentos específicos, mas também políticas de comportamento inteiras. Tal política de feedback pode aparentar ser, por um lado, como freqüentemente o faz, o que nós conhecemos como reflexo condicionado e, de outro, como aprendizado.

Para todas essas formas de comportamento, e particularmente para os mais complicados, nós devemos ser os órgãos centrais de decisão, os que determinam o que a máquina deve fazer a seguir, com base na base de informação retroalimentada que ela guarda por meios análogos aos da memória de um organismo vivo. (Wiener, 1954: 32-3)

O autômato cibernético wieneriano foi concebido como uma máquina ativa, hierarquicamente governada e orientada para objetivos, que foi definida através de uma certa lógica de tempo/espaço - o ajuste da conduta futura através de uma avaliação comparativa de ações passadas - para atuar em seu meio. Como tal marcou um novo limiar de inteligência, que se estendeu para além daquele que havia sido previamente estabelecido na base dos sistemas de máquinas automáticos fabris.

O poder particular do raciocínio analógico da cibernética residiu no fato de que ela estava habilitada a redefinir o conceito de "vida" propriamente dito, a fim de colocá-lo no mesmo nível das características operacionais de um autômato-cibernético. Como Wiener notou, nesta conexão, "agora que certas analogias de comportamento estão sendo observadas entre máquina e o organismo vivo, o problema em saber se a máquina está viva ou não, para nosso interesse, é semântico, e nós estamos em liberdade para respondê-lo de um jeito ou outro como melhor nos convier" (1954:32).

Se nós desejarmos usar a palavra "vida" para cobrir todos os fenômenos que nadam localmente contra a correnteza de crescente entropia, nós estamos em liberdade de fazê-lo. Porém, nós devemos incluir vários fenômenos astronômicos que possuem apenas uma vaga similaridade com a vida tal como nós ordinariamente a conhecemos. (Wiener, 1954: 32)

Ao invés disso, porém, o autor defendeu um ponto de vista diferente e muito mais radical, argumentando que era

melhor evitar todas perguntas que suplicam epítetos tais como "vida", "alma", "vitalismo" e similares, e dizer meramente que, em relação às máquinas, não há razão pela qual elas não podem lembrar seres humanos capazes de representar pequenas quantidades de entropia decrescente numa estrutura na qual a grande entropia tende a aumentar (1954: 32)

A exigência pode ter contornado a espinhosa questão sobre a "vida" mas foi bem além do nível abstrato no qual foi proposta. Implicou em um novo modelo sistêmico para a estrutura dos organismos, que estava segregada desde o falecimento, no século XX, de uma visão mecanicista ou taxonômica simples da organização de plantas ou animais. No lugar delas, passou-se a conceber o organismo como "um sistema multinível de complexidade elaborada, apoiado em várias dimensões, para assim manter sua estabilidade metabólica em face de mudanças no meio, e equipado com um repertório de comportamentos capazes de garantir a coleta necessária de energia, materiais, etc." (Pratt, 1987: 180). Em outras palavras, passou-se a conceber o organismo como se fosse estruturado de acordo com "sofisticados sistemas de controle" e com seu cérebro servindo como um "coordenador superior" (Pratt, 1987: 180).

Tal modelo de um organismo estruturado de acordo com um conjunto definido de mecanismos de controle também foi adotado pelos ciberneticistas (Pratt, 1987:190, 194-6). De fato, poder-se-ia argumentar que a cibernética operacionalizou a questão da "vida", substituindo o conceito de organismo de "biológico" para "construído" e que, deste modo efetivamente transformou-o em um problema de equipamento pesado (hardwire). De acordo com seus novos parâmetros existenciais, o autômato cibernético wieneriano era "orgânico", ou "vivo", precisamente porque estava operacionalmente ativo; isto é, estava "efetivamente ligado ao mundo exterior, não meramente por [seus] fluxos de energia, [seus] metabolismos, mas também por um fluxo de impressões, de mensagens de entrada e da ação de mensagens de saída [do sistema]". A lógica da analogia cibernética garantia, em outras palavras, que a equivalência funcional fosse estabelecida ao nível dos órgãos sensoriais (Wiener, 1948a: 54), já que estes eram os meios principais pelos quais um organismo poderia manter uma existência estável, isto é, sistêmica, em um dado meio através da troca de informações.

Ainda outra maneira de entender a natureza orgânica do autômato cibernético era através da temporalidade comum que ele compartilhava com o mundo dos organismos "vivos". Depois de notar que "a relação desses mecanismos [os novos automata] com tempo demandava estudo cuidadoso", Wiener apontou:

É bem claro que a relação entrada-saída (input-output) é consecutiva no tempo, e envolve uma determinada ordem de passado-futuro. O que talvez não seja tão claro é que a teoria dos automata sensitivos é estatística. Nem sempre estamos interessados na performance de uma máquina de comunicação apenas por razões de transmissão. Para funcionar adequadamente ela deve ter uma performance satisfatória para toda uma classe de entradas. E isso significa uma performance estatisticamente satisfatória para a classe de entradas que ela está estatisticamente preparada para receber. Desse modo sua teoria pertence aos mecanismos estatísticos gibbsianos ao invés da mecânica clássica newtoniana (Wiener, 1948a: 55)

Baseado nessas informações é que Wiener argumentou que "o autômato moderno existe como organismo vivo na mesma variação do tempo bergsoniano. Conseqüentemente não há razão nas considerações de Bergson segundo as quais o modo essencial de funcionamento do organismo vivo não deveria ser o mesmo daquele de um autômato desse tipo"(1948a: 56). Como esse argumento sugere, não era mais pois uma questão de máquinas funcionando como organismos, ou de organismos funcionando como máquinas. Ao invés disso, máquinas e organismos eram para ser considerados como dois estados ou estágios funcionais equivalentes de uma mesma organização cibernética.

O autômato cibernético wieneriano marca um importante limiar na história do corpo humano. Por volta do fim dos anos 40 as confusões nascidas das imagens que então competiam para caracterizar o corpo humano como um organismo pensante foram eficazmente exorcizadas através de uma mudança antimimética na história dos automata. Talvez a maior realização da cibernética nesta direção foi a de consumar a transformação que a Revolução Industrial havia inaugurado com o caso da maquinaria automática. O espelhamento do corpo humano pelo autômato da cibernética não foi estabelecido pela base da mímica convencional, mas muito mais como um caso dos andróides e suas partes internas, seguindo o entendimento comum das similaridades que existirem entre os mecanismos de controle e as organizações comunicacionais dos sistemas maquinísticos e dos organismos vivos. Como resultado, o princípio de incorporação da cibernética estendeu-se bem além dos primeiros motores e fábricas, para se infiltrar nos menores tendões das tecnologias capazes de acomodar um servomecanismo.

