Norbert Wiener e a emergência de uma nova utopia

Phillipe Breton


A idéia de uma sociedade de comunicação vem à luz em meio às tormentas de meados do século XX. Falando de maneira ainda mais precisa, as teorias da comunicação surgem a partir de 1942, data que marca a virada definitiva do conflito mundial rumo à barbárie. Qualquer pesquisa que venha a ser feita sobre a matéria não deveria levar em conta essa aparente coincidência e dar conta de um contexto onde o vínculo social foi ameaçado em tal profundidade?

Diversos indícios nos sugerem a existência de ligações subterrâneas entre a guerra que sacudiu meados do século passado, a escalada das técnicas de comunicação e a formação de uma nova utopia em torno da comunicação. Wiener insiste muito sobre o "naufrágio" que, para ele, espreitava a sociedade. A associação desses dois ápices da barbárie, que são, de um lado, os campos de concentração e, de outro, o uso da bomba atômica é, para ele, fruto de uma concepção global da sociedade que não pode conduzir senão à sua decadência. A idéia utópica de uma sociedade de comunicação ideal nascerá pois como uma tentativa de responder, a partir desse ponto de vista, a uma questão contemporânea.

Isso tudo conduz nossa reflexão sobre um caminho até agora pouco explorado: a noção de comunicação, nascida no interior das fronteiras estruturais do mundo científico, e que aí poderia ter ficado circunscrita, não toma toda sua força moderna, toda sua carga utópica, do fato de convergir com um contexto histórico particular ? Antes de examinar como os grandes temas contemporâneos da comunicação se difundiram em seguida a essa convergência, é necessário fazer um paralelo com o conteúdo que Wiener dá à nova utopia e, mais globalmente, com o contexto ao qual essas novas teorias darão ressonância.

O projeto utópico que se articula em torno da comunicação é ambicioso. Desenvolve-se em três níveis: uma sociedade ideal, uma outra definição antropológica do homem e uma promoção da comunicação como valor. Esses três níveis se concentram em torno do tema do homem novo, que chamaremos de Homo communicans.

Segundo Wiener, esse homem novo corresponde a nada menos do que a tentativa de recolher, com materiais marginais, os fragmentos que uma civilização derrotada havia espalhado em um grande maelström entrópico. O Homo communicans é um ser sem interior e sem corpo, que vive em uma sociedade sem segredo; um ser totalmente voltado para o social, que só existe através da troca e da informação, em uma sociedade tornada transparente graças às novas "máquinas de comunicação". Essas qualidades de homem da comunicação, que contribuem para fomentar o ideal do homem moderno, surgem como alternativas à degradação do humano produzida pela tormenta do século XX.

Wiener tinha consciência de ser um pensador utópico ? Provavelmente, não. Em sua concepção das coisas, ele não faz aí senão exercer sua responsabilidade científica. Entretanto sua obra-chave (The Human Use of human beings) se inscreve muito bem na longa tradição de obras utópicas. As análises e proposições que ela contém respondem muito bem à definição dada à utopia por Lesjek Kolakowski: ou seja: "a de uma fé em uma sociedade onde não apenas as fontes do mal, do conflito ou da agressão são evitadas, mas onde ainda se realiza uma reconciliação total entre o que o homem é, o que ele se torna e o que o envolve", uma crença tripla de que "o futuro, misteriosamente, já estaria lá, [...] de que nós disporíamos de um método de pensamento e ação seguro, suscetível de nos conduzir a uma sociedade sem defeitos, conflitos e insatisfações [...] e de que nós saberíamos o que o homem realmente é, em oposição ao que ele crê ser" (1).

O programa wieneriano corresponde, quase pontualmente, a essa definição até mesmo no título ("o uso humano dos seres humanos"), que não se pode compreender fora de seu contexto utópico : o problema de todas as utopias é bem o de "fazer qualquer coisa com o homem".

Certamente, o livro não descreve em detalhe o que deveria ser uma sociedade de comunicação. Difere nesse ponto da obra de outros pensadores utópicos, reconhecíveis por seu cuidado maníaco em organizar detalhadamente a vida futura. De uma certa forma, seu ponto de vista é mais radical. Enquanto aqueles pensadores estavam mais interessados na cidade e no urbanismo enquanto meios superiores de organizar a vida e os costumes humanos, Wiener se ocupa com uma questão mais sutil: a arquitetua do vínculo social. Para ele, a nova arquitetura deverá privilegiar, como jamais sem dúvida se fizera até então, a "transparência", palavra-mestra para entender os fundamentos da sociedade moderna, grande casa de vidro, onde todos deverão sabem de tudo, ao menos idealmente.