Anteriormente, os automata miméticos tinha provido modelos mecânicos visuais para se pensar a natureza do organismo humano e suas identidades culturais, políticas e sociais. Com o aparecimento do autômato cibernético, o sociológico da identidade humana foi transformado em um produto abstrato da organização cibernética. No caso dos robôs pré-cibernéticos de Capek nos anos 20, por exemplo, a identidade era caracterizada em última instância com base nas categorias tradicionais, visando à representação de diferenças nos produtos das organizações industriais e sociais, de categorias tais como marcas de fábrica, cores e linguagem. Resumindo, era uma questão de National & Ethnic Robots (Capek e Capek, 1961: 57). A cibernética, ao contrário, propôs uma solução radicalmente diferente para a natureza fundamental do organismo humano, sugerindo que seu ser deve ser reduzido a um padrão6 organizacional, cuja lógica operacional também seja coestensiva com outros organismos e tipos de sistemas de máquinas. Como Wiener enfatizou no começo do seu penúltimo capítulo sobre "Organização como a Mensagem", em The Human Use of Human Beigns:

A metáfora para a qual eu devoto este capítulo é uma em que o organismo é visto como mensagem. Organismo é oposto ao caos, à desintegração, à morte, como a mensagem é ao ruído. Para descrever um organismo, nós não tentamos especificar cada molécula nele, catalogá-lo pedacinho por pedacinho, mas sim responder a certas perguntas que revelem seu padrão: um padrão que é mais significativo e menos provável quando o organismo se torna, por assim dizer, mais plenamente um organismo (Wiener, 1954:95)

Máquina e organismo humano exibiam pois os sinais de vida até então dados como distintos, cada um trabalhando para aumentar seu nível de organização. O processo de equivalência ou analogia funcional desconheceria limites, já que também era definido em termos de abstração: organização (baseada em feedbacks) e padrão (uma conseqüência de neguentropia). Por volta do começo dos anos 60, a influência desse modelo cibernético atingiria proporções místicas nos escritos de Marshall McLuhan, quando ele propôs que uma "tradução atual de nossas vidas inteiras na forma espiritual da informação" poderia "fazer do globo inteiro, e da família humana, um consciência única" (McLuhan, 1964: 67). Como um texto introdutório sobre cibernética defenderia mais tarde: "O feedback é universal" (Porter, 1969: 8).

 



Cibernética: Uma Palavra para Ligar Espaço e Tempo, Uma Palavra tornar Equivalentes Organismos Vivos e Sistemas de Máquinas

A Teoria das Comunicações fornece uma resposta para a questão de como palavras ligam espaço e tempo a serviço de novas concepções de ser humano e de corpo humano. Acontece assim na medida em que isso sugere que organismos humanos e também sistemas de máquinas são ligados através de uma mudança de sinais no tempo, como discursos ou música, e de sinais no espaço, como pinturas, inscrições em pedras, cartões perfurados e pinturas' (Cherry, 1980:125; ênfase no original). Mas, palavras, escritas e faladas, podem ligar tempo e espaço, corpos humanos e máquinas de outras formas. Elas podem, por exemplo, ligar corpos e máquinas na forma de laços de feedback, baseados etimologicamente, que governam ações presentes e futuras de acordo com um conjunto de significados passados (por exemplo, um dado campo de conhecimento). Portanto, deste ponto de vista, palavras podem servir como meio para instituir uma história que é operacionalizada etimologicamente em um presente, em um dado contexto físico (por exemplo, espacial). Na verdade, a palavra cibernética fornece um bom exemplo de como palavras podem funcionar como máquinas de feedback e, acima de tudo, como palavras devem servir como uma poderosa forma de passagem entre imagens radicalmente diferentes do organismo humano.

A palavra "cibernética" foi cunhada em 1947 para descrever um nova ciência, que unia teoria das comunicações, uma teoria de controle de mecanismos estatísticos, sob o patrocínio de um conjunto de objetivos disciplinares. Este mito de origem está presente em uma famosa passagem de Cybernetics: or Control and Communication in the Animal and Machine:

"Há aproximadamente quatro anos atrás (1943), o grupo de cientistas do Dr. Rosenblueth e eu [Norbert Wiener] tínhamos nos conscientizados da unidade essencial do conjunto de problemas centrados na comunicação, no controle e nos mecanismos estatísticos, quer na máquina, quer nos tecidos vivos. Por outro lado, nós enfrentávamos sérias dificuldades com a falta de unidade da literatura acerca desses problemas e com a ausência de uma terminologia comum, ou ainda de um único nome para o campo. Após muitas considerações, concluímos que toda a terminologia existente tem um forte desvio para um ou outro lado, a fim de servir ao desenvolvimento futuro de um campo da forma como deveria. E, como ocorre tão freqüentemente com os cientistas, nós fomos forçados a designar, finalmente, uma expressão artificial de raiz grega para preencher a lacuna. Nós decidimos chamar todo o campo de controle e de teoria da comunicação, seja na máquina ou no animal, pelo nome de "cibernética", que deriva do grego timoneiro ou [CARACTERES GREGOS - ver página de índice do volume]. Escolhendo este termo, nós queríamos reconhecer que o primeiro material significativo sobre mecanismos de feedback é um artigo sobre controle, que foi publicado por Clarck Maxwell em 1868, e que a palavra controle é derivada de uma corrupção do Latim da palavra [IDEM]. Nós também queríamos nos referir ao fato que os engenhos de controle de um navio são, na realidade, uma das melhores e mais recentes formas desenvolvidas de mecanismo de feedback. (Wiener, 1948 a : 19, ênfases no original).

Embora Wiener admitisse que o termo cibernética não datava de antes do verão de 1947, ele argumentou que "nós devemos achar conveniência em usar o termo para referir épocas recentes do desenvolvimento deste campo"(1948:19)7.