1. Um novo homem

As novas concepções se articulam aqui em torno de dois princípios. Qualquer ser que se comunique em um certo nível de complexidade é digno de ver reconhecida sua existência enquanto ser social. Em seguida, não é o corpo biológico que funda essa existência social mas, antes, a natureza "informacional" do ser em questão. De um certo modo, não há mais "ser humano" mas, ao contrário, "seres sociais", inteiramente definidos por suas capacidades de se comunicar socialmente.

Wiener se encontra na origem do "recentramento" que permite caracterizar o homem não como sujeito individual mas, antes, a partir de sua atividade de intercâmbio social. Rejeitando a questão do sujeito como indivíduo isolado ao deslocá-la para essa atividade, o pai da cibernética funda assim uma nova visão da igualdade. Assenta as bases de uma nova antropologia, a qual Gregory Bateson será um dos mais fiéis construtores. Nessa perspectiva, todos os seres comunicantes possuem um estatuto antropológico comparável, desde que estejam todos no mesmo nível de complexidade.

A nova "humanidade" diz respeito pois a todos os homens mas pode se estender, também, a todos os seres candidatos ao estatuto de "parceiro comunicativo" integral. Vê-se bem acerca desse ponto que o novo pensamneto antropológico não é um pensamento humanista e que, como tal, ele não coloca o homem no centro de todas as coisas. A "vida" não reside mais no biológico mas na "comunicação".


- O "homem wieneriano"

O que é um homem ? A essa questão imensa, devido aos desafios que recobre, e insondável, devido às zonas de sombra e aos mistérios que encobre, Wiener propôs uma resposta inteiramente em termos informacionais e comunicativos:

"A identidade física do indivíduo não reside na matéria do qual ele se compõe [...] A individualidade do corpo se assemelha mais a de uma chama do que a de uma pedra, de uma forma mais do que a de um fragmento de matéria. Trata-se de uma forma que talvez possa ser transmitida e modificada ou dobrada, ainda que até o presente nós não possamos dobrá-la senão a uma curta distância. Quando uma célula se divide ou quando um dos genes que carregam nosso patrimônio corporal e mental se cinde para preparar a pequena divisão de uma célula germinativa, constatamos uma separação material condicionada pelo poder de se reproduzir possuído por um modelo de tecido vivo. Porém se é assim, não existe uma linha fundamental de demarcação entre os gêneros de transmissão utilizáveis para enviar um telegrama de um país a outro e os gêneros de transmissão possíveis teoricamente a um organismo vivo como o ser humano. [...] Um modelo pode ser transmitido como uma mensagem: nós empregamos o rádio para transmitir modelos de som e o equipamento de televisão para transmitir modelos de luminosidade. Surpreende também que seja instrutivo considerar o que aconteceria se nós transmitíssemos todo o modelo do corpo humano, com suas lembranças e todas as suas trocas com o ambiente, de modo que um receptor instrumental hipotético pudesse reorganizar convenientemente os processos preexistentes no corpo e no espírito. [...] O fato de que nós não possamos telefragar de um lugar para outro o modelo de um homem provavelmente se deve a obstáculos técnicos [...] não resulta de qualquer impossibilidade de idéia em si mesma." (2)

Essa posição, vemos, porta consigo a marca indelével da utopia e de sua radicalidade absoluta. O ser é totalmente constituído de informação; não há nenhum resíduo. Enquanto tal, o ser é, pois, manipulável, operável, transferível, por pouco que se conheça as leis que organizam essa informação - o que ainda não é o caso hoje em dia como não o era no tempo em que escrevia Wiener.