Na célebre passagem acima, Wiener apresentou de todo modo a raison d'être de uma nova ciência universal, uma ciência cuja coerência da interdisciplinaridade residia na capacidade de ligar diferentes campos de conhecimento, associados com sistemas de máquinas e organismos vivos, de acordo com um quadro textual dividido (um corpo comum de textos); com um quadro terminologicamente uniforme de referência; e, finalmente, com um único nome, que poderia ser usado para unificar o campo em termos de uma genealogia singular (Maxwell) e uma mesma metáfora (o mecanismo de feedback e sua imagem facilmente acessível do timoneiro). Note-se, além disso, que a expressão "cibernética", e a nova ciência da interdisciplinaridade a que ela se referia, eram consideradas criações modernas ocidentais, ambas em termos de suas figuras fundadoras (sejam Maxwell ou Wiener e seus colegas) e seu quadro de referência comum, inspirado no Novo Mundo (América do Norte).8

Como Wiener claramente admitiu, a escolha da palavra cibernética foi o resultado de um cuidadoso exercício etimológico. Logo, não surpreende que a palavra tenha incorporado uma noção coerente de espaço e tempo, uma identidade de conhecimento e uma identidade disciplinar, na medida que abrangia a história passada dos mecanismos de feedback. Isso tornou coerente um conjunto de problemas e inter-relações, projetando um futuro caminho de desenvolvimento, sob o patrocínio do fantasma do timoneiro. O progressivo desdobramento deste caminho, e acima de tudo da sociedade (também concebida como um organismo cibernético)9, foi garantido graças a essa metáfora de origem (o mecanismo de feedback) e a sua habilidade em 'ajustar a conduta futura pelo desempenho anterior' (Wiener, 1954:33). Mas palavras também podem operar em um registro diferente, fora de um limiar particular de controle e compreensão: elas podem funcionar como limiares de percepções na medida em que abrem e revelam um mundo paralelo que dá significado a seus papéis e funções de ligar espaço e tempo. No caso da cibernética, este outro mundo foi criado de forma dupla.

Em primeiro lugar, o significado e etimologia de cibernética puderam funcionar tanto como mapa, quanto como veículo para reproduzir e propagar uma visão de mundo científica universal e interdisciplinar. Vinte anos após a publicação de Cybernetics: or Control and Communication in the Animal and the Machine, encontra-se, por exemplo, no conteúdo da edição especial de 1968 do Studio International, dedicada à exposição de 'Cybernetic Serendipity', no Instituto de Artes Contemporâneas de Londres, uma definição simples e elegante da ciência interdisciplinar proposta por Wiener: Cibernética - 'uma ciência de controle e de comunicação em máquinas eletrônicas complexas, como computadores e o cérebro humano'. Esta definição, como foi posteriormente reconhecido, derivou da legenda do primeiro livro de Wiener sobre cibernética.

Ambas, palavra e definição, serviram como introdução para um novo tipo de prática de arte tecnológica interdisciplinar, cujos poderes de visão e criação totalmente abrangentes foram expostos para que todos vissem, em exposição e em catálogo, a culminação de um projeto de três anos que abrangia 'computadores, cibernética, eletrônica, música, arte, poesia, máquinas e também o problema de como apresentar essa mistura híbrida'. O projeto também registrava os efeitos da abertura dos domínios da arte para outras práticas, como as do 'engenheiro, matemático ou arquiteto', cujos produtos não eram mais distingüíveis em bases disciplinares individuais (Reichardt, 1968:5).

'Cybernetic Serendipity' era, enfim, fruto de uma visão de mundo cibernética. Entretanto, a definição também pode ser vista como derivando de uma perspectiva inadequadamente diferente . Se a exibição e seus catálogos foram bem sucedidos em suas tentativas de "apresentar uma área de atividade na qual os artistas manifestam seu envolvimento com a ciência, e o envolvimento dos cientistas com as artes", e se ambos são bem sucedidos ao mostrar "as ligações entre os sistemas causais empregados por artistas, compositores e poetas, e aqueles envolvidos com fazer e usar um instrumento cibernético"(Reichardt, 1968:5), então eles o fizeram sob o patrocínio de uma definição que foi decididamente binária em sua lógica espacial e temporal. Não somente controle e comunicação foram unidos aos computadores e ao sistema nervoso humano de acordo com uma lógica binária duplamente articulada, mas também seu conjunto de relacionamentos foi apresentado de uma forma que espelhava, de maneira universalista e trans-histórica, o ponto de vista articulado, primeiramente apresentado no subtítulo do livro de Wiener de 1948: Control and Communication in the Animal and the Machine (ênfases do autor). Em outras palavras, embora a definição ligasse os espaços separados do computador e do sistema nervoso humano, acabou por ligar também uma exposição britânica de arte em 1968 com um texto encontrado sobre cibernética de 1948, de uma maneira que sugere a presença de um laço fantasmagórico de feedback - e isso a despeito das transformações conceituais produzidas pela migração da cibernética através das fronteiras geográficas10.

Dessa forma, a presença legítima da cibernética wieneriana como um texto de origem e de ação preferencial de cunho universalista, no contexto de uma importante exposição britânica de arte, serviu para abrir, como que por mágica (mas, na realidade de acordo com uma lógica de feedback), um conjunto de passagens entre domínios disciplinares, máquinas e sistemas biológicos e, talvez mais significativamente, consciência e criatividade.

A segunda forma de como uma palavra pode revelar todo um mundo paralelo capaz de dar sentido a seu papel de ligar espaço e tempo é através de uma série de analogias e de metáforas interconectadas que se legitimam através do nome. Nesse caso, a palavra opera à distância, como no caso da metáfora de Wiener do organismo como mensagem (1954:95), ou sua exploração da analogia funcional entre 'máquinas automáticas e .... o sistema nervoso humano'(1948b:14), que foi validada por um nome encontrado, pelo domínio conceitual e pela a prática interdisciplinar aos quais ela se referiu. Visto que a cibernética foi concebida como uma prática interdisciplinar que unia um passado (Maxwell) a um futuro articulado através de ações fictícias de um timoneiro (o duplo fantasma de Wiener?), cuja lógica operacional era aquela dos mecanismos de feedback, e na medida em que os sistemas de controles cibernéticos eram vistos como capazes de unir comunicações em animais e máquinas de acordo com a mesma lógica e prática, estabeleceu-se importante etapa em um processo excepcionalmente poderoso de remapeamento e de reimaginação de ligações do corpo humano.

Correspondências, analogias e metáforas em série foram usadas para unir diferentes domínios de conhecimento, de acordo com uma nova visão universal ou 'uma nova economia das ciências', cujo ápice não deveria ser mais encontrado, como no passado, na física (Bowker, 1993:117, 118-119)11. Novos termos de referência tais como feedback, mensagem e ruído funcionaram para reduzir campos heterogêneos, tais como engenharia telefônica e o sistema nervoso do corpo, o computador analógico e o cérebro humano, a um ponto de vista comum originado no controle e na teoria da comunicação e em suas práticas de engenharia. Como um comentarista notou posteriormente: 'as idéias de feedback e de informação forneceram um quadro de referências para observar um amplo espectro de situações, da mesma forma como as idéias de evolução, de relativismo, de método axiomático e de operacionalismo'(Simon, 1981:194). De fato, a explosão das imagens do ciborg ou do homem-máquina em recentes filmes de ficção científica americanos são testemunho da contínua influência de um modelo cibernético, embora um modelo visual mais frouxo e especulativo, nos padrões do desenvolvimento humano12.