Portanto não se pode entender o homem senão vendo-o como um "ser comunicativo". Como ele dizia:

"Estar vivo é participar de uma corrente contínua de influências provindas do mundo exterior e de atos que agem sobre ele, no qual não representamos senão um estágio intermediário. Possuir plena consciência dos fatos mundanos é participar do constante desenvolvimento do conhecimento e de interargir livremente com ele" (3)

Descrever o homem como um ser prisioneiro da corrente contínua de trocas e relações com o mundo exterior implica que ele jamais pára de se comunicar. Desse modo é todo o seu ser que está implicado nessa atividade, na qual ele, no final das contas, não é senão um "estágio intermediário". A expressão não é de certo muito bonita mas tem o mérito de dar conta claramente desse recentramento do qual o homem é objeto. O homem não é mais homem na medida em que é um centro onde cada parte ou o todo retorna, como era o caso nas concepções clássicas, mas um elemento intermediário do enorme processo de comunicações cruzadas que caracteriza uma sociedade.

Nessa perspectiva, todo o "emprego" do homem que não use plenamente essa faculdade fundamental é degradante:

"O futuro da Terra não será longo se o ser humano não se elevar totalmente ao nível de seus poderes inatos. Para nós, ser menos que um homem é ser menos que algo vivo. Aqueles que não estão totalmente vivos não vivem muito tempo, mesmo em seu mundo de sombras. Indiquei [...] que, para o homem, estar vivo equivale a participar de um vasto sistema mundial de comunicação" (4).

A comunicação nos introduz pois diretamente em um pensamento que não se centra nas qualidades intrínsecas do homem mas em sua relação com outros "seres" (no caso, artificiais). Em resumo, "o homem wieneriano" é totalmente definido em termos de comportamento informacional, não possui interioridade e se encontra - potencialmente - em competição com outros seres, que arriscam vencê-lo sobre o terreno da complexidade.

Nenhum dos discursos que conferiram à comunicação o título de valor central se desviará posteriormente desse programa original. O homem wieneriano constituirá as bases do "homem moderno" ideal, esse em relação ao qual nossa cultura atual sempre faz referência.


- O homem communicans, um ser sem interior

Durante o século XIX e até mais tarde, quando do questionamento dos valores que caracteriza a segunda metade do século XX, a imagem central que permitia pensar o homem repousava sobre a metáfora da interioridade. O homem era um ser que, diferentemente de todos os outros seres da criação, era dotado de um "interior", um lugar privado, cuja localização era de certo indefinida mas cujo conteúdo determinava a personalidade.

O homem do humanismo clássico é um homem "dirigido desde o interior". Dessa concepção derivavam esquemas como o da "profundidade dos sentimentos" ou o da "riqueza da vida interior". "Descobrindo" o inconsciente, Freud ajudará a nutrir essa concepção do ser humano como ser "movido do interior". A força da contribuição freudiana a essa metáfora se deve sem dúvida aos empréstimos que ele fez à cultura científica, internamente irrigada então pelo paradigma energético. Desde então o inconsciente reúne o máximo de sincretismo, como todas as grandes noções que chegam a ter algum apoio nas humanidades e outro na cultura científica. Como sublinha muito justamente a psicóloga americana Sherry Turkle, tenha-se ou não lido Freud, conheçamos ou não a própria existência de suas teorias, isso não tem importância: o inconsciente, esse espaço interior parcialmente incognoscível mas de qualquer modo fonte de uma energia poderosa, faz parte da cultura a título de metáfora central representativa de o que é um ser humano.

Entrementes a nova utopia fornece uma metáfora alternativa ao "homem dirigido desde o interior": "O homem novo", o homem moderno, é, antes de tudo, um "ser comunicativo". Seu interior é totalmente exterior. As mensagens que ele recebe não lhe chegam desde uma interioridade mítica mas, ao contrário, de seu "ambiente". Ele não age, reage, e isso não por meio de uma ação: ele "reage por reação" (é assim que Gregory Bateson define o laço social).

Julio Verne, um dos anunciadores da modernidade, inaugurara por acaso a desestabilização dessa metáfora em uma obra impressionante para a imaginação do século XIX, Viagem ao centro da Terra. Lembremo-nos de que, nessa ficção, o interior do planeta Terra, local ao mesmo tempo totalmente privado e não desprovido de influência sobre a superfície das coisas, entrega seu mistério diante do avanço de uma expedição que, devido ao caráter científico de suas motivações, dispensa qualquer referência em relação a valores e à "vida interior". O auge do relato ocorre quando nossos exploradores descobrem que o interior é como o exterior. No mundo dos subterrâneos mais profundos que conduzem ao centro da Terra, não se descobre, enfim, mais que lagos, tempestades, animais, em suma : todos os ingredientes da humanidade, ainda que de uma forma um pouco mais arcaica. Perdendo o seu mistério, o interior é "exteriorizado" ´. A partir de então, constrói-se um novo jogo metafórico em torno de uma rede de significações onde a imagem, a forma e a aparência serão cada vez mais valorizados e, sobretudo, onde são os mesmos termos que servirão para descrever o que ocorrer dentro do homem e em seus comportamentos exteriores.