Por outro lado, não havia garantias de que a adoção de uma dada metáfora ou analogia conduziria automaticamente a uma revolução no pensamento e na percepção humana. Se feedback e informação pudessem fornecer um quadro comum de referência, então essa correspondência poderia ter sido obtida através de uma simplificação das complexidades existentes de maneira radical e, em última instância, destrutiva. Como Hebert A. Simon apontou, "metáfora e analogia podem ser úteis ou podem ser enganosas. Tudo depende se as similaridades capturadas pela metáfora são significativas ou superficiais" (Simon, 1981:193). Além disso, Colin Cherry, outra liderança no campo da teoria das comunicações, sugeriu, em sua crítica à analogia cérebro/computador e a outras analogias similares (Cherry, 1980:301-4), que o uso proveitoso de analogias é também determinado por um foco apropriado e por um limiar de visionalização. Uma analogia ou metáfora que é empurrada para muito longe poderia mostrar-se tão prejudicial quanto falsa ou, pelo menos, como uma analogia superficial.

Na verdade, o último feito do sistema analógico cibernético baseou-se no ponto de vista adotado em consideração à estrutura mecânica. Cherry argumentou, por exemplo, que "os primeiros inventos foram muito estorvados pela inabilidade em dissociar estruturas mecânicas da forma animal" (Cherry, 1980:59). Desse modo, no caso do cérebro, "não é a máquina que é mecanicamente análoga ao cérebro, mas antes a operação da máquina aliada às instruções dadas a ela" (Cherry, 1980:57). O que estava em questão, como Cherry notou com aprovação em conexão com o uso do pensamento analógico por Wiener, era uma distinção fundamental entre analogias e mimeses funcionais (Cherry, 1980:57,58). Trata-se de uma distinção que foi formatada quando o "mais recente estudo do autômato" foi reduzido a um "ramo das engenharias da comunicação" (Wiener, 1948b:15). Dessa forma, as objeções cherrynianas às extensões populares da analogia entre cérebro e computador (com sua propensão a privilegiar modelos animísticos), assim como os esforços que, de sua parte, obscureceram e simplificaram o trabalho do cérebro (dando margem a pseudo-questões matriciais, como a de se "uma máquina pode pensar?" [Cherry, 1980:246] ), foram produto de uma perspectiva disciplinar particular, que procurava livrar a prática científica dos resíduos antropomórficos.

Os poderes de ligação de metáforas e analogias poderiam, como essas críticas sugerem, trabalhar pois em ambas as direções. Elas poderiam criar campos para a investigação ou poderiam apenas freiá-la, através da sedução, da magia projetada pelas imagens ou relações simples, claras e elegantes, como no caso daquela do computador como mente mas também daquela que vê a mente como analogia do computador.

Ampliando a extensão do campo das investigações sob o aspecto semântico, a cibernética não funcionou apenas como uma palavra-chave, no sentido dado ao termo por Williams: ela também serviu como um poderoso feedback "espaço-temporal"13, que pôde operar entre o corpo humano e o mundo das máquinas. O comércio de idéias através dessa espécie de cronotopia foi facilitado pelo uso de um grupo de palavras técnicas, que mapearam uma arquitetura de comunicação dentro, através e por meio dos mundos das máquinas e dos organismos vivos. Por exemplo, se a homeostase regulava um ambiente cibernético interno, então o feedback regulava o relacionamento entre ambientes 'internos' e 'externos' (Simon, 1981:9) de acordo com um conceito de informação concebido simplesmente como "um nome para o conteúdo do que é trocado com o mundo externo, tal como nós a ele nos ajustamos, e capaz de tornar mais fácil nossa adaptação ao mesmo" (Wiener, 1954:17).

Porém se, como nota o autor, "onde vão a palavra e o poder de percepção de um homem", nesse ponto "seu controle e, num certo sentido, sua existência física, também são levados" (Wiener, 1954:97), então a palavra cibernética não somente serviu para estender sua presença como (co-)fundador desse novo campo mas, de modo ainda mais importante, serviu para difundir uma lógica temporal (através do princípio do feedback) e, também, um sistema de analogias através de diversas disciplinas, que terminaram absorvendo o nome cibernética como um pré-requisito para estruturar seu vocabulário e metodologia. Neste sentido, como apontou faz pouco um historiador, "a cibernética pôde operar como uma disciplina primária, direcionando outras na procura da verdade, assim como uma disciplina provedora de ferramentas analíticas indispensáveis para o desenvolvimento e progresso de outras" (Bowker, 1993:122).

Além disso, à medida que a cibernética estendeu seus poderes em diversos campos ou adjacências, estendeu também a seu poder temporal sobre elas de modo a ligá-las de acordo com uma percepção espacial comum, dado que a percepção era, em termos cibernéticos, um simples meio para a regulação do feedback ativo14, e o princípio do feedback era o que permitia à cibernética sobreviver como disciplina no mundo das idéias. Dessa forma, em um sentido williamsiano específico, a palavra "cibernética" não só conservou as principais transformações ocorridas na descrição para a qual foi criada como foi, claro, incluída entre elas como base de um novo modelo de organismo humano e de sua identidade.

 



De Autômato Cibernético para ciborg: Limiares inconstantes na Interface homem/máquina

Na sentença de abertura de um artigo na Scientific American (1948), Wiener declararia que "cibernética é uma palavra inventada para definir um novo campo científico " (1948b: 14). O otimismo dele baseava-se, como nós vimos, na abrangência potencial do campo e na profundidade de interpretação. Para a palavra e o campo aos quais se referiu, foi projetado abranger a mente humana, o corpo e o mundo das máquinas automáticas, reduzindo-se todos a um denominador comum: "controle e comunicação " (1948b: 14.)

Como vimos também, a raiz metafórica para este empreendimento era o mecanismo de feedback, um mecanismo que, além disso "governou " o tráfego de idéias entre o domínio da teoria das comunicações com seu mundo paralelo e concreto de circuitos e comutadores eletrônicos ou mecânicos, os caminhos neurológicos do corpo humano e, finalmente, seu cérebro. Em resumo, teorias cibernéticas e seus sistemas de analogias estavam em uma posição de injetar um novo tipo de engenharia de linguagem no sistema nervoso do corpo humano vivo: uma linguagem que poderia pavimentar o caminho para a reimaginação do corpo humano em relação à história dos autômatos.

Era o conceito de feedback, em particular, que provia os meios para um processo mais extenso de reimaginação, já que abria o caminho para a coletivização elétrica do corpo humano e, mais recentemente, eletrônica - uma coletivização que alcançaria proporções planetárias na metáfora de McLuhan de uma aldeia global e de sua consciência informacional. O acesso a este modelo ampliado de um corpo cibernético foi garantido pela " onipresença de feedback " - uma onipresença que significava que "interação é algo que está em todos os lugares". Para ele era este tipo de onipresença que poderia inaugurar uma mudança de "atenção capaz de nos levar para longe de um individualismo que havia realçado uma visão de mundo desconhecedora da circularidade entre causa-e-efeito e da própria pessoa individual - vendo-a como se ela pudesse ser independente de outras e até mesmo independente de eventos oposicionais que ocorrem no ambiente" (Heims, 1993,: 271-2). Traduzido em termos mcluhanianos, feedback era um portal privilegiado para uma consciência global eletronicamente coletiva (McLuhan, 1964,:64, 311), não só porque apagava as distinções entre máquinas automatizadas e organismos vivos, mas também porque marcava, de um ponto de vista das comunicações, "o fim da linearidade que chegou do mundo Ocidental com o alfabeto e as formas contínuas do espaço euclidiano" (McLuhan, 1964,: 307). Foi com base em tal lógica e visão de mundo que a cibernética e seu vocabulário auxiliar pôde disseminar a imagem de um tipo novo de corpo para um campo disciplinar mais abrangente e, mais adiante, para um público geral não-especializado.

Na realidade, pode-se invocar a existência de uma analogia funcional entre máquina e organismo humano nos anos 40 e a influente concepção mcluhaniana de uma tecnologia que funcionaria como "uma extensão ou auto-mutilação de nossos corpos físicos", uma tecnologia que produziria " novos cálculos ou equilíbrios entre outros órgãos e extensões do corpo" dos ano 60 (McLuhan, 1964:54). Considerando que eram claramente baseadas em um modelo cibernético, as idéias desse último significaram um reconhecimento atrasado do fato de que o corpo humano já tinha sido irrevogavelmente transformado no contexto de cibernéticas. Entretanto a evocação de McLuhan de um sistema nervoso ampliado (1964:64) retém uma ressonância metafórica que está faltando no conceito cibernético de organismo como "enclave local no fluxo geral de entropia "crescente (Wiener, 1954,:95). Conseqüentemente não é de se admirar que pela época em que estas idéias alcançaram um público mais abrangente graças ao escritos de McLuhan a consciência houvesse, há muito tempo, assumido a forma radical de uma relação entre os sentidos (McLuhan, 1964,:67). Recordemos que o primeiro livro de Wiener, Cybernetic: or Control and Communication in the Animal and the Machine, tinha sido publicado em 1948, e seu relato mais popular da cibernética, The Human Use of Human Being, em 1950. Estes livros haviam proposto a um público geral que o corpo humano fosse reimaginado radicalmente, que sua identidade se tornasse uma organização singular e que sua inteligência fosse vista simplesmente como um entre muitos de tais padrões.

Em 1962, dois anos antes da publicação de Understanding Media, a influente apresentação da mídia ao mundo do pós-guerra ocidental feita por McLuhan, e 14 anos depois da introdução da palavra cibernética, dois cientistas americanos introduziram uma importante alteração daquela palavra. Fizeram isso em prol da identificação de um novo tipo de interface entre homem e máquina, em prol de um novo tipo de "organismo". Desde aquele tempo, este organismo tem tido um poderoso apoio no modo como o corpo é imaginado, reimaginado e construído nos outros limites da ciência, da técnica e da indústria ocidentais, bem como nos limites exteriores de suas indústrias militares e aeroespaciais. Trata-se de uma influência que foi até mesmo ampliada para as especulações artísticas e intelectuais, baseadas ou não na universidade, sobre o futuro do corpo humano. Além disso, suspeitamos que este impacto fundamental do organismo na construção de um imaginário ocidental pode, ser identificado com o fato de que ele reintroduz a mimesis, sob uma forma antropomórfica, na história dos autômatos.

Observemos que o neologismo ciborg (derivado de organismo cibernético) foi proposto por Manfred E. Clynes e Natthan S. Kline em 1960 para descrever "um sistema auto-regulado de relações homem-máquina" e, em particular, um "complexo organizacional e exógeno ampliado, que funciona inconscientemente como um sistema homeostático integrado" (Clynes e Kline, 1960:27). A densidade técnica da definição foi função da proposta de sua esfera de operações: isto é, a aplicação da teoria dos controles cibernéticos aos problemas das viagens espaciais enquanto fator influente na neurofisiologia do corpo humano. Na realidade, ocorria que um tipo especial de "organismo" artificial - o ciborg - estava sendo proposto como solução para a questão da "alteração das funções corporais necessária para suportar diferentes ambientes" (Clynes e Kline, 1960,:26). Para estes pesquisadores, a alteração da ecologia do corpo seria efetuada primariamente por sofisticados sistemas de controle instrumentais e farmacêuticos. Assim, "a proposta do ciborg, bem como seus próprios sistemas homeostáticos" tinha por objetivo, de acordo com estes antigos pioneiros, "fornecer um sistema organizacional no qual tais problemas robóticos [como os "controles homeostáticos autônomos" do corpo] funcionassem automaticamente e inconscientemente, deixando o homem livre para explorar, criar, pensar e sentir " (Clynes e Kline, 1960: 27; note-se como as referências para "seu" e "o homem" indicam a especificidade de gênero dessa problemática).

Nas suas formas mais extremas, o organismo cibernético wieneriano poderia assumir a forma de pura informação - "informação humana" (Wiener, 1954:104) - nada mais sendo do que um determinado "modelo mantido por... homeostase, que [era] a pedra-de-toque de [nossa] identidade pessoal", a ser transmitido como uma mensagem na medida em que essa era, em primeiro lugar, uma mensagem (1954:96). Para Clynes e Kline, em contraste, o ciborg representava uma solução diferente, mais imediata e prática daquela foi pressentida pelos primeiros cibernéticos, já que foi projetado para resistir aos rigores da viagem espacial, embora adotasse os princípios fundamentais da cibernética, em particular os de feedback e homeostase.

Embora inicialmente projetada para viagem espacial, as implicações transformativas deste novo tipo de organismo cibernético tiveram longo alcance. Como Clynes subseqüentemente indicou no Foreword to ciborg - Evolution of the Superman, um relato popular do fenômeno de ciborg editado por D.S. Halacy em 1965: "uma nova fronteira está se abrindo e ela... não é meramente espacial mas, mais profundamente, a relação do 'espaço interior' com o 'espaço exterior' - uma ponte que está sendo construída entre mente e matéria, começando no nosso tempo e que se estenderá no futuro". Clynes chegou ao ponto de argumentar que o ciborg era mais flexível do que o organismo humano porque não era limitado em sua vida pela hereditariedade. O ciborg era, em sentido específico, uma entidade reversível porque era uma "combinação" de homem-máquina (Halacy, 1965:7). Essa reversibilidade, combinada ao fato de que "dispositivos" artificiais poderiam ser incorporados ao [corpo humano], encadeando um feedback regulador", produziria uma fase da evolução que seria participativa. (Halacy, 1965:8). Conseqüentemente, se máquinas automáticas mantivessem a promessa de outra forma de inteligência humana, então a cibernética redefiniria a inteligência de tal maneira que o ciborg, como preconizado por Clynes e Kline, poderia se tornar sua incorporação mais perfeita: " um ser novo e... melhor " (Halacy, 1965:8).