O mistério tanto quanto o papel central de um autor como Gaston Bachelard se devem, sem dúvida, desse ponto de vista, ao fato que ele faz encarnar em uma mesma obra os pontos de vista radicalmente opostos sobre essa questão da interioridade. Para ele, a imagem que formamos do real é, de um lado (em sua obra científica), um reflexo do real exterior. Para o outro Bachelar, porém, essa imagem é antes de mais nada uma "imagem-imaginada", "sublimação de arquétipos" (inconscientes), ao invés de reproduções da realidade" (6). Escrevendo esse texto em seguida ao pós-guerra, Bachelard é um dos pontos de passagem nos quais a cultura transforma a representação do homem da qual ela é portadora.

O "homem novo" que emerge dos escombros de meados do século é, por uma espécie de antítese, um "homem dirigido desde o exterior". Retira sua energia e sua substância vital não das qualidades intrínsecas que viriam do fundo dele mesmo mas - como indivíduo "ramificado" - de sua capacidade, conectada a "vastos sistemas de comunicação", de coletar, tratar e analisar a informação da qual ele tem necessidade para viver.

Não sendo guiado desde o interior, não procurando mais a legitimidade da ação ou da decisão em uma correspondência com uma instituição interior ou uma harmonia interna, a pesquisa de valores se volta para o exterior, para os modelos de comunicação e de comportamento que servem, ao mesmo tempo, de bússolas e de pontos de fixação para se conduzir no mundo.

Destarte o papel dos meios é desenhado em cruz, como o utensílio essencial que permite ao homem reagir de modo apropriado às reações que o cercam e, por isso, a supressão da interioridade nas representações do homem constitui uma das pedras angulares da comunicação moderna.


- A apologia do pensamento racional

Para entender essa concepção e evitar qualquer contra-senso, é preciso evitar considerar a nova utopia como uma tentativa de desvalorização do pensamento. Trata-se ao contrário, muito paradoxalmente, de um duplo deslocamento da identidade humana: ao mesmo tempo de uma desvalorização do corpo e de uma revalorização do pensamento (em primeiro lugar, do pensamento racional). A representação do homem como "ser comunicativo" está estreitamente associada à metáfora que estabelece um laço entre o cérebro humano e o computador, um ser que evidentemente não possui corpo. O que distingue o homem social de um simples indivíduo pavloviano, que se contentaria em reagir aos estímulos sociais, seria sua capacidade de concretizar processos mentais. Esses não têm nada a ver com a "metafísica" da interioridade e, sobretudo, com suas versões mais românticas, nos contexto das quais o homem "não sabe o que ele faz" ,porque "ele é movido por forças internas obscuras".

Os processos mentais em questão aqui derivam do raciocínio entendido como cálculo (7); são concretizados na claridade e transparência, ao menos na medida em que isso é possível. Efetivamente a inteligência, nessa perspectiva, não é uma qualidade do sujeito individual mas a capacidade de desenvolver a comunicação em um certo nível de complexidade. Como muitos cientistas, Wiener, seguindo Turing e von Neumann, está persuadido de que o pensamento, como ação comunicativa, é um cálculo e que as modalidades de efetivação desse cálculo são , por um lado, independentes de apoios biológicos e, de outro, transferíveis a outros "dispositivos" ou "suportes", sejam naturais ou artificiais.

O pensamento humano é uma qualidade que não pertence ao homem propriamente dito portanto porque ele é transferível pra fora da pessoa. Nessa concepção, as leis do pensamento são leis gerais, independentes de seu contexto de produção humano. A revalorização do pensamento é um projeto que estava inteiramente explicitado na vontade de construir máquinas de inteligência artificial por intermédio do computador que fossem capazes de, em performance, ultrapassar o espírito (mind) humano.


- As máquinas de comunicação

O processo de formação das comunicações como valore enriquecerá se estendendo em direção a esses novos territórios, mais próximos da técnica: as máquinas. Como vimos [em outros textos], toda uma série de dispositivos são inventados nos anos quarenta para automatizar as funções de comando e de "decisão" que eram, até então, apanágio do homem.

Wiener evoca o fato de que, em tais dispositivos, "as partes da máquina devem se comunicar entre si por meio de uma linguagem apropriada, sem falar ou escutar a qualquer pessoa", concluindo daí que "esse elemento contribuirá para a aceitação geral de uma ampliação da idéia de comunicação às máquinas" (8).

Depois de 1942, as máquinas têm direito ao estatuto de "seres comunicativos", que podem se comparar ao homem no terreno da comunicação; isto é, no essencial, como diz Wiener:

"Sustento que o funcionamento do indivíduo vivo e o das máquinas mais recentes de transmissão são paralelos; [...] esse complexo comportamental é ignorado pelo homem médio e, particularmente, não joga o papel que deveria em nossa análise habitual da sociedade" (9).

Podemos reencontrar aí um dos temas favoritos da nova utopia, a idéia segundo a qual o papel desempenhado pela comunicação nos processos vitais da sociedade é amplamente subestimado.

Para Wiener, essa ausência de reconhecimento é dramática, porque conduz não apenas a uma perda de potencial mas, mais dramaticamente, a um crescimento da entropia. Seu discurso sobre as máquinas é desde ponto de vista paralelo a seu discurso sobre o homem, no sentido em que esse faria um "uso não-inteligente das máquinas inteligentes". Dentro dessa perspectiva, a "máquina, assim como o organismo vivo, pode ser considerada como um dispositivo que parece, local e temporariamente, resistir à tendência geral ao crescimento da entropia. Devido à sua capacidade de tomar decisões, ela pode reproduzir em torno de si uma área de organização, em um mundo cuja tendência geral vai no sentido da desorganização" (10).

Essa crença na possibilidade das máquinas se tornarem inteligentes será um dos aspectos essenciais do mito fundador de nossa modernidade. A pesquisa científica de uma "inteligência artificial" não por acaso é agitada pelos sobressaltos da utopia. Depois de 1945, segundo Dreyfus (11), se desenrola um ciclo sem fim, nesse domínio da pesquisa, no qual se vêem suceder, de vez em vez, as esperanças mais loucas e as mais terríveis prostrações.



2. Uma sociedade de comunicação

Paralelamente a esse novo conceito de humanidade, nascerá o tema de uma nova sociedade onde, como dizia Wiener, "a comunicação deve ter a extensão que ela merece de bom grade: a de fenômeno central". Trata-se de uma nova visão do político que irá constituir a base de uma verdadeira alternativa às ideologias políticas tradicionais, na medida em que ela é uma utopia sem inimigo. Esse ponto é essencial ao moderno dispositivo da comunicação e, sem dúvida, explica parcialmente seu sucesso. Pela primeira vez desde que o princípio da utopia se pôs a agir, imagina-se uma sociedade nova cuja construção não requer uma purificação prévia, porque seu princípio de funcionamento não são o antagonismo e o conflito mas a comunicação e o consenso racional. Todo o mundo, sem exceção, faz parte da sociedade da comunicação, porque seu vigor reside justamente em sua capacidade de liberar as forças comunicacionais que residem em seu seio. Provém do fato de comunicar, do simples fato de comunicar o mais ativamente possível, que virá a liberação, por parte da sociedade, pelo menos da ameaça de sucumbir de maneira imediata em um vasto naufrágio entrópico.

Essa sociedade carece de inimigo humano mas isso não significa que ela não se oponha, para sobreviver, a fatores ameaçadores. Essa utopia, malgrado tudo, continua sendo uma utopia combatente, ainda que suas forças não sejam dirigidas contra certos homens, que ela excluiria para assegurar o progresso. Seu único inimigo não é humano: é o "ruído", a entropia, inimigo que tem influência, que ameaça até mesmo a dominar o mundo e que somente a "livre circulação de informações" poderá conter. Pode-se entender como à saída de um longo período de confrontos mortíferos, que puseram em jogo ideologias cujo destino é promover a exclusão, uma tal utopia pudese dispor a priori de um certo capital de simpatia e pudesse ter alguma ressonância na opinião esclarecida.