Em 1985, o termo ciborg acabou apropriado, em virtude de sua ressonância polissêmica, pela historiadora socialista e feminista da biologia, Donna Haraway, sendo usado, neste caso, para um propósito social diferente, como "estratégia retórica e... método político" (Haraway, 1991:149). Para Haraway o ciborg não era só um "híbrido de máquina e organismo": era também uma "criatura da realidade social tanto quanto uma criatura da ficção" (Haraway, 1991:149). Dentro de um novo contexto semântico, fornecido pelos discursos socialistas e feministas do corpo, tal como identificado pelo gênero, ela argumentou que esta palavra poderia funcionar como "uma ficção que mapeia... social e completamente a realidade, e como recurso imaginativo, que sugere algumas junções muito frutíferas" (Haraway, 1991:150).

Em contraste com o ciborg de Clynes/Kline, que foi concebido como um " super-homem" capaz de sobreviver em ambientes não-terrestres e hostis, o ciborg é, para Haraway, um produto da terra pós-capitalista. Mantendo sua ecologia tradicional, aconteceu que o ser humano foi redesenhado como uma entidade que poderia transgredir as fronteiras simbólicas e sociais terrenas entre o homem e o animal, entre o organismo humano como animal e a máquina, entre o físico e não-físico (Haraway, 1991:151-3). Negociada de acordo com o contexto histórico recente, a transgressão foi, ao mesmo tempo, tratada em termos de ficção científica e dos mundos culturais cotidianos do pós-modernismo e do capitalismo multinacional pós-colonial.

Distinguindo-se do ciborg de Clynes e Kline, o ciborg harawayiano exibiu duas outras características, que o aproxima das mais recentes imagens populares do ciborg, tais como apresentados no filme RoboCop e na série O Exterminador do Futuro. Influenciado pela ficção científica feminista, tal ciborg foi concebido para ser "uma criatura em um mundo pós-gênero"; e já que foi concebido como um mentor social e político, foi retratado (mantendo suas "origens ilegítimas") como "de oposição, utópica e completamente sem inocência", no sentido em que está resolutamente comprometido com "a parcialidade, ironia, intimidade e perversidade" (Haraway, 1991:150, 151). Precisamente neste sentido múltiplo é que Haraway sugeriu que o ciborg poderia se tornar "nossa ontologia" e que poderia dar-nos "nossa política " (Haraway, 1991:150). Na medida em que política e ontologia progressistas o asseguravam, ele se tornou apto a circunscrever, em espírito se não no nome, suas origens militares e industriais (Haraway,1991:150).

Como Wiener sugeriu, as origens imediatas da palavra "cibernética" podem ser remontadas à pesquisa militar associada aos programas específicos de pesquisa universitário interdisciplinares do pós-guerra (Heims, 1993,; Bowker, 1993). Porém, o ciborg também exibe uma genealogia similar, com uma inflexão diferente, na medida que é produto híbrido do programa espacial norte-americano e um laboratório de pesquisa médica (Clynes e Kline eram na ocasião [1960] os pesquisadores do Rockland Hospital Estatal, Orangeburg, Nova Iorque). Em contrapartida, o ciborg da socialista e feminista Haraway foi criação em comum do ativismo político e radicalismo acadêmico da metade dos anos 80. A distinção entre as duas categorias de ciborg pode ser traçada pelos respectivos antecedentes dos seus autores. Enquanto o corpo fisiologicamente ecológico, "o problema de corpo-ambiente" (Clynes e Kline, 1960:26), determinou seu primitivo campo semântico, foram os antecedentes acadêmicos, socialistas e feministas que determinaram sua rearticulação em termos de gênero e de política por Haraway.

Como imagem bem adequada ao tempo, o ciborg harawayiano serviu à consciência oposicionista que surgiu nos anos 80, sobretudo porque encarnou todas as características contraditórias de uma década que definiu suas práticas culturais e políticas, no contexto de teoria acadêmica radical, em termos de pós-modernismo e critérios pós-coloniais de parcialidade, hibridação, pastiche e ironia brincalhona. Como uma crítica cultural notaria mais tarde, "a transgressão dos limites da realidade define o ciborg, tornando-o o conceito pós-moderno" por excelência - ou, de uma perspectiva inversa: "incerteza é uma característica central do pós-modernismo e da essência do ciborg " (Springer, 1991:306,310). Na verdade, como as múltiplas articulações do ciborg oposicionista o sugerem, e como Clynes já tinha sugerido em 1965, estas reconceitualizações mais recentes no domínio dos automata foram sintomáticas da incerteza sobre o futuro do corpo de meados para fins do século XX.

Afinal um ciborg baseado em equipamento pesado integra ou conecta, em sua forma mais extrema e evocativa, um corpo humano com um ambiente puramente tecnológico (elementos de máquina, componentes eletrônicos, sistemas de imagens avançados). Claramente, sob tais circunstâncias, a tecnologia se torna o fator determinante na definição da rearticulação física do corpo e das fundações materiais para seu sentimento de identidade performativa. Embora os domínios tradicionais das diferenças corporais, tais como aquelas que são subsumidas sob as rubricas de etnicidade e gênero, ainda operem no caso do imaginário popular que cerca o ciborg (Springer, 1991), a pessoa pode pensar, como fez Haraway, que estas diferenças poderiam vir a ser eclipsadas por um sistema tecnológico de semelhanças e diferenças. Em vez de descrever este corpo principalmente em termos de idade, etnia ou gênero, ou mesmo nos termos pós-étnicos ou pós-gênero de Haraway, uma descrição mais precisa todavia talvez será obtida tratando-se o corpo do ciborg como uma entidade tecnológica cujas características definitivas serão montadas de acordo com um sistema de tecnicidade (Tomas, 1989). Tratar-se-ía então de um sistema que não só teria que levar em conta a plasticidade e identidade da política do ciborg: também teria que responder por seus princípios operacionais, como esses de velocidade, manobra e força, assim como também por sua forma de participação, arraigado como ele está nas três categorias de adaptabilidade cibernética: comunicação, informação e feedback.

 



Pós - face: A realidade virtual e o ciborg como construto totalmente informacional

A evocação wieneriana do corpo humano como algo concebido em termos de pura informação serve para trazer à mente a tecnologia da realidade virtual e sua promessa de um espaço digital e global comum - um tipo de segunda atmosfera; e isso por mais que ela tenha sido modelada mais tarde pela consciência ampliada concebida por McLuhan, de acordo com o qual o corpo deveria ser encontrado na " forma espiritual de informação" (1964:67), ou na freqüentemente citada definição de ciberespaço dada por Willian Gibson : uma "alucinação" consensual experimentada por "bilhões de operadores de computadores" (Gibson, 1984:51).

A ponte entre a cibernética e seu paradigma de organismo-vivo-como-pura-informação é a que une os mundos do ciborg e da realidade virtual. Fazendo assim, ela também serve como uma junção que marca importante divisão ou, mais precisamente, uma ramificação na história dos autômatos. Um caminho desta junção conduz em espaço exterior, enquanto a outra rota conduz a um tipo de meta-atmosfera, composta de informação pura, eletrônica e digitalizada. O corpo humano é, neste último contexto, reimaginado e redesenhado para ser um resíduo histórico inconseqüente, um tipo de quimera, ou boneco (Walser, 1991): enfim, uma imagem automatônica, que está sujeita à manipulação quase infinita. Assim "o trabalho básico da tecnologia do ciberespaço, além de simular um mundo, é, como notou um pesquisador, prover um feedback bem ajustado entre o patrão e pupilo, serve dar para dar ao patrão a ilusão de que ele está sendo literalmente encarnado pelo pupilo (i.e., o pupilo dá para o patrão um corpo virtual, e o patrão dá para o pupilo uma personalidade)" (Walser, 1991:35).

Portanto não surpreende que, dada a possibilidade de um sentimento quase perfeitamente transparente de manipulação, que as possibilidades de "realidades virtuais serem consideradas por alguns como" tão ilimitados quanto as possibilidades de realidade" - uma distinção e conjunção que está fundada no poder potencial desta tecnologia em fornecer uma "porta de entrada a outros mundos" e que se baseia em uma " interface humana em vias de desaparecimento" (Fisher, 1991:109). Como estes comentários e aqueles sobre o papel do feedback na ligação entre o chefe humano e pupilo cibernético sugerem, a realidade virtual, é de fato, uma manifestação do derradeiro sonho dos ciberneticistas: um espaço puramente informacional, que pode ser povoado por uma hoste de construtos informacionais, para usar os termos mais precisos e menos antropomórficos de Gibson.

É no contexto desta fronteira não demarcada entre corpo e tecnologia que nós voltamos agora à figura do autômato e notamos, como um pesquisador mostrou recentemente, que "o artesão do século passado, que moldava o elaborado movimento dos ponteiros do relógio alinhando dolorosamente seus eixos e engrenagens, é muito semelhante ao programador dos modernos computadores gráficos, que interagem com os algoritmos que, neles, animam o movimento humano ou definem as deformações plásticas que uma expressão facial deverá sofrer" (Lasko-Harvill, 1992: 226).

Se o ciborg de Clynes/Kline ofereceu uma solução participativa ao problema de sobrevivência em ambientes hostis, então assim o fez por meio de uma fusão radical da interface de homem/máquina, tal como proposto pela primeira vez no contexto dos autômatos miméticos clássicos. O astronauta/ciborg e modelos de ficção científica posteriores foram e são concebidos como andróides de uma revolução pós-industrial que encarna o poderio de certos centros de comandos principais que se apóiam em sistemas de controle e monitoramento sofisticados. Tratam-se de ciborgs baseados em equipamentos pesados, que exibem formas de andróides, o poder do robô e da inteligência cibernética, e que são projetados para funcionar em ambientes extremamente hostis. Em um certo ponto de The Human Use of Human Beings, por exemplo, Wiener havia sugerido que "nós modificamos tão radicalmente nosso ambiente que agora nós temos que nos modificar para poder existir neste novo ambiente"(1954:46 novo). Em retrospecto, é fácil ver que o ciborg de Clynes/Kline foi uma solução baseada em equipamentos pesados para este tipo de problema. Enquanto o primeiro ciborg foi projetado inicialmente para viagem espacial, a modificação e adaptação podem tomar diferentes formas quanto as necessárias para a conquista e colonização dos ambientes não-humanos ou anti-humanos e não é à toa que o ciborg pós-gênero e de oposição harawayiano sugira que tais ambientes se estendam ao conflituoso e hostil mundo das idéias.

Talvez a figura da conquista forneça o quadro de referência mais apropriado pelo qual podemos ver as transformações computacionais mais recentes que ocorrem nos ciborgs na sua nova forma, na medida em que essas são produto de um problema especial em adaptação humana: isto é, como existir em um ambiente que consiste em pura informação. Como Wiener foi o primeiro a mostrar, a resposta para tanto é fornecida pela cibernética: a pessoa transforma o organismo humano em um padrão de pura informação digital. Como resultado, a adaptação está perfeita e completa desde que sejam concebidos organismos e ambientes em condições semelhantes.

Essa visão cibernética extremada, uma solução final e radical para o problema das mutações ambientais e da obtenção de adaptação, fornece um tipo de "resposta terminal" à pergunta sobre a direção da "evolução" do organismo humano em finais do século XX. Na medida em que "a interface entre o usuário e o computador for a última fronteira no desenho de computadores" (Foley, 1987:127), então esta interface também pode ser a última fronteira no desenho de seres humanos e, como tal, a chave para a diversidade de padrões cibernéticos que podem colonizar e podem povoar a realidade virtual em nome não apenas de uma das metáforas enraizadas na modernidade ocidental - o mecanismo de feedback, mas também em nome de uma de suas palavras chaves: cibernéticas.




Traduzido por Bianca Persici, Marina Ferreira e Francisco Antunes Coordenação e revisão do Organizador.




David Tomas - Professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Ottawa (Canadá). "Feedback e cibernética: reimaginando o corpo na era dos ciborgs" foi publicado em Featherstone, M. & Brown, M. (orgs.): Cyberspace, cyberbodies, cyberpunk (Londres: Sage, 1995).