A nova sociedade se articula em torno do tema fundamental da transparência e que diz respeito ao homem e á sociedade indissociavelmente. Como nota Lapouge (12) esse tema está na base de qualquer projeto utópico (13). A transparência do homem é aqui adquirida pela comparação, que ultrapassa o simples quadro metafórico, entre o espírito humano e o computador. Numa perspectiva comunicacional, o homem não é apenas descorporificado. Faltaria um traço essencial da nova concepção se nós não víssemos, enfim, que o vínculo social na base da comunicação deixa pouco espaço para o indivíduo: esse não é mais um ator individual, mas um ser reativo (reacteur).

Agora ele ocupa um lugar na grande corrente da comunicação - onde as "máquinas inteligentes" também são parceiras - e seu pensamento individual não é mais distinguível como tal. O laço social funciona com base na razão, no cálculo - seu modelo se torna o computador - e, ao mesmo tempo, o jogo social se torna um jogo totalmente informacional.

Portanto não há mais um nível onde agiria o indivíduo e um nível que seria o da sociedade: um e outro se encontram fundidos em um laço social moderno unitário. É a transparência que permite essa fusão: graças à comunicação, o homem é transparente à sociedade, e a sociedade é transparente ao homem. Os modernos meios de comunicação fundarão sua política de expansão sobre o tema: nada, nenhuma parte, deve permanecer em segredo.


- O "anarquismo racional"

Qual é de fato o modo de gestão política de uma tal sociedade ? O programa wieneriano comporta três grandes imperativos: primeiramente, a necessidade absoluta de o homem ser reconhecido como ser comunicativo e de que suas faculdades sejam utilizadas nesse sentido; em seguida, que as máquinas tenham socialmente o estatuto que elas merecem e que se transfira a elas as responsabilidades pelos processos de comando e de decisão; enfim, que a sociedade se auto-regule, graças à retroação e ao caráter aberto das vias de comunicação.

Esse programa político que faz da comunicação o valor central lembra de maneira muito forte as teses anarquistas, pois desenha os planos de uma sociedade sem estado e de onde o poder como modo de exercício do governo foi banido. Mas esse anarquismo tem uma forte conotação racional, porque as decisões, em tal sociedade, são tomadas racionalmente e, de preferência, por máquinas.

Wiener critica assim os modos de organização territorial que privilegiam os conjuntos muito amplos, sustentando ao contrário a idéia segundo a qual as pequenas comunidades de vida possuem as capacidades reguladoras mais importantes. As premissas do small is beautifull, o slogan dos anos setenta, estão intimamente ligadas ao pensamento político de Wiener. Paralelamente à apologia das pequenas unidades conviviais (a palavra só surgirá mais tarde, com Illich), Wiener faz eco à possibilidade de um estado mundial, mas esse seria apenas funcional:

"O grande Império romano não se tornou possível senão em razão dos progressos obtidos por aquele povo na construção de estradas. Essas vias serviam para transportar as legiões, mas também a autoridade do Imperador. Através do avião e do rádio, a palavra dos governantes de hoje em dia se estende às extremidades do globo e um grande número de razões que até então se opunham à existência de um estado mundial foram anuladas. Talvez se possa mesma afirmar que a comunicação moderna, que nos obriga a regular juridicamente as reivindicações internacionais dos diferentes sistemas de radiodisuão e redes aeroviárias, tornou inevitável o surgimento de um estado mundial" (14)"

As estruturas desse estado mundial não tem nada a ver de fato com qualquer sistema centralizado a partir de cima e de onde se exerceria um poder arbitrário. Evocando essa nova forma de organização mundial, Wiener pensa, ao contrário, em um romance de Kipling - que, aliás, não era exatamente um democrata - escrito por volta de 1905. Nele descreve-se um mundo no qual o transporte uniu a Terra e onde não há mais guerra. Em tal mundo, todos os problemas internacionais se encontram nas mãos do "organismo de controle aéreo", que pouco a pouco tomou para si o encargo dos transportes e, no final das contas, "de tudo o que isso implica".

A sociedade de comunicação, inteiramente constituída por redes de informação, aparece assim como auto-regulada politicamente, e isso não deixa de lembrar certos acentos das teorias anarquistas do século XIX. Encontramos aí o mesmo cuidado com a organização da vida em perquenas comunidades, o mesmo ressentimento contra o estado e demais formas de organização hierárquica do poder, enfim a mesma crítica ao poder como modalidade de interação entre os homens e o mesmo pacifismo. A comunidade de pensamento, em certos aspectos, é surpreendente. Proudhon, por exemplo, tinha a mesma preocupação em lutar contra a verticalidade, quando opunha "a ordem natural", que é a "verdadeira unidade" reveladora da sociedade sem estado, e "a ordem artificial imposta desde cima, a falsa unidade que engendra a repressão" (15).