NOTAS


* Este artigo é parte de um trabalho em formato de livro que examina os relacionamentos entre o conceito de ciborg e os sistemas de imagens do final do séc. XX, incluindo a realidade virtual. Sua orientação é a de uma investigação crítica das práticas culturais correntes e, especificamente, das práticas de oposição nas artes. As primeiras versões desse artigo foram apresentadas em uma conferência sobre 'Imagens do Corpo, Linguagem & Ligações Físicas' (Universidade de Amsterdã, Amsterdã, em Julho de 1993, e na Universidade de Windsor, Windsor, Ontário, em Novembro de 1993). Uma versão preliminar desse artigo foi publicada como um capítulo em Murray (1994). Eu gostaria de agradecer a todos que comentaram sobre o artigo em suas várias versões.
1.Para uma discussão mais extensa sobre esta prática veja Williams (1983:15, 22-5).
2.Uma mostra recente incluiria a (Richards et al., 1991) coleção de textos em Bioapparatus, Lasko-Harvil (1992), Balsamo (1992), Stone (1991, 1992). Balsamo (1993:135 fn. 13) contém uma lista de publicações recentes aparecidas na imprensa popular dedicado à realidade virtual.
3.Nessa conexão, eu sublinho o uso pessoal exaustivo da palavra "promessa", considerando que as exclusões de cada estágio são tão importantes quanto as inclusões no andamento da construção de histórias atuais e possíveis.
4.Um servomecanismo é uma forma de sistema de controle de feedback automático "em que o movimento de saída de um membro .... é forçado a seguir de perto o movimento de entrada de um outro, e onde poder e ampliação são incorporados" (Porter, 1969:55).
5.Eu lido com as primeiras formas do autômato mais completamente em uma primeira versão desse artigo (Tomas, 1994).
6."Este é o modelo mantido pela homeostase, que é a pedra de toque de nossa identidade pessoal" (Wiener, 1954:96).
7.Embora a palavra "cibernétique" tenha um primeiro sentido histórico, dado que foi usada pelo físico francês André-Marie Ampère em 1843 para denotar uma "ciência do governo" (Ampère, 1843:140-1), a reintrodução do termo por Wiener é válida como origem no seu uso atual.
8."Estou escrevendo este livro em primeiro lugar para os americanos, em cujo ambiente as questões de informação serão avaliadas de acordo com um critério padronizado americano: uma coisa é valiosa como uma mercadoria por aquilo que ela irá trazer para o mercado" (Wiener, 1954:113).
9.Veja também Wiener (1954:26-7): "Minha tese é que o funcionamento físico da vida individual e a operação de algumas das mais novas máquinas de comunicação são exatamente paralelas em suas tentativas análogas de controlar a entropia através do feedback. Ambos têm sensores de recepção como um estágio em seu ciclo de operação: ou seja, em ambos há um aparato especial para coletar informação do mundo externo a baixos níveis de energia, e para fazê-lo disponível na operação no individual ou na máquina. Em ambos os casos, essas mensagens externas não são tomadas de maneira pura, mas através de poderes internos de transformação do aparato, esteja ele vivo ou morto. A informação é, então, voltada para uma nova forma disponível para estágios mais extensos de desempenho. Tanto no animal, quanto na máquina, este desempenho é feito para ser efetivo no mundo externo. Em ambos, sua ação executada no mundo externo, e não meramente sua ação pretendida , é retornada para a central reguladora do aparato'. Wiener chegou a notar que não somente 'este conjunto de comportamentos ...... é ignorado pelo homem médio .... [mas isso] não funciona no papel que deveria em nossa habitual análise da sociedade; assim como as respostas físicas do indivíduo podem ser vistas desse ponto de vista, o mesmo pode ocorrer com as respostas orgânicas da sociedade". Comunicação foi, dessa forma, concebida de um ponto de vista cibernético para ser "o cimento que liga o conjunto da fábrica societária".
10.Como Cherry, por exemplo, havia notado "a palavra 'cibernética' é pouco usada na Inglaterra, usando-se antes o termo sistemas de controle", enquanto "o francês usa freqüentemente 'la cibernétique' para fazer correspondência com o que chamado de 'teoria da informação' na Inglaterra". Trata-se, este, de um termo que "é mal empregado em qualquer ocasião como sinônimo de teoria da comunicação e com o qual é às vezes referida a palavra 'cibernética' na Franca" (Cherry, 1980:58, 217).
11.Para uma discussão detalhada das estratégias subjacentes ao universalismo cibernético veja Bowker (1993). A excelente discussão de Bowker não foca, entretanto, a semântica universalista da palavra "cibernética". Para uma discussão de cibernética, seu grupo de metáforas e poderes de síntese, veja Heims (1993:248-72).
12.Note-se em conexão com isso as espetaculares conseqüências das narrativas sobre a problemática de como controlar o futuro em termos de um passado, que é, por si só, a base para um futuro já existente da série O Exterminador do Futuro.
13.Em seu célebre ensaio 'Forms of Time and of the Chronotope in the Novel', Mikail Bakhtin propôs que processos similares de ligação espaço/tempo, no caso do romance, sejam identificados pela palavra chronotope. Em suas palavras, "nós daremos o nome chronotope (literalmente, 'tempo espaço') para a intrínseca conexão de relacionamentos temporais e espaciais artisticamente expressas na literatura'(Bakhtin, 1981:84). Enquanto ele notava que o "espaço tempo" existia em outras áreas de cultura, ele não perseguia sua investigação nestes domínios. Ao invés, ele sugeriu que 'no "espaço tempo" artístico literário, indicadores espaciais e temporais são fundidos em um cuidadoso pensamento' e continuou: 'é como se o tempo engrossasse, encarnasse, se torna-se artisticamente visível, capaz de responder aos movimentos do tempo, do enredo e da história"(1981:84). Embora Bakhtin tenha permanecido sensível aos usos metafóricos do conceito matemático de espaço-tempo, nos casos dos "espaços tempos" literários ('O significado especial que isso tem na teoria da relatividade não é importante para nossos propósitos; estando tomando isso emprestado para crítica literária quase como uma metáfora (quase, mas não inteiramente)' [1981:84]), em 1973, na conclusão de seu extenso estudo, ele argumentou sobre sua extensão, além das ligações literárias e concluiu: "Para nós o seguinte é importante: qualquer que sejam os significados que isso possa vir a ter, no sentido de introduzir nossa experiência (que é uma experiência social), elas devem tomar a forma de um signo que é audível e visível por nós (um hieróglifo, uma fórmula matemática, uma expressão verbal ou lingüística, um esboço, etc.). Sem semelhante expressão temporal-espacial, inclusive o pensamento abstrato é também impossível. Conseqüentemente, toda entrada na esfera de significados é realizada somente através dos portões do chronotope" (1981:258).
14."O controle da máquina [ou do organismo, desde que estes modos de organização fossem passíveis de analogia] na base de seu atual desempenho [feedback] ... envolve membros sensoriais que funcionam por membros motores e desempenham a função de contadores de histórias ou monitores - ou seja, de elementos que indicam um desempenho. Esta é a função destes mecanismos: controlar a tendência mecânica à desorganização; em outras palavras: produzir uma reversão temporária e local na direção normal da entropia". (Wiener, 1954:24-5).





Volta à página inicial