Também Voline, anarquista russo (1882-1945), opõe duas sociedades, a atual e a "futura", com acentos que nos reencontraremos mais tarde na boca dos técnicos influenciados pela utopia da comunicação:

"Trata-se - ele escreve sobre a sociedade anarquista no começo do século passado - não de organização ou de não-organização mas de dois princípios diferentes de organização. [...] A nova organização ... deverá se fazer livremente, socialmente e, antes de tudo, partindo da base [da sociedade]. O princípio de organização deve resultar não de um centro criado anteriormente para se encarregar do conjunto e que a ele se impõe mas - o que significa exatamente o contrário - de todos os pontos, até chegar aos anéis de coordenação, centros naturais destinados a servir todos esses pontos; [...] a outra "organização", calcada sobre aquela existente na velha sociedade de opressão e exploração, [...] levaria a seu paroxismo todas as taras da velha sociedade"(16)

O tema da sociedade da comunicação retoma por sua conta, sem o saber, o ideal utópico de mudança social que havia começado a se exprimir um século antes. Desse modo sua utopia se situa curiosamente na linha das teorias da mudança política que, no século dezenove, rejeitavam a exclusão social e o reforçamento do papel do estado e defendiam a pesquisa de novas formas de regulação social.

Nesse sentido, a comunicação se nutre de uma certa herança anarquista - podendo-se compreender melhor porque, nessa perspectiva, a utopia da comunicação irá inspirar tão amplamente as atuais teorias da autogestão. Todavia ela se distingue pelo tipo de regulação proposta, ao se articular em torno do progresso técnico e de uma nova relação com as máquinas mas, também, em torno de uma outra definição do homem e do vínculo social.




Tradução de Francisco Rüdiger.




Phillipe Breton - Pesquisador associado ao Conselho Nacional de Pesquisa Científica (Strassburgo, França) é, autor, entre outros trabalhos, de La tribu informatique (Paris: Métaillé, 1990) e de La parole manipulée (Paris: La Découverte, 1997). Em português poder-se-a ler sua História da Informática (São Paulo: Uneps, 1994) . "Nobert Wiener, a cibernética e a emergencia de uma nova utopia", reproduzido neste volume, foi publicado com o título "La formation d'une nouvelle utopie", como capítulo de L'utopie de la communication (Paris: La Découverte, 1995).


NOTAS

* Phillipe Breton: "La formation d'une nouvelle utopie". In - L'utopie de la communication. Paris: La Découverte, 1995, p. 49-62.
1. Citado por Gilles Lapouge, Utopie et civilisation (Paris: Albin Michel, 1990, p. 278-279).
2. Norbert Wiener, Cybernetique et societé (Paris: 10/18, 1954, p. 141-144) [Phillipe Breton refere-se aqui à 2ª edição francesa da obra; nenhuma das edições citadas pelo autor coincide com a tradução de José Paulo Paes, feita a partir da edição revisada do original inglês de 1954, para a Editora Cultrix - Nota do Organizador].
3. Norbert Wiener, op. cit., 1ª ed., p. 173.
4. Ibidem,
5. Sherry turkle, Les enfants de l'ordinateur (Paris: Denöel, 1986).
6. Gaston Bachelard, La Terre et les rêveries de la volonté (Paris: José Corti, 1948, p. 4).
7. A propósito da ascensão do paradigma do cálculo na cultura ocidental, ler-se-á com proveito a obra de Pierre Lévy, La Machine Univers (Paris: La Découvert, 1987).
8. Norbert Wiener, op. cit, p. 223)
9. Norbert Wiener, idem, p. 28)
10. Norbert Wiener, idem, 2ª ed., p. 41.
11. Hubert Dreyfus, Intelligence artificielle, mythes et limites (Paris: Flammarion, 1984).
12. Gilles Lapouge, op. cit..
13. A propósito ver os trabalhos de Michel Foucault.
14. Norbert Wiener, op. cit., 1ª ed., p.134.
15. Citado por Daniel Guérin, L'Anarchisme (Paris: Gallimard, 1965, p. 50).
16. Daniel Guérin, op. cit., p. 51.




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